19 de dezembro de 2007

Formação do estado russo (III)

(Continuação da postagem anterior.)

É neste contexto personalista-patrimonialista que dois eventos acontecem, eventos estes que marcariam todo o processo de formação do estado russo: o primeiro é o surgimento da cidade de Moscou; e o segundo é a invasão da Rússia de Kiev pelos mongóis, dando início a uma nova fase do processo de formação do estado russo chamado de "Rússia dos domínios".

Tendo sido citada pela primeira vez em uma crônica em 1147, convencionou-se tal data como a de fundação da cidade de Moscou. No entanto, pouco se sabe sobre os primeiros cem anos da cidade. Riasanovsky (2005, p. 89) afirma que "sabemos pouco sobre os primeiros príncipes moscovitas, que mudavam freqüentemente, e aparentemente consideravam seu pequeno e insignificante domínio meramente como um trampolim para uma posição melhor". Ainda segundo Riasanovsky (2005, p. 89), a cidade passa a ter importância no cenário político, econômico e militar da Rússia apenas após a invasão mongol, em 1240: só então Moscou passou a ter príncipes que estavam efetivamente interessados em fazer com que seu domínio se estabilizasse e se desenvolvesse.

O crescimento de Moscou como centro do estado russo moderno aconteceu de várias formas: por guerras -- como em 1303, quando Moscou passou a controlar todo o curso do rio Moscou, ou em 1327, quando Moscou, já sob domínio mongol e com a ajuda dos mesmos, conquistou a cidade de Tver, sua principal oponente; por casamentos -- como em 1317, quando o príncipe Iuri se casou com a irmã de um khan mongol para ser indicado pelo mesmo como grão-príncipe; por diplomacia -- como Ivan I, que a partir de 1328 se tornou representante dos mongóis passou a coletar impostos para os mesmos em toda a área da Moscóvia; e ainda por influência ideológica -- quando, em 1326, o chefe da Igreja Ortodoxa Russa morreu em Moscou e foi sacralizado nesta cidade, ou ainda quando Ivan I, em 1328, convidou o então chefe da Igreja Ortodoxa Russa para viver em Moscou, fazendo com que o líder espiritual "de Kiev e de toda a Rússia" trouxesse à cidade uma grande importância e prestígio em relação às demais. A importância da cidade pode ser ainda confirmada quando, a partir de 1341, o príncipe Simeão passou a usar o título de "príncipe de toda Rússia" (RIASANOVSKY, 2005, p. 89-91).

Antes de darmos continuidade ao processo de surgimento e estabelecimento da cidade de Moscou como o núcleo central do estado russo, é necessário dar atenção a outro processo histórico, tão ou mais importante quanto a consolidação de Moscou: referimo-nos à invasão da Rússia de Kiev pelos mongóis a partir de 1223, processo este que é considerado consolidado a partir de 1240 (ver Anexo B). Esta invasão é de fundamental importância no processo de formação do estado russo: foi a partir da invasão que a cidade de Moscou conseguiu se consolidar como capital "de toda Rússia", como mostrado anteriormente, e liderar uma lenta rebelião contra os mongóis até sua completa libertação em 1480.

Nos primeiros cem anos de domínio mongol, os russos nada fizeram contra os invasores porque estavam demasiadamente desunidos para esboçar qualquer tipo de reação. Já foram apresentados anteriormente os três principais centros de poder que surgiram no Principado de Kiev e sua total falta de coordenação no sentido de formar um estado centralizado; ao contrário, os líderes das três regiões estavam muito mais preocupados em conquistar Kiev, ainda um símbolo de poder político, do que em se unir contra o invasor (HOSKING, 2002, p. 52). Assim, foi relativamente fácil para os mongóis conquistarem a Rússia de Kiev.

A dominação mongol sobre a Rússia significava que os líderes russos reconheciam a suserania mongol; que os mongóis, inicialmente o grande khan na Mongólia e posteriormente o potentado da Horda de Ouro, designava [quem seria] o grão-príncipe russo e seus assessores; e que para ser oficializado [como tal] o príncipe russo tinha de viajar para a capital dos mongóis e reconhecer sua humilde obediência ao seu suserano. Além disso, significava que os mongóis recebiam tributos dos russos, primeiro por meio de seus próprios agentes e, posteriormente, por meio da intermediação dos príncipes russos. Ainda, os russos, ocasionalmente, tinham de enviar destacamentos militares para o exército mongol (RIASANOVSKY, 2005, p. 67, grifo no original).

Entretanto, logo após a consolidação do domínio mongol sobre a Rússia várias cidades se recuperaram de maneira relativamente rápida; o comércio exterior continuou, especialmente por parte de Novgorod. Esta cidade, a propósito, conseguiu se safar da destruição trazida pelos invasores: a cidade assinou acordos com os khans nos quais se comprometia a pagar tributos mais elevados em troca de sua não-destruição após ter se submetido aos mongóis sem resistência (HOSKING, 2002, p. 53-54; RIASANOVSKY, 2005, p. 75; KAISER; MARKER, 1994, p. 80, grifo nosso).

Apesar do que possa parecer à primeira vista, para os príncipes russos a dominação mongol trouxe até mesmo benefícios: "os mongóis puseram um limite à feudalização mútua [dos príncipes russos] (...) e deram a eles um poderoso apoio para sua autoridade em casos de rebeliões sociais. A posição do príncipe vis-à-vis a veche aumentou poderosamente" (HOSKING, 2002, p. 55).

Além dos príncipes russos, também a Igreja Ortodoxa se beneficiou com a invasão mongol. Os benefícios para a Igreja surgiram em dois aspectos distintos: em termos práticos, a Igreja foi dispensada do pagamento de diversos tributos; além disso, os clérigos foram dispensados dos trabalhos forçados e do serviço militar, o que permitiu à Igreja desenvolver suas terras sem ser molestada pelos mongóis. O segundo aspecto que a dominação mongol trouxe como benefício para a Igreja foi em termos ideológicos, com a sua corporificação como a responsável pela "alma dos russos": ela se tornou a única instituição realmente "russa" do período, representando não apenas os aspectos espirituais mas também, e principalmente, a identidade nacional e também certa unidade política, posto que era a única instituição presente em todo o território da antiga Rússia de Kiev (HOSKING, 2002, p. 57). O fortalecimento da Igreja como instituição também permitiu à mesma neutralizar todas as demais religiões que ainda se encontravam presentes no território russo, suplantando todos os seus antigos adversários espirituais e políticos.

O crescimento da Igreja Ortodoxa neste período foi também um dos fatores que permitiu que, a partir do último quarto do século XIV, os russos pudessem começar a se rebelar contra os mongóis, processo este que acabou levando ao fim do domínio mongol em 1480: a Igreja equipou os príncipes russos com a ideologia e com as bênçãos divinas necessárias para que a libertação pudesse acontecer (KAISER; MARKER, 1994, p. 82). Além disso, a expansão da ideologia da Igreja e sua instauração nos mais diversos pontos do estado russo dominado pelos mongóis permitiu que, em um momento posterior, quando os russos se viram livres do domínio mongol, o estado russo centralizado se apresentasse como substituto formal da Igreja, se apropriando da presença da Igreja e tomando o seu lugar como instituição responsável pela administração efetiva do país.

Os mongóis, em um primeiro momento, se aproveitaram da desestruturação já existente na antiga Rússia de Kiev -- com seus três principais pólos de poder descritos anteriormente, a região Galícia-Volynia, Novgorod e a região de Vladimir-Suzdal -- e se instauraram como novos suseranos de toda a área anteriormente controlada por Kiev. A Rússia de Kiev como estado formalmente instituído deixou de existir -- o que se comprova pela absorção, por parte da Lituânia, da Polônia e da Hungria, da região da Galícia-Volynia, e pela presença independente da "República de Novgorod" e do "Principado de Vladimir-Suzdal" disputando entre si a primazia de ser o herdeiro da Rússia de Kiev. Nesta última área surge Moscou, cujos príncipes se aproveitam da própria invasão mongol para, com o apoio destes e também da Igreja Ortodoxa, consolidar seu poder político na região, subjugando os demais principados que estavam ao seu redor.

Anexo B -- Mapa das invasões mongóis


(Continua na próxima postagem.)


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