30 de dezembro de 2007

Ausencia

Prezados visitantes,
Este blog ficara ausente por praticamente um mes. Estou viajando para fora do pais e, portanto, nao ha como fazer postagens constantes por aqui.
Eventualmente uma ou outra postagem podera ser feita, mas a constancia de postagens so voltara ao normal apos o dia 31 de janeiro de 2008.
Cordialmente,
Prof. Matheus.

24 de dezembro de 2007

Formação do estado russo (VI)

(Continuação da postagem anterior.)

Fiodor, sucessor de Ivan IV, era totalmente dependente de seus conselheiros, sendo o principal deles o boiardo Boris Godunov, seu cunhado. O reinado de Fiodor, de 1584 a 1598, é caracterizado por dois principais acontecimentos de suma importância para a consolidação final do estado russo. O primeiro deles diz respeito ao estabelecimento de um Patriarcado da Igreja Ortodoxa em Moscou, o cargo mais alto do mundo ortodoxo. Assim, a Igreja Ortodoxa, que já era materialmente forte, ampliou e aprofundou ainda mais suas raízes como um dos sustentáculos do estado russo: agora toda a estrutura hierárquica eclesiástica -- de indicação de metropolitanos, arcebispos e bispos -- estava nas mãos do Patriarca da Igreja Ortodoxa russa. O segundo acontecimento diz respeito à política externa. Ao norte, a Rússia conseguiu reconquistar os territórios perdidos para a Suécia em 1583 -- fazendo com que suas fronteiras retornassem ao limite anterior à guerra de Ivan IV na mesma região. Ao sul, a Geórgia se tornou um reino vassalo dos russos, o que abriu para estes uma nova fronteira em termos de expansão territorial (RIASANOVSKY, 2005, p. 142-143).

A morte de Fiodor em 1598 e a ausência de um herdeiro natural ao trono deu origem ao chamado "Tempo das Revoltas" ou "Tempo de Problemas" (Smutnoe Vremya), período que vai oficialmente de 1598 a 1613 (ver Anexo E). Godunov convocou uma nova zemskii sobor (assembléia nacional) e foi escolhido como czar em 1598. Seu reinado, contudo, passou por provações logo no início:

Em 1601, seca e fome trouxeram desastres para o povo. As plantações tiveram problemas novamente em 1602 e, também, em nível considerável, em 1603. A fome atingiu proporções catastróficas; seguiram-se epidemias. (...) Estimou-se que mais de cem mil pessoas pereceram apenas em Moscou. Pessoas famintas devoravam grama, cascas de árvores, cadáveres de animais e, em algumas ocasiões, até mesmo outros seres humanos. Grandes grupos de homens desesperados que vagavam e pilhavam o interior, dando início a batalhas com tropas regulares, apareceram e se tornaram um fenômeno característico do Tempo das Revoltas (RIASANOVSKY, 2005, p. 147).

Em meio às revoltas e ao descontentamento da população, surgiu um homem que afirmava ser Dmitrii, filho de Ivan IV, que supostamente havia sido assassinado por Godunov em 1591. Com o apoio da Polônia e de alguns boiardos descontentes com Godunov, o "falso Dmitrii I", como veio a ser conhecido, avançou sobre Moscou em 1604. Contando com a sorte -- Godunov faleceu em 1605 -- e com o apoio de parte da população do sul da Rússia, que via nele a corporificação da dinastia russa, o falso Dmitrii I foi coroado czar em 1605. Após obter o poder, o novo czar removeu dos principais postos estatais e eclesiásticos os partidários de Godunov e trouxe do exílio e/ou retirou da prisão diversos boiardos que faziam oposição ao czar anterior e que agora o apoiavam (RIASANOVSKY, 2005, p. 148-150). Contudo, a sorte do falso Dmitrii durou pouco: os mesmos boiardos que o apoiaram em 1605 passaram a se opor e, em 1606, o czar foi assassinado e sua guarnição polonesa foi expulsa da cidade.

Assumiu como czar o boiardo Vasilii Shuiskii, que reinou de 1606 a 1610. Shuiskii nunca possuiu a devida legitimidade popular para ser czar: até mesmo em Moscou ele tinha pouca ou nenhuma autoridade e somente não foi deposto pelos mais influentes boiardos por não terem ninguém para colocar em seu lugar. Somente a popularidade do seu primo, príncipe Mikhail Skopin-Shuiskii, que liderou suas forças, e a ajuda de soldados da Suécia, cuja assistência foi obtida com a concessão de territórios russos, o preservou por mais algum tempo no trono. Para complicar ainda mais sua situação, surgiu em 1607 um novo falso Dmitrii, sendo chamado de "falso Dmitrii II", que, com o apoio explícito da Polônia, conseguiu criar, ainda que por curto período, um estado paralelo na Rússia, com forte apoio popular, coletando taxas, dando terras e títulos, julgando e punindo como um verdadeiro czar. Apenas no início de 1610 Shuiskii foi capaz de acabar com a ameaça que o novo falso Dmitrii representou (HOSKING, 2002, p. 138; RIASANOVSKY, 2005, p. 152-153).

Se a situação se aliviou por um lado, por outro voltou a ficar complicada: Sigismundo III da Polônia considerou os acordos com a Suécia um pretexto para a guerra, e, em outubro de 1609, sitiou Smolensk. Em julho de 1610 Shuiskii foi deposto por uma assembléia moscovita de clérigos, boiardos e plebeus, e os poloneses passaram a governar a Rússia. A submissão de Moscou ao rei polonês foi o pretexto utilizado pela Suécia para entrar em guerra contra a Rússia também em 1610. Em 1611 Smolensk estava nas mãos dos poloneses; Novgorod nas mãos dos suecos; e Pskov nas mãos de mais um pretendente ao trono russo, o falso Dmitrii III.

Os poloneses eram novamente inimigos dos russos, e eles controlavam Moscou e também uma grande área na parte oeste do país. Os suecos tinham declarado guerra contra os russos após Moscou ter jurado fidelidade a Wladislaw [da Polônia]. Eles avançaram no norte, ameaçaram Novgorod, e logo reclamaram o trono moscovita para seu próprio candidato, príncipe Felipe (RIASANOVSKY, 2005, p. 155).

A ocupação polonesa da capital Moscou finalmente levou a um revigoramento do patriotismo entre os russos. Um novo exército, financiado por mercadores do norte e abençoado pela Igreja Ortodoxa, começou a expulsar os poloneses. Em 1612, os poloneses foram finalmente expulsos de Moscou por um exército sob o comando de Kuzma Minin e Dmitrii Pozharskii. É interessante notar que tal exército se apresentava como o braço político, e não apenas militar, da Moscóvia: "[o exército] aparentemente continha uma assembléia de representantes de diferentes localidades, algo como se fosse uma zemskii sobor itinerante" (RIASANOVSKY, 2005, p. 156). Logo após a expulsão dos poloneses, uma zemskii sobor especial foi convocada, tendo como objetivo a escolha de um novo czar; Mikhail Romanov foi o escolhido, sendo coroado czar em julho de 1613, dando origem à dinastia Romanov que durou até 1917.

O século XVII pode ser considerado como um período de transição entre dois momentos distintos no processo de formação do estado russo: o primeiro momento acaba em 1613, com a criação da nova dinastia russa, e o segundo momento começa em 1682, com a ascensão de Pedro, o Grande ao trono da Rússia e a transformação do país em um império. Este período de transição, no qual houve três czares -- Mikhail Romanov (1613-45), Aleksei Romanov (1645-76) e Fiodor Romanov (1676-82) -- pode ser considerado como o período no qual o estado russo se estabilizou e se fortaleceu como base para o salto que seria dado, posteriormente, por Pedro, o Grande.

O reinado de Mikhail se caracterizou pela tentativa de estabilização da situação após o "Tempo das Revoltas". Mikhail fez a paz com a Polônia e com a Suécia, ainda que, para tanto, tenha perdido diversos territórios para estes dois países. O maior problema enfrentado por Mikhail, entretanto, foi a instabilidade econômica, que ele não conseguiu ver acabada quando de sua morte. Por outro lado, Mikhail era o chefe de "(...) uma monarquia com autoridade ilimitada de um tipo que Ivan IV pretendeu mas nunca foi capaz de atingir. Os boiardos e os clérigos que tinha obstruído Ivan agora apoiavam uma autocracia plena [que fosse capaz de] protegê-los contra rebeliões sociais e invasões estrangeiras" (HOSKING, 2002, p. 152).

O reinado do sucessor de Mikhail foi caracterizado principalmente pela incorporação da Ucrânia ao estado russo em 1654. A Ucrânia estava sob jugo polonês após a união deste estado com a Lituânia, e desde princípios do século XVII havia revoltas naquela região contra a dominação polonesa. Ao se depararem com três opções de submissão -- Polônia, Império Otomano e Moscóvia -- os ucranianos, reunidos em assembléia, decidiram jurar fidelidade a Moscou. Tal submissão deu origem a nova guerra entre a Polônia e Moscóvia, vencida por esta última com apoio dos suecos. O estado russo, mais uma vez, expandia-se territorialmente com o objetivo de controlar as terras que haviam pertencido ao Principado de Kiev. Além da conquista da Ucrânia, outro acontecimento importante durante o reinado de Aleksei foi o cisma da Igreja Ortodoxa que levou, no fim, à submissão da Igreja às vontades do estado, cerceando sua autonomia obtida durante os cinco séculos anteriores (RIASANOVSKY, 2005, p. 165-168). Estava assim aberto o caminho para que posteriormente Pedro, o Grande, pudesse realizar suas reformas do estado russo e fazer da Rússia um dos impérios mais poderosos de sua época.

Anexo E -- Mapa da Moscóvia durante o "Tempo das Revoltas" (1598-1613)


(Continua na próxima postagem.)


21 de dezembro de 2007

Formação do estado russo (V)

(Continuação da postagem anterior.)

A nova fase da história da Rússia -- a "Rússia Moscovita", ou "Moscóvia" -- se caracterizou pela afirmação e pelo fortalecimento do poder autocrático vindo de Moscou. Tal processo foi consolidado por aquele que é considerado um dos principais líderes russos: Ivan IV, comumente chamado de "Ivan, o Terrível". Para dar uma idéia da importância de Ivan IV como líder da Rússia, acreditamos ser interessante fazer mais uma citação de Riasanovsky (2005, p. 131, grifos no original):

Com o reino de Ivan IV, o Terrível, o período dos principados tornou-se, definitivamente, uma coisa do passado, e o absolutismo moscovita veio totalmente à tona. Ivan IV foi o primeiro líder moscovita a ser coroado czar, a ter suas ações aprovadas pelos patriarcas do leste e a usar o título regular e oficialmente tanto ao governar suas terras quanto nas relações internacionais. Ao se intitular "autocrata", ele enfatizou seu completo poderio interno e também o fato de que ele era um soberano, e não um monarca, dependente. Não obstante, foram as ações de Ivan, o Terrível, e não seus títulos ou idéias, que ofereceram uma incrível demonstração do novo poder arbitrário do líder moscovita e, agora, líder russo.

O reinado de Ivan IV, que vai de 1533 (ou 1547, quando ele foi oficialmente coroado czar com 16 anos) até 1584, é, portanto, o período em que o estado russo consolida seu núcleo territorial, politicamente se centraliza nas mãos do governante e retoma sua expansão territorial -- mas desta vez não apenas em direção às antigas terras pertencentes à Rússia de Kiev, mas principalmente na direção leste, em direção à Sibéria (ver Anexo F). O canato de Kazan foi conquistado em 1552 e o de Astrakhan em 1556. Com tais conquistas, a Rússia passou a ter acesso ao Mar Cáspio, no sul, e a controlar boa parte da região do Cáucaso. O único sucessor dos mongóis que não foi conquistado pelos russos nesta época foi o canato da Criméia, que tinha apoio do Império Otomano. Outra área de importância vital para o estado russo foi conquistada em guerras contra a Ordem da Livônia ao norte: tais áreas permitiram à Rússia ter um maior acesso ao Mar Báltico do que o pequeno pedaço de terra já de posse dos russos na foz do rio Neva (local no qual, duzentos anos depois, Pedro, o Grande, veio a construir São Petersburgo).

A primeira parte do reinado de Ivan IV é considerada como "boa", pois foi o momento no qual o czar realizou algumas reformas na estrutura política e social do país, inclusive permitindo certa participação de outros grupos na política -- especialmente pelo seu "Conselho Escolhido", um grupo de conselheiros com membros da Igreja Ortodoxa e dos boiardos. Ivan IV chegou a convocar um zemskii sobor, ou seja, uma instituição semelhante ao encontro de representantes dos diversos estratos sociais, como nos países europeus. Ivan IV fez ainda diversas alterações na legislação no que diz respeito ao status da Igreja Ortodoxa e ao serviço militar, criando o primeiro regimento fixo do exército russo, formado por mosqueteiros.

A partir de então surge o que Riasanovsky chama de "segunda parte do reinado de Ivan IV". Segundo este autor -- cujas idéias são corroboradas por Hosking (2002, p. 111-115) -- a partir de 1560 Ivan IV buscou centralizar todo o poder estatal apenas em suas mãos: acabou com o "Conselho Escolhido", voltou-se violentamente contra vários de seus conselheiros e também contra vários boiardos. "Seu despotismo pessoal se tornou extremo. Além disso, o ataque de Ivan, o Terrível aos boiardos, trazendo consigo mudanças no mecanismo de administração do estado e um reino de terror, veio a dominar, e em extensão considerável a moldar, a vida política, a sociedade e a economia russas" (RIASANOVSKY, 2005, p. 136-7). Ainda segundo este autor, Ivan IV assim se comportou por buscar contrabalançar o poder dos boiardos que, com a incessante expansão territorial moscovita, estavam adquirindo cada vez mais áreas e, conseqüentemente, cada vez mais poder político, podendo, inclusive, contrabalançar o poder do czar.

Para centralizar ainda mais o poder político em suas mãos, Ivan IV cria, em 1565, a oprichnina, ou um "estado dentro do estado". "O czar montou uma administração estatal em separado para a oprichnina, em paralelo à administração já existente que, por sua vez, ficou responsável pelo restante do país, agora chamado de zemshchina" (RIASANOVSKY, 2005, p. 138, grifos no original). "(...) Ivan dividiu seu reino em dois: a oprichnina, onde ele teria jurisdição ilimitada; e a zemshchina (o território da zemlia), onde a Duma [Assembléia] dos boiardos governaria de acordo com os costumes" (HOSKING, 2002, p. 123, grifos no original). Os oprichniki -- membros da oprichnina -- tornaram-se responsáveis por pôr em prática, em toda a Moscóvia, a vontade de Ivan IV: formavam uma nova força policial que, além de ser o guarda-costas do czar, ainda defendia as fronteiras e tentava acabar com a corrupção, com as traições e com as heresias "descobertas" por Ivan IV. Trazendo para termos mais atuais, o reinado de Ivan IV poderia ser classificado como um sistema totalitário, no qual o líder define, por conta própria, quem são os inimigos do regime (reais ou imaginários) e, utilizando-se de uma ideologia (no caso, a da Igreja Ortodoxa), implanta um regime de terror, no qual o medo dá sustentação a todas as atividades do estado. A oprichnina durou até 1572; entretanto, por mais que sua duração tenha sido curta (apenas sete anos), o estrago que tal instituição causou na Moscóvia foi enorme: devido à desestruturação estatal, em 1571 os tártaros da Criméia atearam fogo em Moscou e capturaram cem mil prisioneiros. Além da invasão, a Moscóvia sofreu com doenças e com a fome, ambas sendo consideradas como resultado também da desorganização estatal decorrente da presença da oprichnina (RIASANOVSKY, 2005, p. 140).

Também no campo da política externa a criação da oprichnina trouxe resultados negativos: Ivan IV sofreu reveses contra a Ordem da Livônia, contra poloneses, lituanos e suecos, tendo de abrir mão de boa parte dos territórios que havia conquistado no norte, na primeira parte de seu reinado, e tendo perdido, inclusive, algumas cidades que já eram de posse da Rússia antes mesmo desta guerra. Mesmo assim, de maneira geral, o reinado de Ivan IV pode ser considerado positivo se for levado em consideração o fato de que, durante o período, Moscou conquistou boa parte da Sibéria, a leste do país: é a partir de Ivan IV que se expande a fronteira leste e que levou, eventualmente, à conquista total da região até o século XVII.

Anexo F -- A expansão da Moscóvia de 1500 a 1700


(Continua na próxima postagem.)


20 de dezembro de 2007

Formação do estado russo (IV)

(Continuação da postagem anterior.)

Concomitantemente ao fortalecimento de Moscou como centro do estado russo no século XIV (ver Anexo D), problemas de sucessão ocorreram entre os mongóis, exibindo suas fragilidades para o povo dominado. É neste contexto -- de fortalecimento de uma das partes e de demonstrações de fraqueza por parte da outra -- que chegamos à segunda metade do século XIV, quando os mongóis sofrem sua primeira derrota importante que dá início ao fim do seu domínio sobre a Rússia. Por mais de cem anos -- de 1240 até então -- os mongóis haviam dominado a Rússia sem grandes resistências por parte destes. Entretanto, em 1380, Dmitrii Donskoi, príncipe de Moscou, com o apoio ideológico da Igreja Ortodoxa, venceu os mongóis na batalha de Kulikovo, mostrando que, se os príncipes russos se unissem, seriam capazes de derrotar os invasores. Mais que isto: a vitória serviu para fazer com que "o novo vencedor d[a batalha próxima ao rio] Don surgisse de repente como o líder de todos os russos contra os odiados opressores mongóis" (RIASANOVSKY, 2005, p. 93). Ainda que dois anos depois os mongóis vingassem a derrota de Kulikovo e saqueassem completamente a cidade de Moscou (HOSKING, 2002, p. 79), o caminho estava aberto para que os russos começassem a se mobilizar contra os invasores.

A cidade de Moscou continuou aumentando gradativamente seu território e, conseqüentemente, seu peso político. Em 1408 conquistou uma série de domínios rurais e de cidades que estavam sob controle da Lituânia, no oeste; em 1452 tornou-se suserana de um canato mongol no leste. A cidade foi capaz de se defender de três ataques mongóis, em 1451, 1455 e 1461, que tentavam restabelecer o controle mongol sobre os russos.

Além das vitórias militares que favoreceram Moscou, outro fator, de ordem religiosa, também ajudou a cidade a se consolidar como centro do nascente estado russo: o fim do Império Bizantino. Com a tomada de Constantinopla pelos turcos em 1453, Moscou tornou-se o último bastião da Igreja Ortodoxa no mundo, o que fez com que se "(...) fortalecesse a xenofobia e a auto-importância moscovita (...)" como o único estado soberano cuja população era de ortodoxos (HOSKING, 2002, 82; RIASANOVSKY, 2005, p. 95).

Entretanto, nenhuma das conquistas acima se compara, em termos de importância histórica, à conquista de Novgorod em 1471 por Ivan III. Vale destacar o fato de que Novgorod dominava um território maior do que o de Moscou, e que seu sistema político, como já mostrado anteriormente, era bastante diferente do sistema daquela que viria a se tornar a capital do estado russo. Segundo Hosking (2002, p. 86), Novgorod era o "(...) maior prêmio [para Moscou] (...). Sua posição anômala como um gigante econômico e um anão político dependeu da sua submissão à Horda de Ouro, cujo declínio relativo durante o século XIV e no início do século XV precipitou um declínio concomitante no status de Novgorod" (grifos no original). Novgorod se enfraqueceu porque sua população não sabia a quem se submeter: se à Lituânia que, apesar de ser católica, era política e economicamente mais próxima de Novgorod -- com sistema político mais participativo e ênfase econômica no comércio -- ou a Moscou que, se por um lado era ortodoxa, assim como Novgorod, por outro tinha um sistema político personalista-patrimonialista e cuja ênfase econômica estava na agricultura.

Novgorod decidiu se submeter à Lituânia. Em 1471, Ivan III enviou um exército à cidade e a conquistou. Tentando tratar os cidadãos da cidade conquistada com cautela, devido à sua estrutura política e econômica especial, Ivan III permitiu que a auto-gestão da cidade permanecesse, pelo menos de maneira formal. Entretanto, com evidências de que os cidadãos pretendiam se rebelar contra Moscou com o apoio da Lituânia, em 1478 Ivan III lançou outro ataque à cidade, conquistando-a totalmente e impondo sua visão política, não dando nenhum tipo de possibilidade a Novgorod que não fosse se submeter e seguir o padrão político moscovita. O símbolo desta conquista foi a remoção do "sino da veche", ou seja, do sino da assembléia popular que era utilizado para convocar seus cidadãos para a tomada de decisões políticas (HOSKING, 2002, p. 86).

[Ivan III] declarou, como citado em uma crônica: "O sino da veche em meu patrimônio, em Novgorod, não existirá, um príncipe eleito não haverá, e eu governarei todo o estado." A veche, os cargos de príncipe e de chefes militares, e em verdade todo o sistema [político] de Novgorod foram também abolidos (...). Deportações em massa [de boiardos] aconteceram em 1489, e Novgorod se tornou uma parte integral do estado moscovita (RIASANOVSKY, 2005, p. 97).

Finalmente, em 1480 "(...) Ivan III renunciou à sua, e à dos russos, fidelidade ao khan, e os mongóis falharam em desafiar seriamente sua ação" (RIASANOVSKY, 2005, p. 67). A partir de então, a Rússia se viu livre do domínio mongol, dando origem a um novo período da história russa chamado na bibliografia especializada de "Rússia Moscovita" ou "Moscóvia". "Ainda que os tártaros [mongóis] continuassem sendo uma séria ameaça por outros três séculos, sempre capazes de realizar incursões para obter escravos [russos] e, às vezes, acabar com cidades inteiras, nunca mais eles ameaçaram a soberania do estado russo" (HOSKING, 2002, p. 88).

Tão importante quanto as conquistas militares foi a nova mentalidade surgida no período. Ivan III se considerava como o legítimo herdeiro de todas as terras que antes compunham a Rússia de Kiev. Objetivando reforçar seu poderio, a partir de 1493 Ivan III passou a se auto-intitular "Senhor de toda a Rússia": seu objetivo era mostrar especialmente à Lituânia -- que, à época, ocupava boa parte do território que anteriormente compunha o Principado de Kiev, na área que hoje corresponde ao oeste e centro da Ucrânia e da Bielo-Rússia -- que cabia a Moscou, e não à Lituânia, administrar tal território. Ivan III foi o primeiro dos governantes russos a utilizar a palavra czar para indicar seu poder e seu domínio sobre as terras russas (RIASANOVSKY, 2005, p. 97-99).

Anexo D -- As conquintas de Ivan IV, "Ivan, o Terrível"


(Continua na próxima postagem.)


19 de dezembro de 2007

Formação do estado russo (III)

(Continuação da postagem anterior.)

É neste contexto personalista-patrimonialista que dois eventos acontecem, eventos estes que marcariam todo o processo de formação do estado russo: o primeiro é o surgimento da cidade de Moscou; e o segundo é a invasão da Rússia de Kiev pelos mongóis, dando início a uma nova fase do processo de formação do estado russo chamado de "Rússia dos domínios".

Tendo sido citada pela primeira vez em uma crônica em 1147, convencionou-se tal data como a de fundação da cidade de Moscou. No entanto, pouco se sabe sobre os primeiros cem anos da cidade. Riasanovsky (2005, p. 89) afirma que "sabemos pouco sobre os primeiros príncipes moscovitas, que mudavam freqüentemente, e aparentemente consideravam seu pequeno e insignificante domínio meramente como um trampolim para uma posição melhor". Ainda segundo Riasanovsky (2005, p. 89), a cidade passa a ter importância no cenário político, econômico e militar da Rússia apenas após a invasão mongol, em 1240: só então Moscou passou a ter príncipes que estavam efetivamente interessados em fazer com que seu domínio se estabilizasse e se desenvolvesse.

O crescimento de Moscou como centro do estado russo moderno aconteceu de várias formas: por guerras -- como em 1303, quando Moscou passou a controlar todo o curso do rio Moscou, ou em 1327, quando Moscou, já sob domínio mongol e com a ajuda dos mesmos, conquistou a cidade de Tver, sua principal oponente; por casamentos -- como em 1317, quando o príncipe Iuri se casou com a irmã de um khan mongol para ser indicado pelo mesmo como grão-príncipe; por diplomacia -- como Ivan I, que a partir de 1328 se tornou representante dos mongóis passou a coletar impostos para os mesmos em toda a área da Moscóvia; e ainda por influência ideológica -- quando, em 1326, o chefe da Igreja Ortodoxa Russa morreu em Moscou e foi sacralizado nesta cidade, ou ainda quando Ivan I, em 1328, convidou o então chefe da Igreja Ortodoxa Russa para viver em Moscou, fazendo com que o líder espiritual "de Kiev e de toda a Rússia" trouxesse à cidade uma grande importância e prestígio em relação às demais. A importância da cidade pode ser ainda confirmada quando, a partir de 1341, o príncipe Simeão passou a usar o título de "príncipe de toda Rússia" (RIASANOVSKY, 2005, p. 89-91).

Antes de darmos continuidade ao processo de surgimento e estabelecimento da cidade de Moscou como o núcleo central do estado russo, é necessário dar atenção a outro processo histórico, tão ou mais importante quanto a consolidação de Moscou: referimo-nos à invasão da Rússia de Kiev pelos mongóis a partir de 1223, processo este que é considerado consolidado a partir de 1240 (ver Anexo B). Esta invasão é de fundamental importância no processo de formação do estado russo: foi a partir da invasão que a cidade de Moscou conseguiu se consolidar como capital "de toda Rússia", como mostrado anteriormente, e liderar uma lenta rebelião contra os mongóis até sua completa libertação em 1480.

Nos primeiros cem anos de domínio mongol, os russos nada fizeram contra os invasores porque estavam demasiadamente desunidos para esboçar qualquer tipo de reação. Já foram apresentados anteriormente os três principais centros de poder que surgiram no Principado de Kiev e sua total falta de coordenação no sentido de formar um estado centralizado; ao contrário, os líderes das três regiões estavam muito mais preocupados em conquistar Kiev, ainda um símbolo de poder político, do que em se unir contra o invasor (HOSKING, 2002, p. 52). Assim, foi relativamente fácil para os mongóis conquistarem a Rússia de Kiev.

A dominação mongol sobre a Rússia significava que os líderes russos reconheciam a suserania mongol; que os mongóis, inicialmente o grande khan na Mongólia e posteriormente o potentado da Horda de Ouro, designava [quem seria] o grão-príncipe russo e seus assessores; e que para ser oficializado [como tal] o príncipe russo tinha de viajar para a capital dos mongóis e reconhecer sua humilde obediência ao seu suserano. Além disso, significava que os mongóis recebiam tributos dos russos, primeiro por meio de seus próprios agentes e, posteriormente, por meio da intermediação dos príncipes russos. Ainda, os russos, ocasionalmente, tinham de enviar destacamentos militares para o exército mongol (RIASANOVSKY, 2005, p. 67, grifo no original).

Entretanto, logo após a consolidação do domínio mongol sobre a Rússia várias cidades se recuperaram de maneira relativamente rápida; o comércio exterior continuou, especialmente por parte de Novgorod. Esta cidade, a propósito, conseguiu se safar da destruição trazida pelos invasores: a cidade assinou acordos com os khans nos quais se comprometia a pagar tributos mais elevados em troca de sua não-destruição após ter se submetido aos mongóis sem resistência (HOSKING, 2002, p. 53-54; RIASANOVSKY, 2005, p. 75; KAISER; MARKER, 1994, p. 80, grifo nosso).

Apesar do que possa parecer à primeira vista, para os príncipes russos a dominação mongol trouxe até mesmo benefícios: "os mongóis puseram um limite à feudalização mútua [dos príncipes russos] (...) e deram a eles um poderoso apoio para sua autoridade em casos de rebeliões sociais. A posição do príncipe vis-à-vis a veche aumentou poderosamente" (HOSKING, 2002, p. 55).

Além dos príncipes russos, também a Igreja Ortodoxa se beneficiou com a invasão mongol. Os benefícios para a Igreja surgiram em dois aspectos distintos: em termos práticos, a Igreja foi dispensada do pagamento de diversos tributos; além disso, os clérigos foram dispensados dos trabalhos forçados e do serviço militar, o que permitiu à Igreja desenvolver suas terras sem ser molestada pelos mongóis. O segundo aspecto que a dominação mongol trouxe como benefício para a Igreja foi em termos ideológicos, com a sua corporificação como a responsável pela "alma dos russos": ela se tornou a única instituição realmente "russa" do período, representando não apenas os aspectos espirituais mas também, e principalmente, a identidade nacional e também certa unidade política, posto que era a única instituição presente em todo o território da antiga Rússia de Kiev (HOSKING, 2002, p. 57). O fortalecimento da Igreja como instituição também permitiu à mesma neutralizar todas as demais religiões que ainda se encontravam presentes no território russo, suplantando todos os seus antigos adversários espirituais e políticos.

O crescimento da Igreja Ortodoxa neste período foi também um dos fatores que permitiu que, a partir do último quarto do século XIV, os russos pudessem começar a se rebelar contra os mongóis, processo este que acabou levando ao fim do domínio mongol em 1480: a Igreja equipou os príncipes russos com a ideologia e com as bênçãos divinas necessárias para que a libertação pudesse acontecer (KAISER; MARKER, 1994, p. 82). Além disso, a expansão da ideologia da Igreja e sua instauração nos mais diversos pontos do estado russo dominado pelos mongóis permitiu que, em um momento posterior, quando os russos se viram livres do domínio mongol, o estado russo centralizado se apresentasse como substituto formal da Igreja, se apropriando da presença da Igreja e tomando o seu lugar como instituição responsável pela administração efetiva do país.

Os mongóis, em um primeiro momento, se aproveitaram da desestruturação já existente na antiga Rússia de Kiev -- com seus três principais pólos de poder descritos anteriormente, a região Galícia-Volynia, Novgorod e a região de Vladimir-Suzdal -- e se instauraram como novos suseranos de toda a área anteriormente controlada por Kiev. A Rússia de Kiev como estado formalmente instituído deixou de existir -- o que se comprova pela absorção, por parte da Lituânia, da Polônia e da Hungria, da região da Galícia-Volynia, e pela presença independente da "República de Novgorod" e do "Principado de Vladimir-Suzdal" disputando entre si a primazia de ser o herdeiro da Rússia de Kiev. Nesta última área surge Moscou, cujos príncipes se aproveitam da própria invasão mongol para, com o apoio destes e também da Igreja Ortodoxa, consolidar seu poder político na região, subjugando os demais principados que estavam ao seu redor.

Anexo B -- Mapa das invasões mongóis


(Continua na próxima postagem.)


18 de dezembro de 2007

Formação do estado russo (II)

(Continuação da postagem anterior.)

Para além dos eventos históricos que fizeram com que estas três regiões se destacassem como centros de poder político, econômico e cultural da Rússia de Kiev nos séculos XII e XIII, é importante destacar também a estrutura política de cada uma destas regiões e sua importância no processo de formação do estado russo. Após Kiev perder poder como principal centro político e religioso do país, vemos as três regiões anteriormente citadas se desenvolvendo simultaneamente, mas com características extremamente distintas: a região da Galícia-Volynia tem como principal ator político os boiardos -- entendidos como senhores feudais russos; a região de Novgorod desenvolve um regime político democrático, com a participação de diversos estratos sociais -- inclusive populares -- no processo de escolha do líder político; e a região de Vladimir-Suzdal desenvolve um sistema político patrimonialista, no qual o líder político se apresenta não como um representante, mas sim como dono daquele território.

Na região da Galícia-Volynia o predomínio político dos boiardos é claro. Príncipes eram escolhidos e mantidos no poder única e exclusivamente de acordo com a vontade dos donos de propriedades rurais, não havendo nenhum tipo de interferência hereditária ou "popular" nas decisões políticas. Como mostra Riasanovsky (2005, p. 84):

O desenvolvimento interno da Volynia e da Galícia refletiu o crescimento e o poder excepcionais dos boiardos. Antigos e bem-estabelecidos nos solos férteis e em cidades prósperas, os proprietários rurais do sudoeste [da Rússia de Kiev] freqüentemente arrogavam para si próprios o direito de instituir e de destituir príncipes, e eles tiveram um papel central nas inúmeras lutas e intrigas políticas. (...) Em contraste com a autoridade dos boiardos, a autoridade dos príncipes na Galícia-Volynia representou um fenômeno posterior, superficial e altamente delimitado.

A mesma opinião é compartilhada por Hosking (2002, p. 61):

Os nobres poloneses-lituanos se tornaram muito poderosos não apenas porque eles eram a força dominante na economia. Eles exploraram o ainda mais rentável comércio de grãos do Báltico e pouco a pouco se apropriaram das terras e acabaram com os direitos tradicionais dos camponeses, até que estes foram reduzidos a servos obrigados a trabalhar em suas propriedades [dos nobres]. (...) [Os nobres] comandavam o exército e monopolizavam tanto a corte quanto a administração real. Apenas eles eram deputados no Sejm (Dieta) [assembléia] e em seus equivalentes provinciais.

Já em Novgorod a situação era bastante diferente. Se na região da Galícia-Volynia os boiardos interferiam abertamente na política, ignorando totalmente as massas e colocando no poder quem quer que quisessem e fazendo com que o príncipe ficasse dependente de sua vontade, em Novgorod o poder dos príncipes também declinou, mas os boiardos não eram os únicos a deterem poder político: este estava efetivamente distribuído entre o príncipe, os boiardos e os homens livres da cidade.

Em 1136 os habitantes de Novgorod derrubaram seu príncipe e estabeleceram um sistema que requeria que os novos príncipes concordassem com limitações no exercício de seu poder. O príncipe, o arcebispo e outros oficiais que governavam a cidade e seus longínquos territórios eram todos sujeitos à eleição pela assembléia da cidade (KAISER; MARKER, 1994, p. 83).

A principal instituição política de Novgorod era chamada de veche, ou seja, uma assembléia popular que reunia os homens adultos e livres de todas as famílias e cuja função principal era tomar decisões sobre os principais assuntos da cidade -- tais como fazer guerra e paz, definir legislações de emergência, escolher o arcebispo da cidade e escolher o príncipe governante, bem como delimitar suas funções enquanto fosse o escolhido para exercer o poder. "A assembléia podia ser convocada pelo príncipe, por um oficial, pelo povo ou até mesmo por uma única pessoa, tocando o sino da assembléia" (RIASANOVSKY, 2005, p. 77). Assim, "o príncipe de Novgorod tornou-se, em essência, um oficial contratado pela cidade, com autoridade e prerrogativas estritamente delimitadas" (RIASANOVSKY, 2005, p. 74).

Por sua vez, a região de Vladimir-Suzdal teve um regime político totalmente diferente dos dois anteriores: aqui a figura política principal, dominante, era o príncipe. "Enquanto a evolução de Novgorod enfatizou o papel da veche, e a evolução da Galícia-Volynia a dos boiardos, o príncipe prevaleceu no noroeste" (RIASANOVSKY, 2005, p. 86). Após o saque de Kiev em 1169, Vladimir tornou-se a "capital" da decadente Rússia de Kiev: seus príncipes construíram cidades, fortalezas e igrejas na região, suprimiram todo tipo de oposição e, principalmente, passaram a administrar as terras como se fossem propriedade própria e não como meros administradores das áreas sob sua jurisdição, como foi o caso na Galícia-Volynia e em Novgorod. O patrimonialismo era, portanto, a principal forma de dominação política da região, juntamente com o personalismo característico de regimes fechados: "Os príncipes de Moscou [situada próxima às cidades de Vladimir e de Suzdal] viam seus principados como propriedade pessoal (...)" (KAISER; MARKER, 1994, p. 83).

(Continua na próxima postagem.)


17 de dezembro de 2007

Formação do estado russo (I)

A partir de hoje publico um trabalho que fiz para uma disciplina do meu doutorado em História Política e Cultural na Universidade de Brasília. O trabalho ficou grande, com 40 páginas escritas por mim e mais 33 páginas de anexos. Alguns dos anexos serão publicados ao final dos respectivos textos em que são mencionados.

1. Introdução

Falar sobre o processo de formação do estado russo é tarefa árdua. A Rússia é um país com mais de mil anos de história e, mais que isso, uma história que, em sua origem, é comum a pelo menos três estados contemporâneos: Rússia, Ucrânia e Bielo-Rússia. O território que hoje corresponde a estes três estados foi palco de lutas intensas entre diversas civilizações -- tais como ucranianos, russos, mongóis, lituanos, poloneses e turcos, para citarmos apenas as principais. Suas fronteiras expandiram-se e contraíram-se continuamente durante os primeiros oito séculos de sua história, e o resultado de tais processos, somado ao próprio processo excepcional que marcou o século XX -- a criação da União Soviética -- faz com que, até os dias atuais, haja uma imensa dificuldade em se definir o que é efetivamente "russo" no contexto histórico-cultural de tal país.

O primeiro passo nesta empreitada diz respeito à temporalidade: quando surgiu o estado russo? Esta pergunta é de fundamental importância na contemporaneidade porque é sua resposta que dá sentido à própria definição da identidade da Rússia contemporânea. Porém, esta é uma pergunta, em princípio, difícil de ser respondida porque o estado russo se formou com características de três períodos distintos: o período do chamado "Principado de Kiev" (ou ainda "Rússia de Kiev"), que vai de 988, com a conversão de Vladimir ao cristianismo ortodoxo, até 1240, com a invasão mongol do território russo; o período da chamada "Rússia dos domínios", de 1240 até 1480, com a vitória final dos moscovitas sobre os mongóis, expulsando-os de seu território; e o período que vai de 1480 a 1682, chamada comumente de "Rússia Moscovita" ou "Moscóvia", que vai até o início do reinado de Pedro, o Grande.

Como o período é longo, englobando sete séculos de história, faz-se necessário delimitar o processo de forma espacial e temporal. Assim, iremos analisar aspectos que dizem respeito a eventos ocorridos que têm como foco central a cidade de Moscou, capital da Rússia. A escolha não é aleatória: como será posteriormente mostrado, Moscou foi a cidade que reuniu condições suficientes para se impor frente aos demais principados da época e levar adiante o processo de centralização política que, no século XVII, culminou no Império Russo. Portanto, nosso objeto será analisado no recorte temporal que vai de 1147, ano de fundação de Moscou, até 1682, ano em que Pedro, o Grande, então com 10 anos, foi oficialmente proclamado czar juntamente com seu meio-irmão Ivan. O presente trabalho tem como objetivo principal analisar algumas fontes referentes ao processo de formação do estado russo e relacioná-las ao contexto histórico no qual tal estado surgiu. Serão levados em consideração principalmente aspectos da esfera política, com eventuais citações de acontecimentos das esferas econômica e social do período. Da mesma forma, pretendemos fazer breves apontamentos sobre o impacto de tais acontecimentos na contemporaneidade.

O trabalho se dividirá em três partes principais. Na primeira parte será apresentado um breve histórico do período delimitado acima com o objetivo de contextualizar os principais fatos da época. Em seguida, será feita uma apresentação das fontes a serem utilizadas no trabalho, mostrando-se os principais tópicos presentes nas mesmas. Por fim faremos, na conclusão, uma pequena análise das fontes correlacionando-as com o contexto histórico apresentado na primeira parte do trabalho.

2. Contexto Histórico

O período a ser analisado por este trabalho é comumente chamado, na literatura especializada, de período "pós-Rússia de Kiev", ou seja, o período no qual o principal estado eslavo entrou em declínio e possibilitou a conquista de seu próprio território pelos mongóis vindos da Ásia. Como afirmam Kaiser e Marker (1994, p. 79), "em meados do século XII a Rússia de Kiev entrou em declínio. As guerras entre os príncipes ficaram mais ferozes, enquanto sucessivas ondas de ataques dos nômades das estepes [vindos da Ásia] continuaram a diminuir a vitalidade da economia do país".(1) O antigo estado eslavo, cuja capital era a cidade de Kiev (atual Ucrânia), não estava sendo capaz de manter sua posição como um estado próspero e poderoso principalmente pelo fato de os sucessivos príncipes não serem capazes de manter a unidade estrutural do país. Com os membros dos clãs dominantes tornando-se mais numerosos, eles se identificavam com seus interesses regionais e não com a manutenção do estado como um todo.

A desintegração do Principado de Kiev era fortemente latente já antes antes da invasão mongol de 1240. Associado ao enfraquecimento dos líderes em Kiev, três outras regiões ascenderam a partir do século XI como importantes centros de poder, formalmente ainda na época da Rússia de Kiev. A primeira região corresponde ao oeste da Rússia de Kiev, na fronteira com a Hungria e com a Polônia, lugar de solos férteis e com fortes contatos comerciais com a Europa central. A segunda região corresponde à cidade de Novgorod, localizada ao norte do país, e que se tornou um importante pólo comercial, principalmente pelos seus contatos freqüentes com o Ocidente, especialmente por meio da Liga Hanseática. A terceira foi a região noroeste, entre as cidades de Vladimir e Suzdal, que controlavam o comércio na área do rio Volga e se tornaram um pólo de poder que viria, futuramente, a se opor à própria capital, Kiev (ver Anexo A).

A primeira região, localizada a oeste de Kiev, era chamada de Galícia-Volynia. Sua importância comercial era fundamental para a Rússia de Kiev, já que esta área era a região de fronteira com a Europa central, especialmente com a Hungria e com a Polônia, sendo, portanto, responsável por boa parte do tráfego comercial com a Europa central. Além disso, sua importância advém do fato de que em 1202 o príncipe Roman, o Grande, conquistou a cidade de Kiev, buscando manter o domínio eslavo na região. Entretanto, no século XIV a região foi dividida entre o Grão-Ducado da Lituânia, a Polônia e a Hungria, sendo que a maior parte de seu território foi incorporada ao Grão-Ducado da Lituânia (HOSKING, 2002, p. 58-62; RIASANOVSKY, 2005, p. 84).

Ainda que fosse um pólo comercial importante já a partir do século XI, até 1136 Novgorod estava submissa à soberania do grão-príncipe de Kiev como sua segunda cidade. Entretanto, nesta data os cidadãos de Novgorod expulsaram um enviado de Kiev e passaram a administrar a cidade de maneira independente, escolhendo seus próprios príncipes por meio da veche, ou seja, de uma assembléia na qual participavam todos os estratos sociais livres. A autonomia de Novgorod seria reforçada mais ainda em 1156, quando a cidade se deu o direito de escolher seu próprio arcebispo sem interferência do metropolitano de Kiev (HOSKING, 2002, p. 62; RIASANOVSKY, 2005, p. 74).

Os interesses próprios da região de Vladimir-Suzdal também eram evidentes ainda no período da Rússia de Kiev: diversos de seus príncipes atacaram Kiev em diversas ocasiões (KAISER; MARKER, 1994, p. 79). O principal ataque foi realizado por Andrei Bogoliubskii em 1169: após pilhar Kiev, tendo roubado inclusive arte religiosa, Andrei retornou a Vladimir e instaurou nesta cidade a capital do Principado de Vladimir-Suzdal. Este ato reforçou o fim do poderio de Kiev como centro dos eslavos, transferindo efetivamente o poder político para a região noroeste do antigo país (HOSKING, 2002, p. 66; RIASANOVSKY, 2005, p. 74).

Anexo A -- Mapa da "Rússia dos Domínios"


(1) Todas as traduções neste trabalho são de responsabilidade do autor do mesmo.

(Continua na próxima postagem.)


14 de dezembro de 2007

Democracia na América Latina (II)

(Continuação da postagem anterior.)

Tedesco parte, então, em busca de algo mais que o modelo formal de democracia. Para ela, "sem democracia formal, a possibilidade de transformar as estruturas políticas, econômicas e sociais é limitada. No entanto, a democracia política não pode coexistir em longo prazo com o autoritarismo social, a exclusão econômica e com restrições à liberdade civil" (2004, 35, grifos no original). E para ela, a única forma de rever o potencial de transformação social do qual a democracia é capaz é analisar não a democracia propriamente dita, mas o papel do estado na formação da sociedade, já que esses dois conceitos -- democracia e estado -- não são os "dois lados da mesma moeda".

Depois de vinte anos estudando as transições democráticas, a consolidação democrática e a qualidade da democracia, parece apropriado avançar e focalizar a atenção no estado. Isso nos oferece maneiras de entender as estruturas sociais, políticas e econômicas sobre as quais a democracia, como um regime político, é proclamada. (...) A chave [para a solução do problema] não é uma democracia de baixa qualidade per se, e sim as desigualdades das relações sociais que estão refletidas no estado-instituição e nos valores que prevalecem na sociedade. A democracia não pode ser aprofundada se o estado-instituição ainda reflete relações sociais não-democráticas. O debate deve reconhecer as diferenças entre os conceitos de regime democrático e de estado democrático. (...) Assim, é necessário mover a atenção do debate sobre democracia em direção ao estado, já que esse último guarda em si, mais profundamente, as relações sociais em determinada época e território, que podem ser governadas, ou não, sob um conjunto de regras democráticas (Tedesco 2004, 35, grifos no original).

O estado só irá ser democrático quando a democracia estiver inserida em suas estruturas internas, e quando o estado garantir, acima de tudo e efetivamente, a igualdade dos cidadãos frente à lei. As relações sociais também devem ser democráticas, e apenas a igualdade efetiva perante a lei poderá fazer, segundo Tedesco, com que a democracia exista de fato, e não apenas de direito. Para ela o estado, na forma como se encontra atualmente, combina autoritarismo social, exclusão econômica e liberdades civis restritas com democracia política, ou seja, não é um estado verdadeiramente democrático (Tedesco 2004, 36). Devido a reformas mal-feitas, conforme explicado anteriormente, o estado atual na América Latina mantém a mesma estrutura dos períodos pré-autoritário e autoritário, onde a distribuição desigual de renda é refletida na fraca participação política da população e onde o estado não é efetivo em suas funções, as quais, por sua vez, irão dar base de apoio ao regime democrático. Ainda, vale destacar que o estado atual é mal-visto na América Latina justamente por ter se associado às reformas econômicas: deu-se ênfase exagerada à reforma econômica e associou-se a mesma à democracia. Conseqüentemente, se a economia vai bem, a democracia é bem-vista; caso contrário, a democracia não serve. Isso é resultado de um regime democrático, mas não um estado democrático; daí a necessidade de se estudar, segundo Tedesco (2004, 36), se as estruturas estatais são (ou foram) democratizadas, e não apenas se o regime é democrático ou não.

Referências bibliográficas:

TEDESCO, Laura. “Democracy in Latin America: issues of governance in the Southern Cone”. In: Bulletin of Latin American Research, Vol. 23, Nº 1, pág. 30-42. Oxford, Malden (MA): Blackwell Publishing, 2004.


13 de dezembro de 2007

Democracia na América Latina (I)

O objetivo da autora é fazer uma breve análise sobre alguns artigos que tratam da temática transição e consolidação democrática, tema debatido em um painel da Conferência Anual da Sociedade de Estudos Latino-Americanos do Reino Unido, painel esse ocorrido em 2001. Ao mesmo tempo, pretende levantar um pequeno debate acerca da necessidade de se estudar o papel do estado nesses mesmos processos, bem como a função da classe política em construir um estado democrático e não apenas uma sociedade democrática.

Segundo ela, nas décadas de 1970 e 1980 diversos autores buscaram fazer análises sobre os processos, respectivamente, de transição e de consolidação da democracia nos países latino-americanos. Os trabalhos referentes à transição basearam-se nas idéias de criação e/ou reforma de instituições, no papel das elites políticas e na construção de pactos, enquanto aqueles referentes à consolidação têm sua atenção voltada ao papel da sociedade civil nesse processo, bem como leva em consideração os fatores econômicos que influenciam o mesmo (Tedesco 2004, 31).

Levando-se em consideração os trabalhos do segundo tipo, a democracia é, nas palavras de Przeworski (citado em Tedesco 2004, 31), uma "incerteza organizada", onde os atores não sabem o que pode acontecer, ou então sabem o que é possível acontecer, mas não sabem como isso se sucederá, ou ainda sabe o que é possível e como pode acontecer, mas não o quê. No entanto, Tedesco levanta a seguinte questão: de que a democracia na América Latina não é uma "incerteza organizada", já que o estado não é capaz de manter a igualdade dos indivíduos perante a lei e, conseqüentemente, alguns são beneficiados em detrimento de outros -- o que não garante a incerteza para todos, já que alguns têm certeza de como as coisas funcionarão para si próprios. A autora cita novamente Przeworski, quando este autor diz que "(...) o passo decisivo em direção à democracia é a devolução do poder de um grupo de pessoas para um conjunto de regras", o que, segundo Tedesco, não aconteceu na América Latina, já que algumas pessoas se utilizam de contatos pessoais com membros da classe política, por exemplo, para obterem benefícios para si mesmas. Não há, nos estados latino-americanos, um balanço entre "perdas e ganhos", balanço este fundamental à vida democrática, já que o estado não conseguiu garantir a igualdade de todos perante a lei.

No âmbito econômico, as reformas instauradas nos países da região foram criadas por tecnocratas "de cima para baixo", sem a devida participação popular. O argumento utilizado para esse isolamento foi a idéia de que o envolvimento popular em um momento de transição poderia ser ruim internamente, com o retorno dos militares ao poder, e também externamente, com o perigo de fuga de capitais internacionais que, à época, eram fundamentais para a manutenção das reformas. "O discurso do governo era de que ‘não havia alternativas às reformas’. Ao tentar isolar a implementação das reformas, os governos tenderam a tratar questões políticas, econômicas e sociais como compartimentos separados" (Tedesco 2004, 32). Como conseqüência desse tratamento diferenciado dado a essas três esferas, "a classe política tentou ignorar as conseqüências políticas e sociais das reformas econômicas" (Tedesco 2004, 32) ao acreditar que as mesmas poderiam ser divididas em duas: primeiramente, aplicar-se-iam reformas macroestruturais, cujo objetivo era atingir estabilidade, e em seguida seriam aplicadas reformas na microeconomia, juntamente com alterações políticas institucionais que garantiriam o bom funcionamento político, econômico e social do país.

"Essa concepção de dois conjuntos diferentes de reformas a serem aplicados sequencialmente foi errônea" (Tedesto 2004, 33). Segundo ela, essa concepção estava errada, em primeiro lugar, porque ambas as reformas buscavam alterar as relações sociais e as instituições estatais, e por isso deveriam ser aplicadas ao mesmo tempo. Em segundo lugar, essa visão é otimista por acreditar que as reformas que viessem em segundo lugar não entrariam em conflito com as que vieram primeiro: "esse argumento pressupõe que a implementação das reformas de primeira geração obteve sucesso e ignorou os conflitos que poderiam ter surgido como conseqüência das reformas" (Tedesco 2004, 33). Essa diferença temporal entre a aplicação de reformas econômicas e reformas estruturais no estado trouxe como conseqüência a inadequação deste último em lidar com os novos problemas advindos da reforma econômica, já que o estado estava "acostumado" a lidar com um tipo de problema e, de repente, se viu obrigado a utilizar suas antigas estruturas para solucionar novos problemas advindos da reforma econômica, o que, por sua vez, enfraqueceu ainda mais o novo, porém já frágil, estado democrático. "A idéia de seqüência -- tratando primeiro com os militares, depois com a economia e finalmente com a qualidade da democracia -- negligenciou o papel necessário do estado-instituição na organização das vidas tanto pública quanto privada dos grupos e dos cidadãos individuais" (Tedesco 2004, 33). Durante as reformas econômicas, o estado foi reduzido, ao invés de ser reorganizado; a conseqüência lógica disso foi a diminuição da capacidade estatal de exercer as funções que vinha exercendo anteriormente, no que concerne à população. O estado intervencionista passou a ser associado ao autoritarismo, e devia, portanto, ser jogado fora e substituído por um novo modelo estatal. Como conseqüência, o estado foi incapaz de satisfazer as demandas da população, o que contribuiu ainda mais para o aumento da desigualdade social e da concentração de renda nas mãos de poucos. A democracia, nesse sentido, é relegada a segundo plano, como um instrumento para obtenção de dirigentes, em estilo schumpeteriano, já que os indivíduos estariam mais preocupados com seus problemas econômicos que políticos.

(Continua na próxima postagem.)


12 de dezembro de 2007

Insatisfação com a democracia (II)

(Continuação da postagem anterior.)

A consequência deste sistema é “(...) o estabelecimento de um grupo de cidadãos ativos como representantes do público por meio de mecanismos que são menos defensáveis democraticamente do que aqueles que criam como autoridade local membros eleitos”, já que estes últimos são responsíveis frente ao restante da população e necessitam do apoio de parte desta população para se manterem como representantes eleitos, além de conduzirem seus trabalhos de maneira pública e, portanto, responsiva. Assim, apesar deste novo sistema implantado se dizer responsivo e aberto à participação popular, é duvidoso dizer que o mesmo aprimora a democracia em nível local (Bonney 2004, 47).

“Outra forma de aprimorar a participação popular no sistema democrático local que foi recentemente proposta com entusiasmo e recebeu apoio oficial (...) e que também requer alguma atenção crítica são os júris dos cidadãos e os painéis públicos”. No primeiro caso, permite-se a um pequeno número de residentes a participar de discussões abrangentes e debater sobre os maiores problemas que afetam suas comunidades. Suas conclusões podem ou não influenciar as decisões da autoridade local. Tal mecanismo faz com que a autoridade local tome suas decisões sabendo qual a opinião e o ponto de vista dos cidadãos a respeito daquele determinado tema em pauta, os quais são selecionados antecipadamente pela autoridade local. O problema deste mecanismo é o fato de que ele garante a participação a apenas uma pequena parcela da população, pois são proporcionalmente poucos os que tomam parte nos debates sobre os temas relevantes; além disso, “(...) pode-se argumentar que eles [os júris] são essencialmente ferramentas do executivo. Seu uso indica uma falta de credibilidade nos processos democráticos representativos normais e ajuda a minar os mesmos ainda mais, ao surgirem como uma nova opção em relação aos mesmos”. Já os painéis públicos são mecanismos de larga escala de representação de cidadãos que se submetem a questionários sobre a qualidade, a eficiência e a satisfação – dentre outros itens – em relação aos serviços prestados e às políticas criadas pela autoridade local. No entanto, as mesmas críticas feitas aos júris dos cidadãos são feitas também aos painéis públicos: eles “(...) super-representam os grupos sócio-econômicos das camadas mais altas, os usuários dos serviços públicos e aqueles mais favoravelmente inclinados [a avaliar positivamente] tais serviços” (Bonney 2004, 49).

Para Bonney, a solução para estes problemas de falta de participação é o fortalecimento da democracia representativa local.

(...) Uma tendência do contínuo debate democrático é composto pelos desafios à representatividade e à legitimidade da forma de organização das várias instituições democráticas. (...) Isto se aplica tanto às inovações associadas com a tentativa de revigorar a democracia local quanto às instituições [democráticas] mais fortalecidas (...) (Bonney 2004, 50).

O novo sistema proposto pelos “Novos Trabalhistas” falhou tanto por achar que o sistema antigo era muito falho (o que não era verdade) quanto por imaginar que as soluções propostas resolveriam todos os problemas. Portanto, o autor afirma que se por um lado as soluções propostas foram boas para se pensar novas formas de democratização da sociedade, por outro apenas a democracia representativa em sua concepção liberal é capaz de garantir, ao mesmo tempo, a necessária accountability e a suficiente participação popular no governo local na Inglaterra.

Referências bibliográficas:

BONNEY, Norman. “Local democracy renewed?”. In: The Political Quarterly Publishing Co. Ltd. Oxford, UK; Malden, USA: Blackwell Publishing Ltd., 2004. Pág. 43-51.


11 de dezembro de 2007

Insatisfação com a democracia (I)

O autor pretende mostrar como as reformas implantadas pelo que chama de “Novos Trabalhistas” a partir de 1997 e aprofundadas posteriormente por Tony Blair não trouxeram os resultados esperados, ou seja, tais reformas, ao invés de melhorarem e aprofundarem a democracia na Inglaterra, fizeram com que, ao contrário, uma nova classe de burocratas surgisse e, além disso, fizeram também com que, em nível local, o país se tornasse ainda menos democrático do que era antes. O autor defende tal idéia partindo de estudos feitos por outros autores, estudos estes que mostraram que

(...) entre as críticas [feitas ao] sistema então existente (...) estão uma alegada falta de accountability e responsividade para com as pessoas, baixa participação nas eleições, falta de participação popular em nível local e de envolvimento deliberativo na tomada de decisões, centralização do governo (...) e um número comparativamente baixo de pessoas em posições eleitas (Bonney 2004, 43).

Bonney afirma ainda que os “Novos Trabalhistas” impuseram uma “reforma” no modelo político de então da Inglaterra por acreditarem que o nível local de tomada de decisão estaria nas mãos dos “Velhos Trabalhistas”. Com o objetivo de não perder o poder, os “Novos Trabalhistas” propuseram um novo sistema político, mais centralizado, onde os níveis locais dependeriam diretamente do nível nacional e funcionaria como uma extensão do governo central em nível local: “não se deve confiar no governo local”. Este passou a trabalhar em conjunto com agências públicas e privadas, as quais traziam as determinações diretamente do governo central para serem aplicadas em nível local (Bonney 2004, 43-4).

Citando uma série de exemplos, Bonney chega à conclusão de que as diversas agências inglesas que promovem a “inclusão social” são geridas pelo governo central, seja por meio de apoio financeiro, logístico ou mesmo institucional.

Os Programas de Inclusão Social (SIPs) são, na realidade, iniciativas do poder executivo escocês (vindas do poder central) que foram estabelecidas separadamente da autoridade local, mas com um limitado envolvimento das autoridades locais por toda a Escócia. Eles são uma indicação direta da falta de fé, por parte do governo central, nas autoridades locais, e também uma tentativa de trabalhar de maneira independente das mesmas, ainda que haja, até certo ponto, uma associação com o governo local (Bonney 2004, 45).

O financiamento de tais programas é independente (privado), o que faz com que a prestação de contas seja trabalhosa e, muitas vezes, não seja completa. Se tais iniciativas fossem tomadas por parte das autoridades locais, o problema de falta de accountability não aconteceria. Tais agências e organizações, por trabalharem de maneira privada, ou fechada, não permitem o controle público de suas ações. O máximo que o “cidadão comum” consegue obter de prestação de contas em relação a tais organizações vem por meio da mídia, a qual também distorce o conteúdo da mensagem. Cria-se uma estrutura para-governamental que cresce à sombra e com o auxílio e incentivo do governo central e dos próprios governos locais, já que estes, destituídos de seu verdadeiro poder político, não vêem outra alternativa que não seja se aliar a tais corporações para garantir ainda algum tipo de participação na tomada de decisões. “(...) O resultado cumulativo é uma profunda falta de coerência em geral e de accountability” (Bonney 2004, 45).

Por outro lado, ao mesmo tempo que garante às organizações de “inclusão social” um importante e decisivo papel na tomada de decisões em âmbito local, o governo dos “Novos Trabalhistas” também buscou novas maneiras de integrar a população nos processos de criação de políticas públicas e de tomada de decisão do governo local. Tais maneiras incluem “(...) inovações como assembléias cívicas, painéis públicos, júris populares e fóruns de área[s específicas]”. O exemplo dado pelo autor refere-se à cidade de Aberdeen, onde foi fundado um “Fórum Cívico” no qual os diversos grupos e organizações da comunidade são representados. Tal Fórum tem como função principal dar conselhos e idéias à “Aliança da Cidade de Aberdeen”, que por sua vez é uma organização que incorpora outras dezesseis agências envolvidas no plano de desenvolvimento da cidade. Representantes vindos do Fórum têm direito a participar do próprio processo de tomada de decisões dentro da Aliança, e esta, por sua vez, criou outros fóruns internos sobre os mais diversos assuntos (Bonney 2004, 46).

(Continua na próxima postagem.)


10 de dezembro de 2007

O quanto a massa apóia a democracia

O autor pretende fazer comparações entre vários países de diversas áreas culturais, como países ocidentais, países da ex-União Soviética e também países islâmicos, com o objetivo de descobrir até que ponto há apoio em tais países ao regime democrático. Segundo o autor, é necessário fazer tal tipo de comparação porque “(...) o apoio público à democracia diminuiu em alguns países, muitos dos quais são democráticos apenas em teoria”. A principal fonte do autor é o World Values Survey durante o período de 1999 a 2001, e apesar de apoiar tal tipo de pesquisa (assim como outras semelhantes), Inglehart afirma também que “(...) ninguém demonstrou que o alto nível de apoio popular a estes itens [constantes nas diversas pesquisas de opinião e que mostram o elevado apoio à democracia] leva necessariamente a [criação de] instituições democráticas”. Ele pretende medir o quão forte respostas a determinadas pesquisas de opinião pública estão ligadas a altos (ou baixos) níveis de democracia (2003, 51). Inglehart utiliza a tabela de países autoritários e democráticos proposta pela Freedom House.

O resultado de sua pesquisa é claro: apesar dos resultados das entrevistas mostrarem que as pessoas defendem um regime democrático em seus países, isso não significa necessariamente que este regime tenha criado raízes profundas nos mesmos. Para o autor, itens como tolerância, confiança, atividade política e liberdade de expressão são os que mais podem garantir se um país é democrático ou não, deixando em segundo plano a percepção das pessoas acerca deste tema. Como conseqüência, o desenvolvimento econômico é visto por Inglehart como condição fundamental para a implantação, ampliação e consolidação da democracia, já que o desenvolvimento econômico traz em seu bojo os itens citados acima, os quais são mais característicos do aprofundamento da democracia em determinado país. Em outras palavras, o

apoio aberto à democracia parece uma condição necessária, mas não suficiente, para a emergência de instituições democráticas. A menos que a massa pressione por democracia, é pouco provável que as elites com sede de poder dêem ao público o poder para removê-las de seus cargos. Atualmente, o apoio aberto à democracia está difundido entre o público por todo o mundo. Mas atitudes favoráveis em direção à idéia geral da democracia não são suficientes. Para as instituições democráticas sobreviverem em longo prazo, elas precisam de uma cultura de massa de tolerância, confiança, orientação participatória e ênfase na auto-expressão, além de níveis razoavelmente altos de bem-estar [econômico] subjetivo. Em grau impressionante, as sociedades cujos públicos são classificadas em nível alto de valores de auto-expressão mostram altos níveis de democracia (Inglehart 2003, 52).

A democracia é vista por Inglehart como “(...) virtualmente o único modelo político com apelo global. (...) As principais alternativas à democracia foram desacreditadas”, tais como o fascismo ou o comunismo. Ele chega a esta conclusão baseando-se em dados de pesquisas de opinião onde se buscou saber se a democracia é tida como um regime regular ou bom. O o nível de apoio mais baixo à democracia obtido por estas pesquisas vem da Rússia, com 62% da população; o Brasil fica com 85% de apoio popular ao regime democrático, enquanto em primeiro lugar aparecem Albânia e Egito, com 99% de apoio (2003, 52).

No entanto, o apoio à democracia não é tão difundido e sólido quanto parece. Ao se fazer uma pesquisa sobre se o governo de um líder forte, que não tem de se preocupar com eleições ou parlamentos, seria uma boa maneira de se governar um país, os resultados foram bem diferentes da pesquisa anterior: “em nenhum das democracias estáveis (continuamente sob um governo democrático nos últimos 30 anos) a maioria endossou esta opção. Mas em outras 18 sociedades, a maioria apóia esta opção autoritária”. O Brasil aparece nesta pesquisa com 61% de sua população apoiando esta opção (Inglehart 2003, 52). A explicação para este baixo apoio à democracia em tais países dada por Inglehart (2003, 53) baseia-se, mais uma vez, no âmbito da economia: as taxas de apoio mais altas a tal opção autoritária foram obtidas em países da ex-União Soviética e em países da América Latina, além de alguns países da África. Estes países tiveram seu primeiro contato com um regime democrático em momentos de convulsões econômicas, o que levaria as pessoas de tais países a associarem o baixo desempenho econômico ao modelo democrático.

Como examinar, portanto, até que ponto há um apoio verdadeiro, por parte da população, ao regime democrático? Inglehart acredita que a cultura política -- definida como “orientações relativamente bem enraizadas e duradouras” -- do país é fundamental para se avaliar o apoio ao regime democrático, e por este motivo prefere fazer uma comparação com base em longos períodos de tempo:

As correlações entre atitudes da massa e democracia são sistematicamente mais altas quando usamos um período longo, pois a cultura política prediz melhor a estabilidade em longo prazo da democracia do que o nível democrático da sociedade em determinado ponto no tempo. (...) É improvável que uma sociedade mantenha suas instituições democráticas em longo prazo, a menos que a democracia tenha apoio contínuo entre o público (Inglehart 2003, 53-4).

É na cultura política que são encontrados os itens já citados anteriormente (tolerância, confiança, ativismo político, bem-estar econômico e apoio à liberdade de expressão) e que possibilitam descobrir se um país é mais propenso ao regime democrático que outro, sendo a análise de tais itens mais importante para a definição de um país como democrático ou não do que o apoio aberto à democracia.

Ao utilizar o critério da cultura política em longo prazo para se avaliar a tendência à democracia por parte da sociedade, Inglehart afirma que o desenvolvimento econômico -- o que ele chamou antes de “bem-estar subjetivo” -- é o principal mantenedor de uma tendência positiva (ou negativa) em apoiar a democracia. “O desenvolvimento econômico tende a permitir uma crescente ênfase popular em valores de auto-expressão -- fornecendo condições sociais e culturais que dão à democracia mais chances de emergir e sobreviver” (2003, 55). Além disso, outra comprovação de que o desenvolvimento econômico é fundamental para o desenvolvimento e para a manutenção da democracia -- com a criação de uma cultura política que dê suporte à mesma -- é dada por meio da análise dos países asiáticos e islâmicos: para Inglehart, os primeiros estão caminhando em direção à democracia porque têm se desenvolvido economicamente nos últimos anos, enquanto que os segundos -- à exceção da Turquia e do Irã, que segundo o autor se modernizaram economicamente em anos recentes -- mostram um apoio na prática muito menor à democracia do que o declarado nominalmente em entrevistas.

Inglehart (2003, 56) aponta a seguinte relação causal: o desenvolvimento econômico leva a níveis maiores de valores de auto-expressão (itens descritos anteriormente), o que, por sua vez, leva a um nível maior de democracia. Para ele, o desenvolvimento econômico é importante por contribuir para a emergência destes valores, que por sua vez estão contidos na cultura política; como conseqüência, a cultura política -- analisada em longo prazo -- é, para Inglehart, fundamental para a implantação e manutenção da democracia em determinado país. No entanto, Inglehart não defende a idéia inversa, ou seja, a de que a democracia leva à criação de uma “boa” cultura política: “esta interpretação é tentadora e sugere que temos uma solução rápida para a maioria dos problemas mundiais: adotar uma constituição democrática e viver feliz para sempre”. O autor toma como exemplo desta impossibilidade os países que compunham a ex-União Soviética: após sua mudança para um regime democrático, suas sociedades não se tornaram mais tolerantes, confiantes, felizes com seu nível de vida ou mais propensas a aceitar a liberdade de expressão, do que antes. Também os países da América Latina são vistos por Inglehart como um exemplo que é a cultura política -- com seus valores já citados -- que leva à democracia, e não a democracia que leva a uma maior tolerância, confiança etc. Inglehart refuta também a idéia de transição para a democracia por meio de acordo entre elites, defendendo mais uma vez a proeminência do desenvolvimento econômico como agente indutor de processos de democratização, ao afirmar que as instituições democráticas mantiveram-se estabelecidas apenas em países considerados ricos; o único país de baixa renda no qual as instituições democráticas funcionaram por mais de dez anos seguidos foi a Índia (2003, 56).

Referências bibliográficas:

INGLEHART, Ronald. “How solid is mass support for democracy -- and how can we measure it?”. In: PS: Political Science and Politics. Vol 1. nº 2, American Political Science Association. 2003.


8 de dezembro de 2007

O mercado e a norma (II)

(Continuação da postagem anterior.)

Reis (2003, 63) nota que

(...) não há motivo para se presumir que as normas necessárias à operação rotineira do mercado sejam apenas as destinadas à proteção da propriedade privada e da integridade física dos participantes. (...) Saúde e educação, por exemplo, podem ser bens tão públicos quanto a segurança. Epidemias podem, em princípio, devastar uma economia.

Da mesma maneira, sem regulação estatal o mercado, seguindo mecanismos estritamente racionais, poderá criar uma crise de superprodução, ou ainda poderão surgir monopólios e/ou oligopólios que, apesar de serem individualmente a expressão máxima da racionalidade, irão contribuir para o declínio e eventual "fechamento" do mercado. Este apenas poderá funcionar em sua potencialidade máxima se houver um aparelho estatal que seja o "fiador" das normas, regras e leis junto ao público, ao mesmo tempo em que coordena as expectativas de uma maneira que seja coletivamente desejável.

No entanto, mesmo com a clara necessidade de coordenação da sociedade pelo estado -- incluindo-se aqui também o controle do mercado --, há aqueles que defendem que as atividades mercantis devem ser deixadas livres para que sejam "automaticamente reguladas" pela competição entre os que tomam parte nas relações mercantis -- "(...) o que produz nos autores liberais a visão do mercado como ‘ordem espontânea’ e os induz à defesa do ‘estado mínimo’. Entretanto, dada a relativa ineficácia da sanção moral em uma sociedade complexa (...)", cabe ao estado coordenar a sociedade por meio das normas citadas anteriormente para garantir uma "regulação competitiva mercantil da coexistência" entre os entes que tomam parte das relações de mercado, e entre estes e os demais entes da sociedade que tomam parte das relações políticas de uma sociedade (Reis 2003, 65).

O estado liberal deverá ser um estado "expandido" por natureza, já que é sua função proteger os direitos dos cidadãos de determinada sociedade. O estado liberal deve "(...) exercer maior controle e maior vigilância que seus antecessores sobre os atos dos cidadãos, ainda que o governante esteja, simultaneamente, mais constrangido por normas legais do que em outras formações políticas" (Reis 2003, 65). Uma destas funções é a própria proteção da propriedade privada, base do liberalismo, pois é com a existência desta propriedade privada que o próprio estado irá subsistir por meio do recolhimento de impostos. É uma situação contraditória: o liberalismo deseja que o estado seja o menor possível, não interferindo em nenhum momento nas relações econômicas; no entanto, a interferência nestas mesmas relações econômicas é fundamental porque é ela que garante a existência da propriedade privada. Ao mesmo tempo, ao estado cabe o direito de impor compensações aos eventuais grupos que se sintam prejudicados e façam pressão junto ao estado para serem beneficiados de alguma maneira.

A intervenção estatal cada vez maior nas relações econômicas se dá como resultado da conquista paulatina, por parte dos cidadãos (em contraposição à elite governante), dos direitos civis e dos direitos políticos, culminando com a obtenção e garantia dos direitos sociais. A possibilidade de "tirania da maioria" voltava à tona no início do século XX, com a possibilidade de que a própria sociedade escolhesse, de maneira democrática, ser governada despoticamente. "A partir do início do século XX (...) generaliza-se a intervenção governamental nas disputas na indústria, o que traz como contrapartida natural a intervenção, fragmentada que seja, das corporações no funcionamento do governo" (Reis 2003, 67). Ainda segundo o autor, é este co-gerenciamento da sociedade praticado pelas elites política e econômica, somado à participação política dos cidadãos, o que levou ao surgimento dos estados de bem-estar social após a Segunda Guerra Mundial, quando os indivíduos passam não apenas a lutarem pelos seus direitos mas também passam a ter consciência dos seus deveres como cidadãos. Por outro lado, os governos e o mercado se vêem frente à necessidade de incluir todas as camadas sociais nas relações políticas e mercadológicas, já que é apenas por meio desta inclusão (social) que as aspirações da sociedade serão concretizadas e o sistema se manterá em equilíbrio.

"Contemporaneamente, lidamos (...) com os riscos envolvidos no recente processo de desregulamentação econômica no plano infranacional, que freqüentemente tem resultado em certo desmantelamento do conjunto de normas que compõem os direitos sociais". O resultado desta desregulamentação, no entanto, levará a um movimento contrário, de mais regulamentação e de intervenção estatal cujo objetivo é a manutenção do status quo -- incluído aqui a manutenção de um nível mínimo de vida para os cidadãos, já que sem este nível mínimo de vida a possibilidade de revoltas ou revoluções aumentaria bastante. No entanto, como esta regulamentação será variável para cada ator envolvido no processo, a tendência é surgimento de "(...) longos períodos de grave turbulência política (...)" como resultado do atual processo de desintegração do estado nos moldes neoliberais (Reis 2003, 71).

Devido à desregulamentação ocasionada pela necessidade de "reforma do estado", a situação da democracia seria complicada e delicada.

(...) Parece imprevisível o efeito desse desmantelamento da legislação social sobre a legitimidade futura do arcabouço institucional das democracias contemporâneas. (...) Se se dissemina a percepção de que o sistema político simplesmente se torna injusto, deixando de promover alguns valores socialmente compartilhados, então todo o aparato institucional democrático se tornará particularmente vulnerável a eventuais "ataques carismáticos" (Reis 2003, 71, grifo no original).

Ou seja, a desregulamentação e desfragmentação estatal promovida pelos neoliberais leva à ausência de democracia -- ou, pelo menos, à diminuição das possibilidades de participação democrática por parte dos cidadãos, já que o estado deverá regular cada vez mais a sociedade e o mercado para que o próprio país não entre em colapso.

A conclusão a que o autor chega é que a democracia legítima na sociedade moderna depende de um fator importante -- o caráter procedimental da democracia: "(...) esses procedimentos apóiam-se em formas específicas de tratamento entre pessoas tomadas individualmente, pessoas essas cujo bem-estar (definido de maneiras variadas por cada uma delas) se torna o grande fim legítimo a ser buscado (...)". Ao não se buscar "fins substantivos", a democracia de procedimentos garante que todos poderão buscar seus fins de acordo com suas convicções, seus meios e seus desejos específicos, os quais nem sempre são compatíveis com os dos demais indivíduos "pois, na sociedade moderna, liberal, o fim a ser coletivamente perseguido não mais pode consistir em um feito coletivo, mas sim numa certa liberdade -- desfrutada individualmente -- para buscarmos o fim que pessoalmente nos aprouver, contanto que ele não inclua o uso direto de violência sobre terceiros" (Reis 2003, 72). Apenas com a "igualdade de oportunidades", somada a uma certa supervisão do estado (para evitar que a busca da felicidade por um não diminua as chances de outro) é que a democracia estará garantida e segura. Só com uma competição justa entre os indivíduos é que os mesmos podem lutar por seus objetivos sem atrapalhar ou prejudicar outros indivíduos que também farão de tudo para a obtenção dos seus próprios objetivos.

(...) O poder público tem a atribuição complexa e paradoxal de interferir continuamente na operação do mercado para de fato refundar permanentemente o próprio mercado, ao mantê-lo em um estado tão próximo quanto possível da "concorrência perfeita" e amparar minimamente os casos de insucesso, dada a tendência concentradora que resulta da livre interação dos agentes econômicos no mercado (Reis 2003, 72, grifos no original).

Referências bibliográficas:

REIS, Bruno P. W. "O mercado e a norma: o estado moderno e a intervenção pública na economia". In: Revista Brasileira de Ciências Sociais. Vol. 18, Nº 52, pág. 55-79, 2003.


7 de dezembro de 2007

O mercado e a norma (I)

O artigo tem como objetivo fundamental tratar as relações entre estado e mercado e como as mesmas se refletem na teoria democrática. Segundo o próprio autor, seu ensaio

(...) procura analisar o problema das relações entre o estado e o mercado, entre a democracia e o desenvolvimento, a partir da clássica proposição segundo a qual a plena operação de uma economia de mercado requer a existência de um estado formalmente institucionhalizado, não só para assegurar a operação impessoal das normas vigentes, mas também para atuar distributivamente de maneira a minimizar as inevitáveis externalidades provocadas pela intensivicação dos laços de interdependência humana que a própria expansão do mercado favorece (Reis, 2003, 55).

Segundo o autor, a ampliação do mercado leva à expansão do estado como forma de regular o primeiro; ao mesmo tempo, a aplicação dos conceitos neoliberais à estrutura do estado moderno não deve ser encarada como solução para conter o aumento do tamanho do estado. Reis (2003, 56) pretende, portanto, "(...) discutir os efeitos que a operação da política produz sobre a dinâmica econômica e, mais precisamente, sobre a condução política do funcionamento da economia em sociedades modernas".

Reis inicia sua exposição sobre o mercado baseando-se no livro Economia e sociedade, de Max Weber. Ele pretende trabalhar com um tipo ideal weberiano, já que considera que as análises atuais sobre o tema trabalham mais sobre a maneira de operar do mercado do que sobre o próprio conceito de mercado em si mesmo. No âmbito de tal tipo ideal, o mercado é visto como uma relação comunitária, onde as pessoas que tomam parte de tal relação se sentem como se pertencessem a um mesmo grupo e assim se comportam de maneira subjetiva, e não como uma relação associativa, onde se considera que a união é feita buscando se atingir objetivos racionais de maneira objetiva. A relação é considerada efêmera, pois a mesma acaba com a finalização da troca, e a participação de cada indivíduo nesta relação não é objeto de elucubrações racionais, visto que a decisão de participar ou não de um mercado não é racionalmente tomada -- todos têm a possibilidade de participar nesta relação já que potencialmente podem ser vendedores ou compradores de qualquer coisa. "Assim, a apreensão weberiana do conceito de ‘mercado’ identifica nele a forma de socialização por excelência que é simultaneamente interessada (‘societária’) e solidária (‘comunal’) (...)": ao mesmo tempo em que os participantes da relação de mercado podem realizar suas trocas sem se preocuparem com o bem-estar dos outros, reconhecem que a outra parte tem direitos nesta relação que não podem ser violados -- o que caracteriza um tipo de comunidade. O mercado, por um lado, é uma relação fria e impessoal, mas ao mesmo tempo é a única relação pacífica entre estranhos: "Daí a ambigüidade fundamental do mercado: emancipatório por autorizar a perseguição de fins pessoais, independentemente da opinião alheia; e (o outro lado da mesma moeda) opressivo por viabilizar, rotinizar e -- por fim -- legitimar a indiferença recíproca". As sociedades modernas e complexas têm como base as relações mercantis, que facilitam o contato entre "estranhos" e possibilitam o desenvolvimento destas mesmas sociedades (Reis 2003, 56-8).

Cabe então responder à pergunta: "(...) qual a peculiaridade da nossa época que faz emergir e disseminar-se tão vigorosamente esta estrutura historicamente sui generis -- a economia de mercado"? Quais são os valores e as instituições específicas de uma sociedade racionalizada que fazem com que a mesma tenha sua vida social regulada pelo mercado? Reis propõe a utilização do materialismo histórico de Marx para responder a esta pergunta: "(...) é difícil conceber qualquer teorização sobre processos de mudança social de largo alcance que deixe de aludir (...) às condições ideais de estabilidade ou instabilidade de determinadas configurações sociais descritas de maneira sistêmica (...)". Ao se defrontar com dificuldades crescentes, a sociedade complexa necessita do mercado para, de maneira rápida, atomizada e descentralizada, satisfazer suas necessidades funcionais; tal necessidade não explica a criação do mercado, mas sim sua disseminação com a modernização da sociedade. Com tal disseminação em mente, devemos trabalhar com a idéia de que "(...) estamos condenados a reservar ao mercado um papel extremamente relevante na configuração de qualquer mundo futuro que concebamos", já que é este mercado que permite que "relações entre estranhos" aconteçam da melhor maneira possível (Reis 2003, 59-60 -- grifos no original).

No entanto, tal ampliação do papel do mercado e a transformação do mesmo na base material que rege as relações sociais dos indivíduos fazem com que o mesmo chegue à fronteira que o separa de outro tipo de relação importante: a política.

Com a imprevisibilidade típica das "sociedades comerciais" no que concerne às possibilidades de acumulação de riqueza (logo, à multiplicação das fontes potenciais de poder na sociedade), bem como a atomização decisória induzida pelo princípio mercantil, impõe-se cedo ou tarde um relativo igualitarismo político como forma de incorporar de modo rotineiro os relativamente imprevisíveis deslocamentos das fontes de poder em uma economia de mercado (Reis, 2003, 60).

Como todos podem participar igualitariamente nas relações de mercado -- ainda que as mesmas tenham como base a desigualdade, já que uns irão oferecer o que outros não têm --, supõe-se que todos poderão também participar igualitariamente na arena política, ainda que esta seja regulamentada por leis e/ou normas que impeçam o abuso de uns sobre outros. Vale destacar, no entanto, que a extensão de direitos políticos aos indivíduos não é conseqüência dos seus "direitos mercadológicos", ou seja, o fato de um indivíduo poder participar das relações mercantis não garante ao mesmo o direito de participar nas relações políticas; como diz Reis (2003, 61), "(...) a relação de afinidade e dependência recíproca entre democracia e mercado acima postulada não impede que o próprio processo de modernização -- tanto em sua dimensão material como em seus desdobramentos políticos -- se dê de maneira conflituosa e mesmo violenta (...)".

Entretanto, há evidências históricas que mostram que o surgimento de uma ordem competitiva no âmbito do mercado permitiu ou até mesmo facilitou o surgimento de uma ordem competitiva também no âmbito da política, ainda que tal processo não tenha se pautado sempre por princípios competitivos ou democráticos, pois o sucesso econômico do mercado produz focos de poder que são externos a qualquer elite política anteriormente definida.

(...) A existência de uma classe proprietária de terras poderosa é a fonte histórica por excelência da "adscrição" social: se ela se enfraquece, isso por si só já é um sintoma da afirmação de uma sociedade mais competitiva -- e, em alguma medida, mercantil, se se trata de uma sociedade complexa. E o enfraquecimento dessa classe aparece como condição relevante do avanço da causa democrática (...). Ademais, parece-me evidente que tanto a competição no mercado econômico como a democracia repousam -- ao menos parcialmente -- sobre os mesmos princípios de legitimidade, os mesmos postulados morais individualistas: a afirmação de si, a busca individual da felicidade, a legitimidade de se ir à procura de interesses próprios. (...) O papel central desempenhado pelo mercado na moderna sociedade complexa induz a alguma competição também na esfera política (...) (Reis, 2003, 61-2).

Em um ambiente de concomitante existência de dois focos de poder principais -- o mercado e o estado --, a relação entre os mesmos deve ser pautada por ordenamentos jurídicos que garantam a proteção dos direitos individuais dos cidadãos nestes sistemas de troca -- já que, em última instância, tanto as relações mercantis quanto as políticas se dão entre os indivíduos. Supõe-se, assim, uma predominância do estado sobre o mercado, pois é o primeiro que irá definir e aplicar as leis, as normas, as regras e as punições aos eventuais infratores, o que irá garantir uma troca de produtos com base na competição justa entre os indivíduos.

(Continua na próxima postagem.)