7 de dezembro de 2007

O mercado e a norma (I)

O artigo tem como objetivo fundamental tratar as relações entre estado e mercado e como as mesmas se refletem na teoria democrática. Segundo o próprio autor, seu ensaio

(...) procura analisar o problema das relações entre o estado e o mercado, entre a democracia e o desenvolvimento, a partir da clássica proposição segundo a qual a plena operação de uma economia de mercado requer a existência de um estado formalmente institucionhalizado, não só para assegurar a operação impessoal das normas vigentes, mas também para atuar distributivamente de maneira a minimizar as inevitáveis externalidades provocadas pela intensivicação dos laços de interdependência humana que a própria expansão do mercado favorece (Reis, 2003, 55).

Segundo o autor, a ampliação do mercado leva à expansão do estado como forma de regular o primeiro; ao mesmo tempo, a aplicação dos conceitos neoliberais à estrutura do estado moderno não deve ser encarada como solução para conter o aumento do tamanho do estado. Reis (2003, 56) pretende, portanto, "(...) discutir os efeitos que a operação da política produz sobre a dinâmica econômica e, mais precisamente, sobre a condução política do funcionamento da economia em sociedades modernas".

Reis inicia sua exposição sobre o mercado baseando-se no livro Economia e sociedade, de Max Weber. Ele pretende trabalhar com um tipo ideal weberiano, já que considera que as análises atuais sobre o tema trabalham mais sobre a maneira de operar do mercado do que sobre o próprio conceito de mercado em si mesmo. No âmbito de tal tipo ideal, o mercado é visto como uma relação comunitária, onde as pessoas que tomam parte de tal relação se sentem como se pertencessem a um mesmo grupo e assim se comportam de maneira subjetiva, e não como uma relação associativa, onde se considera que a união é feita buscando se atingir objetivos racionais de maneira objetiva. A relação é considerada efêmera, pois a mesma acaba com a finalização da troca, e a participação de cada indivíduo nesta relação não é objeto de elucubrações racionais, visto que a decisão de participar ou não de um mercado não é racionalmente tomada -- todos têm a possibilidade de participar nesta relação já que potencialmente podem ser vendedores ou compradores de qualquer coisa. "Assim, a apreensão weberiana do conceito de ‘mercado’ identifica nele a forma de socialização por excelência que é simultaneamente interessada (‘societária’) e solidária (‘comunal’) (...)": ao mesmo tempo em que os participantes da relação de mercado podem realizar suas trocas sem se preocuparem com o bem-estar dos outros, reconhecem que a outra parte tem direitos nesta relação que não podem ser violados -- o que caracteriza um tipo de comunidade. O mercado, por um lado, é uma relação fria e impessoal, mas ao mesmo tempo é a única relação pacífica entre estranhos: "Daí a ambigüidade fundamental do mercado: emancipatório por autorizar a perseguição de fins pessoais, independentemente da opinião alheia; e (o outro lado da mesma moeda) opressivo por viabilizar, rotinizar e -- por fim -- legitimar a indiferença recíproca". As sociedades modernas e complexas têm como base as relações mercantis, que facilitam o contato entre "estranhos" e possibilitam o desenvolvimento destas mesmas sociedades (Reis 2003, 56-8).

Cabe então responder à pergunta: "(...) qual a peculiaridade da nossa época que faz emergir e disseminar-se tão vigorosamente esta estrutura historicamente sui generis -- a economia de mercado"? Quais são os valores e as instituições específicas de uma sociedade racionalizada que fazem com que a mesma tenha sua vida social regulada pelo mercado? Reis propõe a utilização do materialismo histórico de Marx para responder a esta pergunta: "(...) é difícil conceber qualquer teorização sobre processos de mudança social de largo alcance que deixe de aludir (...) às condições ideais de estabilidade ou instabilidade de determinadas configurações sociais descritas de maneira sistêmica (...)". Ao se defrontar com dificuldades crescentes, a sociedade complexa necessita do mercado para, de maneira rápida, atomizada e descentralizada, satisfazer suas necessidades funcionais; tal necessidade não explica a criação do mercado, mas sim sua disseminação com a modernização da sociedade. Com tal disseminação em mente, devemos trabalhar com a idéia de que "(...) estamos condenados a reservar ao mercado um papel extremamente relevante na configuração de qualquer mundo futuro que concebamos", já que é este mercado que permite que "relações entre estranhos" aconteçam da melhor maneira possível (Reis 2003, 59-60 -- grifos no original).

No entanto, tal ampliação do papel do mercado e a transformação do mesmo na base material que rege as relações sociais dos indivíduos fazem com que o mesmo chegue à fronteira que o separa de outro tipo de relação importante: a política.

Com a imprevisibilidade típica das "sociedades comerciais" no que concerne às possibilidades de acumulação de riqueza (logo, à multiplicação das fontes potenciais de poder na sociedade), bem como a atomização decisória induzida pelo princípio mercantil, impõe-se cedo ou tarde um relativo igualitarismo político como forma de incorporar de modo rotineiro os relativamente imprevisíveis deslocamentos das fontes de poder em uma economia de mercado (Reis, 2003, 60).

Como todos podem participar igualitariamente nas relações de mercado -- ainda que as mesmas tenham como base a desigualdade, já que uns irão oferecer o que outros não têm --, supõe-se que todos poderão também participar igualitariamente na arena política, ainda que esta seja regulamentada por leis e/ou normas que impeçam o abuso de uns sobre outros. Vale destacar, no entanto, que a extensão de direitos políticos aos indivíduos não é conseqüência dos seus "direitos mercadológicos", ou seja, o fato de um indivíduo poder participar das relações mercantis não garante ao mesmo o direito de participar nas relações políticas; como diz Reis (2003, 61), "(...) a relação de afinidade e dependência recíproca entre democracia e mercado acima postulada não impede que o próprio processo de modernização -- tanto em sua dimensão material como em seus desdobramentos políticos -- se dê de maneira conflituosa e mesmo violenta (...)".

Entretanto, há evidências históricas que mostram que o surgimento de uma ordem competitiva no âmbito do mercado permitiu ou até mesmo facilitou o surgimento de uma ordem competitiva também no âmbito da política, ainda que tal processo não tenha se pautado sempre por princípios competitivos ou democráticos, pois o sucesso econômico do mercado produz focos de poder que são externos a qualquer elite política anteriormente definida.

(...) A existência de uma classe proprietária de terras poderosa é a fonte histórica por excelência da "adscrição" social: se ela se enfraquece, isso por si só já é um sintoma da afirmação de uma sociedade mais competitiva -- e, em alguma medida, mercantil, se se trata de uma sociedade complexa. E o enfraquecimento dessa classe aparece como condição relevante do avanço da causa democrática (...). Ademais, parece-me evidente que tanto a competição no mercado econômico como a democracia repousam -- ao menos parcialmente -- sobre os mesmos princípios de legitimidade, os mesmos postulados morais individualistas: a afirmação de si, a busca individual da felicidade, a legitimidade de se ir à procura de interesses próprios. (...) O papel central desempenhado pelo mercado na moderna sociedade complexa induz a alguma competição também na esfera política (...) (Reis, 2003, 61-2).

Em um ambiente de concomitante existência de dois focos de poder principais -- o mercado e o estado --, a relação entre os mesmos deve ser pautada por ordenamentos jurídicos que garantam a proteção dos direitos individuais dos cidadãos nestes sistemas de troca -- já que, em última instância, tanto as relações mercantis quanto as políticas se dão entre os indivíduos. Supõe-se, assim, uma predominância do estado sobre o mercado, pois é o primeiro que irá definir e aplicar as leis, as normas, as regras e as punições aos eventuais infratores, o que irá garantir uma troca de produtos com base na competição justa entre os indivíduos.

(Continua na próxima postagem.)


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