29 de novembro de 2007

Sobre o fascismo (IV)

(Continuação da postagem anterior.)

b) O Fascismo como totalitarismo. É totalmente outra a perspectiva em que se situa a análise do Fascismo como totalitarismo, cuja contribuição principal foi a de ter sabido captar a novidade que representa o aparecimento dos regimes fascistas na cena política e a de ter chamado a atenção para as diferenças qualitativas existentes entre as formas tradicionais de autoritarismo e as modernas.

O quadro de referência é constituído, direta ou indiretamente, pelas teorias da sociedade de massa; à dinâmica das relações entre as classes sucede, como principal fator explicativo do surgimento dos fenômenos do autoritarismo moderno, a dinâmica das relações entre as massas e as elites num contexto caracterizado pela decomposição do tecido social tradicional, pelo desabe dos sistemas de valores comuns, pela atomização e massificação dos indivíduos, e por uma crescente burocratização.

O aspecto central desta teoria, e ao mesmo tempo o mais criticado, é a subsunção sob uma mesma categoria, a do estado totalitário, dos regimes fascistas e comunistas, com base em analogias existentes na estrutura e técnicas de gestão do poder político. São, com efeito, essas analogias -- verificáveis independentemente dos fins declarados que se tem em vista dos precedentes históricos e do conteúdo das respectivas ideologias -- que os teóricos do totalitarismo privilegiam no plano descritivo e admitem como problema principal no plano explicativo.

Os elementos que definem o estado totalitário são, em termos típico-ideais, conforme a formulação de Friedrich e Brzezinski: uma ideologia oficial tendente a cobrir todo o âmbito da existência humana e à qual se supõe aderirem todos, pelo menos passivamente; um partido de massa único, tipicamente conduzido por um só homem; um sistema de controle policial baseado no terror; o monopólio quase completo dos meios de comunicação de massa; o monopólio quase completo do aparelho bélico; e, enfim, o controle centralizado da economia. O alvo é o de conseguir o controle total de toda a organização social, a serviço de um movimento ideologicamente caracterizado.

As condições essenciais para a sua aparição são um regime de democracia de massa e o poder dispor de um aparelho tecnológico como o que só a moderna sociedade industrial pode oferecer. O estado totalitário se apresenta, portanto, como uma forma de domínio inteiramente nova, não só com respeito aos sistemas de democracia liberal, mas também às formas anteriores de ditadura e autocracia, uma vez que, no passado, não existiam os pressupostos para a sua realização. Possui, além disso, um caráter eversivo com relação ao sistema social preexistente, na medida em que lhe modifica radicalmente a estrutura, que se baseava na existência de uma pluralidade de grupos e de organizações autônomas.

As razões do sucesso dos regimes totalitários são geralmente postas no declínio do sistema liberal burguês e, especialmente, na dissolução do sistema classista, que é, ao mesmo tempo, causa e condição da sua sobrevivência. Mas o que mais interessa aos defensores da teoria clássica do totalitarismo são os mecanismos de funcionamento do estado totalitário no âmbito de uma morfologia mais geral dos sistemas políticos. Numa tal perspectiva, as diferenças existentes entre os regimes fascistas e comunistas, bem como as verificáveis no interior de cada um deles, conquanto não negadas, perdem importância: uns e outros, na medida em que apresentam essa particular combinação de elementos que definem o estado totalitário, pertencem à mesma classe de fenômenos e expressam a feição que assume o autoritarismo na sociedade moderna.

A teoria clássica do totalitarismo tem estado sujeita a numerosas críticas que têm por alvo uma dupla série de problemas. O primeiro diz respeito ao campo específico da análise dos regimes fascistas. Sob este ponto de vista, parece hoje dificilmente sustentável a hipótese de que a origem e o sucesso dos movimentos fascistas estariam relacionados com o conjunto de fenômenos compreendidos no conceito de "sociedade de massa". Pesquisas recentes demonstraram que, nos países onde o Fascismo se consolidou, o sistema de estratificação era muito mais rígido, o peso das estruturas tradicionais muito mais forte e o grau de "atomização" -- no sentido de falta de estruturas associativas intermediárias -- muito menor que em outros onde o Fascismo jamais se ofereceu como alternativa concreta. A tentativa de explicar o processo de introdução do Fascismo com base na dinâmica das relações entre massas privadas de uma clara conotação de classe também contradiz um dado empírico já seguro, ou seja, a base constituída de massas predominantemente pequeno-burguesas dos movimentos fascistas e sua coligação com amplos setores da burguesia agrária e industrial, antes e depois da tomada do poder. Finalmente, esta teoria não consegue fornecer uma explicação aceitável sobre o problema da função histórica dos regimes fascistas, oscilando entre uma resposta de tipo nãoracional -- os regimes totalitários seriam, neste caso, uma espécie de experimento monstruoso de engenharia social, tendo como fim a criação de um novo tipo de homem-máquina totalmente heterodirigido -- e a renúncia explícita ao momento explicativo em favor de uma morfologia dos sistemas totalitários.

A segunda série de problemas diz respeito à própria utilidade do conceito de totalitarismo que, como instrumento, não permite discriminar entre regimes que, apresentando analogias no funcionamento do sistema político, diferem em outros aspectos importantes como os relativos à constelação das forças que favoreceram o seu triunfo, à relação entre as velhas e as novas elites, ao tipo de interferência na estrutura econômico-social e às suas conseqüências. Os que pensam que tal conceito ainda conserva uma certa valia no plano descritivo têm afirmado constantemente a necessidade de uma mais ampla tipologia dos sistemas totalitários, baseada na análise comparada dos diversos regimes, capaz de levar em conta as diferenças. É daí que surgiu a tendência de compreender dentro do mesmo tipo o Fascismo italiano e o nacional-socialismo alemão, com base nas analogias observáveis não só nas técnicas de gestão do poder político, como também na ideologia, na base social e na função histórica dos dois regimes.

(Continua na próxima postagem.)


28 de novembro de 2007

Sobre o fascismo (III)

(Continuação da postagem anterior.)

IV. A abordagem generalizante. Que o Fascismo italiano e o nacional-socialismo alemão, malgrado as diferenças devidas às particularidades das respectivas histórias nacionais, hajam de ser considerados como especificações de um modelo de dominação essencialmente único, é coisa que tem sido sustentada pela maior parte dos estudiosos contemporâneos, independentemente das suas posições ideológicas e políticas. É a eles que se deve a elaboração de alguns esquemas interpretativos que muito têm contribuído para a orientação dos trabalhos dos historiadores e cientistas sociais da geração seguinte. As hipóteses explicativas que estes esquemas sugerem são diversas, quando não claramente alternativas, dependendo, em várias medidas, do tipo de fatores preferidos, do nível de análise em que se situam e da diversidade de paradigmas a que se referem. O que lhes é comum é o esforço por compreender as raízes do Fascismo e, de um modo mais geral, dos fenômenos autoritários evidenciados pela sociedade moderna, num conjunto de variáveis que transcendem os limites de cada uma das realidades nacionais.

Pelo peso diverso que exercem no panorama global dos estudos sobre o Fascismo e pela contribuição que trouxeram ao conhecimento deste fenômeno em sua dimensão histórica concreta, evocaremos aqui as interpretações que, embora em diferente medida, permitem traduzir as hipóteses genéricas nelas contidas em assunto de pesquisa susceptível de verificação empírica. Não consideraremos, porém, as contribuições que, situando-se no terreno filosófico ou da filosofia da história, constituem um capítulo importante da história das idéias do nosso século, mas fogem a toda a possibilidade de controle exercido mediante o recurso a categorias historicamente determinadas.

a) O Fascismo como uma ditadura aberta da burguesia. Entre os primeiros que captaram a dimensão internacional do Fascismo e as suas potencialidades expansivas, estão os expoentes do movimento operário em suas diversas articulações. O elemento unificador das várias formas de reação na Europa, no período que medeia entre as duas guerras mundiais, está na análise das contradições da sociedade capitalista e das modificações por ela introduzidas na dinâmica das relações e dos conflitos entre as classes, na fase histórica iniciada com a Primeira Guerra Mundial.

Dentro desta interpretação, é conveniente distinguir a formulação "clássica" -- resumível nas teses elaboradas pela Terceira Internacional comunista a partir de meados dos anos 30 -- dos seus ulteriores desenvolvimentos, que reassumem temas e idéias já presentes no debate iniciado pelos componentes do marxismo europeu desde a tomada do poder pelo Fascismo na Itália, reelaborando-os em função de uma análise menos esquemática das relações entre estrutura e supra-estrutura, entre esfera econômica e esfera política.

Na primeira formulação, as origens do Fascismo como fenômeno internacional são relacionadas com a crise histórica do capitalismo em seu estádio final, o do imperialismo, e com a necessidade que a burguesia tem, em face do agravamento das crises econômicas e da exacerbação do conflito de classes, de manter o seu domínio, intensificando a exploração das classes subalternas e, em primeiro lugar, da classe operária. O imperialismo envolve a tendência a transformar em sentido reacionário as instituições da burguesia, e o Fascismo é a expressão mais coerente dessa tendência. Ele constitui uma das formas do estado capitalista, precisamente a caracterizada pela ditadura aberta da burguesia, exercida já sem a mediação das instituições da democracia parlamentar. A Itália e a Alemanha, como elos mais fracos da cadeia imperialista, foram as primeiras a experimentar esta forma de dominação, mas essa mesma ameaça impende sobre os demais estados capitalistas.

São dois os elementos centrais deste tipo de análise: a concepção instrumental dos partidos e dos regimes fascistas, considerados como expressão direta dos interesses do grande capital, e a sua função essencialmente contra-revolucionária no duplo sentido de ataque frontal contra as organizações do proletariado e de esforço por frear o curso do desenvolvimento histórico. Em conseqüência, é dado pouco relevo ao fato, qualitativamente novo em relação às formas precedentes de reação, de que a fascista operasse mediante um partido de massa de base predominantemente pequeno-burguesa, embora comunistas italianos e alemães, como P. Togliatti ou Clara Zetkui, já houvessem chamado a atenção para isso. Além disso, eram categoricamente rejeitadas, sob pretexto de ignorarem a definição do Fascismo como ditadura da burguesia, as análises que em vários setores do movimento operário vinham sendo feitas do Fascismo como forma de "bonapartismo", isto é, como regime caracterizado pela cessão temporária do poder político a uma terceira força e por uma relativa autonomia do executivo em relação às classes dominantes, tornadas possíveis graças a uma situação de equilíbrio entre as principais forças de classe em ação.

A teoria do Fascismo como ditadura da burguesia constitui ainda hoje a chave interpretativa predominante nos estudos que têm como modelo de referência o marxismo e a sua concepção da mudança histórica. Com o tempo, porém, ela passou por uma certa revisão que tornou mais problemáticos alguns nexos, particularmente os existentes entre burguesia e Fascismo, entre movimentos e regimes fascistas, entre capitalismo, democracia e Fascismo. Essa revisão é o resultado de uma reflexão teórica que teve efeitos importantes em vários sentidos. O primeiro deles foi a atenuação do economicismo presente nas primeiras formulações e o reconhecimento de uma relativa autonomia da esfera política com relação à esfera da economia. Isso trouxe consigo uma mais aprofundada análise das crises de onde emergiram os regimes fascistas; uma articulação mais complexa da relação entre Fascismo e classes sociais; uma consideração mais atenta dos aspectos institucionais dos regimes fascistas, da lógica do seu funcionamento, das bases da sua legitimação. Mas não modificou a concepção do Fascismo como forma particular de ditadura da burguesia, embora esta fosse atenuada pelo reconhecimento da autonomia relativa dos estados fascistas em face do grande capital, no âmbito de uma convergência comum para objetivos imperialistas.

(Continua na próxima postagem.)


27 de novembro de 2007

Sobre o fascismo (II)

(Continuação da postagem anterior.)

III. A abordagem singularizante. A tendência a analisar o Fascismo como um produto particularmente característico da sociedade italiana e da sua história é contemporânea ao próprio nascimento do Fascismo. Conquanto minoritária no panorama global dos estudos sobre o tema, ela sustentou uma notável corrente da historiografia italiana e estrangeira, havendo recebido novo impulso em anos recentes, devido inclusive à influência de pesquisas como a de G. Mosse sobre As origens culturais do Terceiro Reich que, reavaliando a importância do componente nacional na compreensão de aspectos fundamentais do regime nazista, principalmente o do consenso, reativou a discussão acerca do peso relativo das diferenças e analogias existentes, em primeiro lugar, entre o fascismo e o nacional-socialismo e, depois, entre estes e os demais regimes autoritários que assinalaram a recente história contemporânea.

As primeiras hipóteses de explicação do Fascismo, com base em fatores internos típicos da situação italiana, foram aventadas, naturalmente, nos anos 20, em concomitância com a consolidação do movimento fascista, com a tomada do poder por Mussolini e com a progressiva transformação do estado liberal em estado de características totalitárias. Poucos souberam então ver no Fascismo a antecipação de uma crise mais geral que revolucionaria a Europa e, com a catástrofe da Segunda Guerra Mundial, viria a produzir profundas mudanças na organização interna de cada um dos estados nacionais e na ordem internacional.

As causas imediatas da vitória do Fascismo foram geralmente procuradas no clima de forte instabilidade social, política e econômica, criado na Itália nos primeiros anos posteriores à Primeira Grande Guerra Mundial. Mas, ao tentarem explicar a vulnerabilidade e ruína das instituições liberais, alguns estudiosos se interrogaram sobre o passado da história nacional, chegando a descobrir no processo de formação do estado unitário aquela debilidade intrínseca das estruturas que o Fascismo havia de pôr a nu. Foi assim que nasceu a bem conhecida tese do Fascismo como "revelação", subscrita por homens assaz diversos como G. Fortunato, C. Rosselli, P. Gobetti, G. Salvemini e outros. O atraso do país, a falta de uma autêntica revolução liberal, a incapacidade e mesquinhez das classes dirigentes, unidas à arrogância de uma pequena burguesia parasitária com a doença da retórica, a prática do transformismo, que havia impedido a evolução do sistema político num sentido moderno, foram o terreno de cultivo do Fascismo, que assim se situava numa linha de continuidade, muito mais que de ruptura, em relação ao sistema liberal. Daí o juízo fundamentalmente redutivo do Fascismo e das suas potencialidades expansivas, só cultiváveis a partir do reconhecimento dos elementos de novidade nele presentes, quer nas técnicas de gestão do poder, quer no modo de organização do corpo social, e, de forma mais genérica, na configuração das relações entre estado e sociedade civil. Por outras palavras, o que faltava aos defensores da tese do Fascismo como revelação era uma adequada percepção da natureza da crise que atingira o sistema liberal, e não só na Itália, no período compreendido entre as duas guerras mundiais, e do tipo de solução dada pelo Fascismo a esta crise.

A afirmação do caráter tipicamente italiano do Fascismo, subscrita também, entre outros, por autorizados teóricos fascistas, que reivindicavam ser ele o coroamento do processo de unificação nacional iniciado com o Ressurgimento, foi questionada com o surgir de movimentos fascistas em vários países da Europa, mormente com a subida ao poder do nacional-socialismo na Alemanha. A partir dos anos 30, predominaram as interpretações tendentes a acentuar o caráter supranacional do Fascismo, que haviam de orientar a maior parte da pesquisa e alimentar o debate teórico mesmo depois da Segunda Guerra Mundial.

Em contradição com essa interpretação, foi-se esboçando, nos últimos dez anos, uma corrente historiográfica que visa reduzir o âmbito de aplicação do conceito de Fascismo apenas ao contexto italiano. Demonstrando a justa necessidade de se evitar as generalizações arbitrárias, mas expressando, ao mesmo tempo, uma orientação metodológica de desconfiança com relação ao uso de conceitos gerais na investigação histórica e de descrença nos modelos teóricos próprios das ciências sociais, essa corrente -- que tem na Itália seu maior expoente em Renzo De Felice -- originou uma série de pesquisas sobre o Fascismo, como movimento e como regime, com o objetivo, podíamos dizer, de compreender o fenômeno desde dentro (daí a utilização de fontes predominantemente fascistas) e de reconstruir a história, superando esquemas interpretativos preconstituídos. O resultado de tais pesquisas foi o de levar a uma reavaliação das diferenças existentes entre os diversos "Fascismos" e o de pôr em questão a utilidade de um modelo unitário.

Os argumentos aduzidos para apoiar esta nova versão da especificidade do Fascismo italiano são radicalmente diferentes dos que caracterizaram as primeiras análises dos estudiosos a ele contemporâneos. Estes baseavam o tema da especificidade num conjunto de variáveis estruturais, típicas da sociedade italiana, cuja permanência era aceita como principal fator explicativo do regime fascista, e ressaltavam a relação de continuidade com o sistema liberal, que depois foi aceita como própria, de modo não fortuito, por grande parte da historiografia marxista ou próxima do marxismo.

É uma perspectiva inteiramente diferente aquela em que se colocam as pesquisas atrás mencionadas. O centro da análise é o Fascismo em sua dimensão político-ideológica e a tese da especificidade é baseada, em primeira instância, justamente nas diferenças ideológicas e projetivas do Fascismo italiano com relação ao nazismo. Não se nega a existência de um denominador comum entre os dois fenômenos e, por conseguinte, a possibilidade de os englobar no mesmo conceito de Fascismo; mas esse denominador serve mais para estabelecer limites em relação ao exterior, isto é, em relação a outros regimes de tipo autoritário, do que para lhe explicar a natureza, os objetivos fundamentais e a função histórica. Estes, ao contrário, tornam-se divergentes, quando se contrapõe o radicalismo de esquerda e o caráter revolucionário do movimento fascista italiano ao radicalismo de direita, essencialmente reacionário, do nazismo.

O problema da relação com o sistema social e político preexistente também se fundamenta em bases diversas e se articula levada em conta a diferenciação entre Fascismo como movimento e Fascismo como regime. Como expressão das aspirações da classe média emergente, ou de uma parte consistente dela, a um papel político autônomo, tanto em confronto com a burguesia, como com o proletariado, o Fascismo, como movimento, teria representado um momento de ruptura a respeito do passado, uma proposta de modernização das estruturas da sociedade italiana, com certa carga revolucionária. Ao invés, o Fascismo, como regime, como resultado de um compromisso entre a ala moderada do movimento e as velhas classes dirigentes, teria assinalado a frenagem do impulso reversivo original do movimento e o predomínio das relações tradicionais de poder entre as classes, mas nunca um momento de mera e simples reação. A delegação da gestão do poder político ao Fascismo por parte da burguesia marcou, de fato, o início de um processo de substituição da elite dirigente que, se não houvesse sido interrompido com a queda do regime em conseqüência das vicissitudes da guerra, teria podido desafiar os centros do poder real, até então controlados pelas velhas classes dominantes.

A reafirmação da "unicidade" do Fascismo italiano e da necessidade de ressaltar, para uma melhor compreensão histórica, os elementos de diferenciação dos regimes definidos como fascistas por interpretações já consolidadas, tem suscitado não poucas discussões. Essa polêmica tem por alvo não tanto a validade de cada uma das proposições -- nenhuma delas em si totalmente nova -- quanto uma questão fundamental, que é ao mesmo tempo a do método e a do conteúdo; o que se questiona é se é legítimo aceitar como principal critério discriminante a dimensão ideológico-cultural, se com isso se corre o risco de apresentar, como diversos, fenômenos que são essencialmente da mesma natureza.

(Continua na próxima postagem.)


26 de novembro de 2007

Sobre o fascismo (I)

Dando continuidade à explicação de regimes totalitários, apresento a partir de hoje alguns textos baseados no Dicionário de Política sobre o fascismo. Vale lembrar que o fascismo é a "ideologia original": foi a partir dele que surgiu o nacional-socialismo (nazismo).

I. Problemas de definição. Na já vastíssima literatura referente ao Fascismo é normal depararmos com definições diversas e freqüentemente contraditórias deste conceito. A multiplicidade de definições é demonstrativa não só pela real complexidade do objeto estudado, como também pela pluralidade de enfoques, cada um dos quais acentua, de preferência, um ou outro traço considerado particularmente significativo para a descrição ou explicação do fenômeno.

Preliminarmente podemos distinguir três usos ou significados principais do termo. O primeiro faz referência ao núcleo histórico original, constituído pelo Fascismo italiano em sua historicidade específica; o segundo está ligado à dimensão internacional que o Fascismo alcançou, quando o nacional-socialismo se consolidou na Alemanha com tais características ideológicas, tais critérios organizativos e finalidades políticas, que levou os contemporâneos a estabelecerem uma analogia essencial entre o Fascismo italiano e o que foi chamado de Fascismo alemão; o terceiro, enfim, estende o termo a todos os movimentos ou regimes que compartilham com aquele que foi definido como "Fascismo histórico", de um certo núcleo de características ideológicas e/ou critérios de organização e/ou finalidades políticas. Nesta última acepção, o termo Fascismo assumiu contornos tão indefinidos, que se tornou difícil sua utilização com propósitos científicos. Por isso, vem-se acentuando cada vez mais a tendência de restringir seu uso apenas ao Fascismo histórico, cuja história se desenrola na Europa entre os anos 1919 e 1945 e que está essencial e especificamente representado no Fascismo italiano e no nacional-socialismo alemão.

Em geral, se entende por Fascismo um sistema autoritário de dominação que é caracterizado: pela monopolização da representação política por parte de um partido único de massa, hierarquicamente organizado; por uma ideologia fundada no culto do chefe, na exaltação da coletividade nacional, no desprezo dos valores do individualismo liberal e no ideal da colaboração de classes, em oposição frontal ao socialismo e ao comunismo, dentro de um sistema de tipo corporativo; por objetivos de expansão imperialista, a alcançar em nome da luta das nações pobres contra as potências plutocráticas; pela mobilização das massas e pelo seu enquadramento em organizações tendentes a uma socialização política planificada, funcional ao regime; pelo aniquilamento das oposições, mediante o uso da violência e do terror; por um aparelho de propaganda baseado no controle das informações e dos meios de comunicação de massa; por um crescente dirigismo estatal no âmbito de uma economia que continua a ser, fundamentalmente, de tipo privado; pela tentativa de integrar nas estruturas de controle do partido ou do estado, de acordo com uma lógica totalitária, a totalidade das relações econômicas, sociais, políticas e culturais.

II. "Teorias" sobre o fascismo. Como todo evento histórico de relevância, o Fascismo despertou, desde a sua origem, um interesse que, excedendo as contingências da luta política, abrangia uma série de temas que eram fundamentais para a compreensão da sociedade contemporânea. Esse interesse foi a base de uma importante reflexão teórica sobre as causas e possíveis conseqüências dos regimes fascistas, articulada numa série de hipóteses interpretativas que, com o tempo, se foram aperfeiçoando e enriquecendo, quer devido à acumulação de material empírico, quer devido à adoção de novos quadros teóricos de referência. E a essa série de hipóteses interpretativas, mais ou menos sistematicamente correlacionadas, mais ou menos empiricamente comprovadas, que se alude geralmente ao falar de "teorias" sobre o Fascismo. E é neste sentido, bastante amplo, que usamos do termo neste contexto.

Há diversos critérios de classificação das teorias relativas ao Fascismo: o cronológico, o político-ideológico, o disciplinar e o sistemático -- só para citar os mais usados -- que podem ser diversamente combinados entre si, dando origem a tipologias mais ou menos complexas. A subdivisão aqui utilizada possui caráter introdutório e tem por objetivo chamar a atenção para as principais abordagens analíticas do fenômeno, desenvolvidas por estudiosos de várias tendências, a partir da década de 20.

Usando a terminologia empregada por E. Nolte no seu famoso ensaio Theorien über den Faschismus, hoje já introduzida no léxico comum dos estudos sobre o assunto, as teorias sobre o Fascismo podem ser divididas em duas grandes categorias: em teorias singularizantes e teorias generalizantes.

Pertencem à primeira categoria as teorias que, para explicar a origem e o sucesso dos movimentos e dos regimes fascistas, recorrem a fatores estreitamente ligados às particularidades de uma determinada realidade nacional e rejeitam toda a tentativa de generalização de um contexto histórico específico a outro. Segundo os defensores deste tipo de abordagem, as analogias verificáveis entre os movimentos e regimes comumente definidos como fascistas são de caráter formal, ao passo que as diferenças entre uma situação e outra são de tal modo relevantes que só admitem um discurso cientificamente fundado em cada um dos Fascismos. Conseqüentemente, o termo Fascismo se aplica corretamente ao movimento político que se impôs na Itália nos anos imediatamente posteriores à Primeira Guerra Mundial, e ao tipo de regime por ele instaurado após a tomada do poder; a outros movimentos ou regimes a eles variamente assimiláveis, de acordo com os esquemas analíticos utilizados, só impropriamente se pode aplicar o termo de Fascismo.

Pertencem à segunda categoria as teorias que consideram o Fascismo como um fenômeno supranacional que apresentou, nas diversas formas de que historicamente se revestiu, características essencialmente análogas, resumíveis num conjunto de fatores homogêneos. Conforme os fatores considerados, assim são as definições e o campo de aplicação do conceito. As teorias generalizantes podem, por sua vez, subdividir-se em duas subcategorias, respectivamente definíveis como intrapolíticas e transpolíticas. As primeiras referem-se a fatores histórico-políticos determinados, historicamente individualizáveis; as segundas, a fatores a-históricos, inerentes à natureza humana, ao caráter repressivo da cultura, às características imanentes à luta política e por aí além.

A propensão para as teorias singularizantes ou generalizantes não pode ser atribuída, como muitas vezes acontece, à diversa orientação dos historiadores, por um lado, e à dos cientistas sociais, por outro. Na realidade, não faltam correntes historiográficas que, embora com a necessária articulação da pesquisa nos diversos níveis de cada uma das realidades nacionais, não só não contradizem, como incluem até o recurso a uma teoria generalizante -- pensemos, por exemplo, na historiografia marxista -- e análises sociológicas que aceitam como principal fator explicativo do surgimento dos regimes fascistas a configuração específica das relações entre os sistemas social, político e cultural de um determinado país. A preferência por esta ou por aquela orientação parece determinada, antes de tudo, pela espécie de fatores que se julgam importantes para a descrição ou explicação do fenômeno e pelo nível da análise escolhida.

Este último aspecto há de ser levado em conta, porque, como observou Gino Germani, a não-distinção dos diferentes níveis de análise do fenômeno fascista tem dado origem a contrastes interpretativos mais aparentes que reais, já que baseados na contraposição de resultados válidos a diversos níveis de generalização. Na realidade, o Fascismo, como evento histórico concreto, engloba-se numa fenomenologia mais ampla, a do autoritarismo na sociedade moderna, apresentando-se como resultado de uma série assaz complexa de concatenações causais, umas remotas, outras mais próximas, investigadas em suas inter-relações específicas. O problema principal para a construção de uma teoria do Fascismo está, pois, em identificar um nível de observação que permita colher a sua especificidade, sem renunciar àquelas conexões de caráter geral que fazem do Fascismo um fenômeno que mergulha suas raízes em alguns traços típicos da moderna sociedade industrial.

(Continua na próxima postagem.)


23 de novembro de 2007

Nacional-socialismo (IV)

(Continuação da postagem anterior sobre nazismo.)

IV. CONSOLIDAÇÃO E DINÂMICA DO REGIME. O regime nacional-socialista alemão (1933-1945) teve como característica um rápido processo de supressão e coordenação (Gleichschaltung) de todas as forças e instituições políticas, sociais e culturais. A "tomada do poder" se deu com pleno sucesso no período de cinco meses, e com muito maior definição do que aconteceu na Itália fascista onde o processo levou seis anos. O sistema totalitário com um partido único e com um único líder foi definitivamente implantado no verão de 1934, quando Hitler, através de expurgos sangrentos dentro do partido (e das organizações militares do partido, as SA), conseguiu o apoio total do exército e se nomeou, após a morte do presidente Hindenburg, chefe do estado, chanceler, líder do partido e da nação, ditador único da Alemanha.

Nos anos seguintes o regime se estruturou para concretizar suas finalidades ideológicas, quer no campo da política interna quer no da política externa. O controle totalitário do poder, na própria Alemanha, foi utilizado para a mobilização de todos os recursos na sustentação militar da hegemonia alemã na Europa e no empenho de anexação de amplos territórios, principalmente na Europa oriental. Causa surpresa observar o quanto a conduta política do Nacional-socialismo tenha sido determinada por posições ideológicas, principalmente no campo do racismo e do anti-semitismo, o que foi sobremaneira comprovado pela criminosa eliminação de milhões de judeus e pela rigorosa supressão das nações eslavas. A política de ocupação, levada adiante pelo Nacional-socialismo durante a Segunda Guerra Mundial, foi uma terrível concretização das idéias de superioridade alemã e do direito ao espaço vital. Esta política diferiu profundamente da seguida pelo Governo ditatorial, mais tradicional na sua forma, do fascismo italiano, embora tenha sido justamente a aliança entre Mussolini e Hitler que abriu o caminho para que se chegasse às últimas conseqüências no campo do terror, da guerra e da destruição.

No fim, as reais manifestações do regime nacional-socialista foram uma refutação daquelas próprias idéias em que o mesmo se baseava; daí que o neonazismo não conseguisse melhores resultados na Alemanha do pós-guerra. O fracasso total e a autodestruição do Nacional-socialismo em 1945 servem, entre outras coisas, para refutar a crença popular de que uma ditadura totalitária, pelo fato de eliminar todo controle político e moral e conseqüentemente possibilitar uma atuação mais rápida e de mais impacto, seja fiador da ordem e da eficiência de uma forma mais abrangente, bem como de maior segurança e estabilidade do que os complexos sistemas democráticos. Além da rígida pseudo-ordem imperante no Terceiro Reich, havia um mundo de rivalidades pessoais e profissionais, de ordens arbitrárias por parte do líder, de insegurança causada pela vigilância e pelo terror. O resultado foi um momentâneo aumento do poder, seguido por um enfraquecimento da consciência nacional, que culminou no caos da fase final. Os excessos que marcaram o declínio do Terceiro Reich evidenciaram a verdadeira natureza de um sistema que, contrariamente ao afirmado pela sedutora teoria da ditadura, não proporcionou a seus cidadãos sequer ordem política e Governo eficaz, e muito menos segurança maior e possibilidades melhores de se expressarem; ao contrário, erigiu-se exclusivamente sobre o despotismo organizado e sobre crimes pseudolegais e mal escondidos. Hitler teve para tudo uma única, egomaníaca, resposta: o povo alemão fracassara na sua prova histórica, pondo em jogo, conseqüentemente, sua própria existência nacional. Nos últimos tempos, uma idéia fixa o perseguia: nunca cederia, nunca mais iria acontecer novamente na história alemã o que tinha acontecido em novembro de 1918. No seu testamento político de 29 de abril de 1945, repete as idéias fixas que tinham orientado a ascensão e a dominação do Nacional-socialismo, começando pelo seu ódio feroz com relação ao "judaísmo internacional e seus cúmplices", que, na visão do mundo de Hitler, seriam os responsáveis por tudo aquilo que estava acontecendo.

A queda do Nacional-socialismo foi sancionada juridicamente pela comissão aliada de controle que, a 4 de junho de 1945, dissolveu formalmente o N.S.D.A.P. e ordenou a prisão de seus funcionários. Os resultados do domínio nazista foram óbvios assim como sua queda. Até seus critérios para avaliar os sucessos refutam a eficácia da política nazista. O preço pago foi imenso: mais de seis milhões e meio de alemães mortos, o dobro de prófugos, a divisão e a repartição do país, o fim de sua existência como estado -- este foi o balanço alemão do Terceiro Reich. O balanço europeu, que se inicia com o extermínio de aproximadamente seis milhões de judeus, nos leva muito além dos números acima: enquanto a França contou com aproximadamente oitocentas mil vítimas e a Grã-Bretanha quatrocentas mil, pelo menos vinte milhões foram mortos na Rússia, quatro milhões e meio na Polônia e um milhão e setecentos mil na Iugoslávia. A culpa da Alemanha, principalmente com relação aos povos da Europa oriental, e a expulsão, por vingança, de todos os alemães destes territórios, permanecerão para sempre como a herança deixada pelo Nacional-socialismo.


22 de novembro de 2007

Nacional-socialismo (III)

III. FATORES DA ASCENSÃO DO NACIONAL-SOCIALISMO. A ascensão do Nacional-socialismo (1919-1933) foi possível graças à conjugação dos defeitos da política alemã, desde os primórdios do século XIX, com as raízes fatídicas e a história repleta de crises da República de Weimar. A democracia de 1918 foi considerada responsável pelas conseqüências da derrota na Primeira Guerra Mundial. O novo Governo se tornou o bode expiatório e o objeto do ódio das forças da restauração e da reação no estado e na sociedade, bem como dos movimentos revolucionários ditatoriais reunidos nos belicosos Freikorps, em seitas populares anti-semitas e em organizações paramilitares. O "espantalho vermelho" da revolução comunista completou a tarefa de tornar exército e burocracia, classe média e patrões, fácil conquista de tais sentimentos. As forças democráticas estenderam a seus inimigos a tolerância de um sistema jurídico constitucional. Além disso, o desejo difuso de autoridade próprio de um estado autoritário e burocrático acabou provocando sérios problemas organizacionais no interior da República.

Foram estas as bases que permitiram ao Nacional-socialismo firmar-se como um novo tipo de força integradora. Visto ser uma manifestação tipicamente alemã de antidemocracia na Europa, o Nacional-socialismo conseguiu harmonizar-se com a situação alemã, tornando-se um fenômeno mais difícil de ser exportado do que o fascismo. É este mais um exemplo das limitações que se encontram nas idéias de um fascismo universal. Os fundamentos nacionalistas implicam a existência de profundas diferenças entre um e outro país; daí não ser possível explicação alguma monocausal baseada em premissas econômicas, políticas ou ideológicas. O Nacional-socialismo, assim como Hitler, foi o produto da Primeira Guerra Mundial, porém, recebeu sua forma e sua força daqueles problemas básicos da história alemã moderna que caracterizaram a difícil caminhada do movimento democrático. Podemos salientar entre estes problemas: a fragilidade da tradição democrática e os poderosos resíduos das instituições autoritárias governativas e sociais existentes antes e depois de 1848; a facilidade de aceitação das idéias nacionalistas e imperialistas, produto da criação atrasada e nunca plenamente concretizada de um estado nacional alemão; os problemas decorrentes da inesperada derrota e da decorrente invencionice da "facada pelas costas"; o difuso mal-estar com relação à paz de Versalhes; a crise permanente de uma república que nunca conseguiu obter apoio total da população; as explosivas conseqüências da depressão neste estado altamente industrializado, social e religiosamente dividido, conservando ainda resíduos feudais e tradicionalistas; enfim, o medo da proletarização e do comunismo experimentado pela classe média, e o ulterior ressentimento e pavor de uma população rural ameaçada pela expansão da tecnologia moderna. Não deveria, portanto, causar admiração o fato que o Nacional-socialismo obteve seus maiores triunfos eleitorais primeiro na Baviera rural e depois nas províncias rurais do Schleswig-Holstein e na Baixa Saxônia.

Entre os fatores que caracterizam os inícios do Nacional-socialismo cumpre ressaltar o papel relevante desempenhado pela ascensão espetacular e pela veneração quase religiosa do Führer. A estrutura organizacional e as atividades deste novo tipo de movimento basearam-se completamente no princípio do líder. Ao centro de tudo encontrava-se a figura de Adolf Hitler. Em termos de psicologia social, ele representa o homem comum, em posição de subordinação, ansioso para compensar seus sentimentos de inferioridade através da militância e do radicalismo político. Seu nascimento na Áustria, seu fracasso na escola e na profissão e a experiência libertadora da camaradagem masculina durante a guerra, forjaram, ao mesmo tempo, sua vida e a ideologia do Nacional-socialismo.

O Nacional-socialismo se estruturava com base num darwinismo social nacionalista, racista e muito simplificado, tornado popular pelos escritos de radicais sectários. Porém, ao mesmo tempo, procurou, mediante uma mistura eclética de programas doutrinários e políticos, atingir todas as camadas da população. Os primeiros slogans do Nacional-socialismo, pelo seu sucesso imperialista e expansionista e pela submissão ao Governo ditatorial nacionalista, foram elaborados para distrair a classe média e a classe operária dos reais problemas internos. A "comunidade nacional" foi escolhida para ser a panacéia que curaria os males econômicos e políticos, no lugar do pluralismo econômico e da sociedade classista. As doutrinas militaristas e racistas foram os instrumentos utilizados para enganar e conquistar a população. Na campanha contra o tratado de Versalhes se fez uso de um nacionalismo agressivo que apelava para o tradicional sentimento alemão de unidade e foi explorada a visão de uma grande Alemanha unida. O passo seguinte foi a propalada necessidade de expansão dos limites nacionais e étnicos, para conseguir o espaço vital, em direção ao leste, dos povos alemão e germânico, considerados povos superiores. Além do culto ao Führer, que era uma resposta ao desejo autoritário de ordem, a versão social e biológica do anti-semitismo se tornou uma das primeiras características fanáticas do programa hitlerista. Esta forma de encarar o "problema" se prestava para a elaboração da idéia do inimigo radical, idéia esta necessária a todo movimento totalitário para poder dirigir e orientar a agressividade por ele gerada. Acima de tudo, a ideologia nacional-socialista e a tragédia política assentavam no direito do mais forte, conforme as teorias do darwinismo social. A exaltação da "ação" como ideal supremo, acima da razão e da inteligência, caracterizou a natureza fundamentalmente irracional do Nacional-socialismo. Seu fim último foi a conquista de um poder sem limites mediante a agressão, internamente, e mediante o expansionismo, externamente. A história do terceiro Reich mostra que o Nacional-socialismo cumpriu à risca os primitivos planos de Hitler, muito embora seus críticos da época pouco caso fizessem dele. Aliás, a história do Nacional-socialismo é a história de sua fatal depreciação.

Tudo isto vale também com relação à vitória de Hitler em 1933; o terceiro Reich pôde se concretizar graças a um conjunto de manobras eficazes e enganadoras. Sem estas manobras, provavelmente, Hitler nunca chegaria ao poder. Ele afirmava que a sua era uma "revolução legal". Misturando estes dois conceitos contraditórios, os nacionalistas conseguiram satisfazer o desejo popular de ordem e, ao mesmo tempo o desejo de uma mudança radical num período de profunda crise econômica. Após o fracasso de seu putsch em 1923, sem contar o fracasso do putsch reacionário de Kapp em 1920, que evidenciou a aversão da burguesia e dos funcionários públicos a golpes de estado e a revoluções abertamente concretizadas, Hitler se limitou à utilização de táticas pseudolegais. Em lugar de tentar um putsch contra a República, aproveitou-se das oportunidades proporcionadas pela legislação de emergência prevista na Constituição de Weimar a fim de revogar a mesma. O caminho da ditadura presidencial sempre foi apoiado pelos adversários conservadores da democracia parlamentar e, após 1930, contou com o apoio ativo do marechal Hindenburg, o autoritário filomonárquico presidente alemão. Foi ele quem ajudou o partido nacional-socialista a se libertar da incômoda posição de partido minoritário, que nunca tinha conseguido mais de um terço dos votos populares em nenhuma eleição. Os poderes especiais, que davam ao presidente o direito de dissolver o Reichstag e nomear um chanceler, tornaram possível a ditadura legal do presidente. Foi o exercício destas prerrogativas, e não a aprovação de um Governo majoritário que levou Hitler ao poder.

A bem-sucedida imposição de um Governo autocrático foi acompanhada pelo convite à realização de uma verdadeira "revolução nacional". No que diz respeito a Hitler, a aliança com os partidos de direita, com o meio empresarial, com os interesses dos grandes proprietários rurais e dos militares, foi apenas um expediente tático. Quando começou a se manifestar uma forte crise no partido, no fim de 1932, ele não titubeou em fazer amplas concessões aos líderes de uma "concentração nacional" da direita, chefiados por von Papen, confidente de Hindenburg. Porém, mesmo aceitando, como chanceler, uma maioria de ministros conservadores, sempre fez questão de exigir o direito de exercer poderes presidenciais ditatoriais. Camuflando as reivindicações de poder dos nacional-socialistas como sendo os apelos para um renascimento cristão-nacional, Hindenburg atingiu o resultado desejado, quer junto ao Governo quer junto ao povo, e nunca interferiu nas terríveis medidas repressivas aplicadas por Hitler, justamente em virtude destes poderes ditatoriais "legais", em fevereiro de 1933. Os aliados de Hitler, num primeiro momento, valorizaram em excesso o próprio poder e, mais tarde, procuraram reconduzir a revolução dentro de canais disciplinados. Porém, foi justamente sua colaboração que tornou possível a pseudolegalidade desta mesma revolução. Por razões semelhantes, a oposição da classe média se desarticulou diante da lei sobre os plenos poderes e os funcionários colaboraram para a legalização da evolução nazista. A própria esquerda se deixou ludibriar e, por demasiado tempo, ficou paralisada diante da nova situação de uma revolução "legal" e "nacional".

Em suma, Hitler chegou ao poder como conseqüência de um conjunto de erros que poderiam ter sido evitados. Ele não foi eleito livremente pela maioria do povo alemão, nem houve razões insuperáveis que justificassem a capitulação da república. Todavia, nos momentos finais, as forças democráticas se encontraram em minoria diante dos partidos totalitários e ditatoriais dos nacional-socialistas e dos comunistas. E foi nesta situação que um grande número de dirigentes alemães optou por se colocar do lado de Hitler, após 1933. A suscetibilidade da classe média era resultado de causas históricas e contingentes. A história da tomada do poder por parte de Hitler sem dúvida possui seus lados obscuros, e que são inúmeros. Por outro lado, os pré-requisitos do Nacional-socialismo também não são passíveis de explicações lineares. Foram inúmeros os fatores e os elementos que aí desempenharam seu papel, obscuras forças subterrâneas, resultado das condições nacionais e sociais alemãs e européias. A fatal ascensão de Hitler está intimamente relacionada com uma marcante seqüência de acontecimentos que se verificaram na Alemanha nos séculos XIX e XX, embora o Nacional-socialismo não possa ser identificado com a história alemã.


21 de novembro de 2007

Nacional-socialismo (II)

(Continuação da postagem anterior sobre nazismo.)

II. RAÍZES IDEOLÓGICAS E POLÍTICAS DO NACIONAL-SOCIALISMO. Com relação às raízes históricas do Nacional-socialismo austro-alemão não há concordância entre os especialistas. Alguns acham que suas origens remontam ao império medieval, à Reforma Protestante ou, pelo menos, a Frederico o Grande da Prússia. Outros negam que haja qualquer tipo de continuidade entre a política alemã anterior e o desenvolvimento do Nacional-socialismo, sublinhando a importância fundamental da Primeira Guerra Mundial e de Hitler: o Nacional-socialismo é definido como "movimento hitleriano" e "hitlerismo" -- exatamente na mesma medida em que o fascismo pode ser visto como "mussolinismo". Enquanto as interpretações continuam oscilando entre estas duas posições extremistas, permanece o problema de como uma tradição intelectual e um comportamento político, tipicamente alemães, seriam indispensáveis na formação do Nacionalsocialismo. O debate, encontrado em inúmeros livros desde os anos 30, tem em si um interesse que não é meramente acadêmico. Por um lado, teve influência na própria afirmação do Nacional-socialismo que foi percebido, justamente pelos seus propugnadores e ideólogos, quais Joseph Goebbels e Alfred Rosenberg, como sendo a complementação definitiva de um milênio de história alemã. Por outro lado, o problema assumiu uma importância toda especial na medida em que se envidaram esforços para combater e eliminar não apenas o poder político, mas também as mais profundas raízes do Nacional-socialismo na Alemanha, a fim de impedir, após 1945, qualquer tipo de continuação ou de revivescência do nazismo.

As raízes ideológicas do Nacional-socialismo, em decorrência dos acontecimentos históricos alemães do século XIX, encontram-se estritamente ligadas às três fases mais importantes da caminhada da Alemanha em direção ao sonhado estado nacional: a reação nacionalista à ocupação napoleônica (1806-1815); a falência da revolução liberal de 1848; a solução conservadora e militar do problema alemão, durante o Governo de Bismarck, a partir de 1871. Na medida em que progredia o complexo processo da unificação política e da modernização, a idéia nacionalista alemã experimentou um desenvolvimento todo especial chegando a se sobrepor aos ideais liberais e constitucionais. A "nação tardia" tinha a sensação de ser a última a chegar entre os estados europeus, pronta, porém, para se adequar ao imperialismo e ao colonialismo da época. Em um contexto muito parecido com o italiano, estes sentimentos nacional-imperiais preparavam o caminho para os movimentos préfascistas já bem antes da Primeira Guerra Mundial. No caso alemão, uma antiga tradição acerca da singular missão da Alemanha no contexto europeu e no mundo, conforme o que defendia o filósofo Fichte (1810), coincidiu com a reivindicação da concretização de um império pangermânico que compreenderia não apenas a Áustria e demais territórios de língua alemã, mas que iria ser reconhecido como potência hegemônica da Europa central.

As idéias pangermânicas e hegemônicas dominaram todos os movimentos que visavam anexações de territórios na Primeira Guerra Mundial. A derrota destas idéias em 1918, nunca aceita pelos partidos de direita da República de Weimar, levou à formação de grupos radicais antidemocráticos e revisionistas; um deles foi o "Deutsche Arbeiterpartei" que em 1920 tornar-se-á o "National Sozialistische Deutsche Arbeiterpartei" (N. S. D. A. P.). Uma característica básica deste partido foi a continuidade das idéias que dominaram o período pré-bélico; porém, a experiência da derrota na guerra e a crise da república democrática aumentaram a força de sua influência na opinião pública alemã politizada.

A criação e a ascensão do Nacional-socialismo podem ser explicadas da seguinte forma:

a) Na situação existente em 1918-1919, era fácil a mobilização de um nacionalismo agressivo contra o tratado de Versalhes com suas pesadas imposições à Alemanha pós-bélica. Na realidade, a carreira de Hitler teve início, antes de tudo, com seus inflamados discursos contra a "escravização" da Alemanha pelo tratado de Versalhes. Tudo isto, porém, ia muito além de uma simples revisão dos tratados; ao nacionalismo foi atribuído um significado maior: a expansão imperialista da grande Alemanha, na sua condição de potência-guia mundial, fundamentada nas qualidades superiores da raça germânica ou nórdica.

b) A saída concreta para esta forma de nacionalismo foi encontrada na doutrina do "espaço vital" necessário aos alemães. Na sua atividade política de cada momento o Nacional-socialismo se apresentou como o mais ardoroso representante das forças contrárias a Versalhes; na sua ideologia, voltou à velha idéia da singular posição da Alemanha na Europa e desenvolveu a doutrina da superioridade cultural e racial de um futuro "império germânico da nação alemã" (como sendo uma nova forma do Sacro Império Romano medieval da nação alemã). A personalidade e as idéias de Hitler proporcionaram a esta reivindicação de hegemonia nacional-imperialista o suporte da ideologia nacionalista, tipicamente austríaca, de uma grande Alemanha; em seguida esta ideologia foi sobreposta às componentes prussiano-alemãs da filosofia do expansionismo. Protegido pela estratégia da revisão do tratado, manipulada com muita inteligência, que enganou a muitos, quer na Alemanha quer fora dela, Hitler buscou, desde o início, um objetivo imutável: expandir o território do estado nacional e ampliar o Lebensraum alemão bem além do "núcleo racial" do povo alemão. A idéia básica de Hitler era a de manifestar o princípio expansionista do estado nacional mediante o princípio imperialista do predomínio dos elementos "superiores" biológica e racialmente, orientando seus ataques contra os eslavos, racialmente "inferiores", ao leste e, internamente, contra os judeus, "o inimigo mundial número um".

c) Não está ainda bem esclarecida a função desempenhada pelo militarismo alemão no meio de todos esses fatores causais. Se, por militarismo, entendemos a agressão, então o problema não se reveste de crucial importância. Porém, é inegável que o exemplo e a tradição de um estado predominantemente militar, como a Prússia, exerceram uma influência notável na estrutura social e de poder do Reich bismarckiano. O exército foi apresentado como o lugar de treinamento para a nação ("Escola da nação"); uma patente no exército de reservistas aumentava o status social de um civil. As considerações militares dominaram até as idéias políticas de amplos segmentos da população. A ideologia "guerreira" do Nacional-socialismo pôde, pois, se estruturar sobre estas bases: Hitler encontrou dificuldades bem menores do que Mussolini na mobilização do povo e na conquista do exército. Todavia, na medida em que se evidencia a função do pensamento militarista prussiano, não é possível ignorar as idéias populares de Hitler de origens austroalemãs. Neste sentido, a energia expansionista de Hitler se orientou também para o combate à idéia reducionista prussiano-alemã do Reich bismarckiano, que, excluindo a Áustria-Hungria, excluia uma notável parcela da nação alemã.

d) Não causa, pois, admiração o fato de que os verdadeiros precursores do N.S.D.A.P., no início do século, foram originários da Áustria e da Boêmia, regiões onde o nacionalismo antieslavo e anti-semita, do tipo sócio-popular e cristãonacional, era fortemente sentido há muito tempo. Também não deve causar admiração o fato de que o partido de Hitler tenha sido fundado em Munique na Baviera, cidade que, assim como Viena, oferecia ambiente favorável às ideologias de seitas nebulosas ligadas a um fantástico misticismo alemão, bem como ao conceito católico da grande Alemanha, mais do que ao conceito prussianoprotestante do estado. Guiados pelos nacional-socialistas, os alemães do sul, os austríacos e os alemães que se consideravam etnicamente puros, se sobrepuseram aos prussianos. Todavia, se não estivesse presente a tradição político-militar e estadual da Prússia, as idéias e a vida do povo alemão, no império e na República de Weimar, não teriam sofrido tamanho processo de militarização, nem o estado totalitário teria consolidado seu poder. A união entre transnacionalismo e militarismo, durante a Primeira Guerra Mundial, teve influência marcante sobre Hitler e sua sobrevivência na luta contra a República de Weimar, bem como na aliança entre nacionalistas reacionários e revolucionários nacional-socialistas. Esta união tornou possíveis os acontecimentos de 1933.

e) A ideologia nacional-socialista proporcionou a mais ampla manifestação das responsabilidades específicas e dos fermentos históricos contidos na idéia do estado e da nação alemães. Ao mesmo tempo, não se pode negar que a Weltanschaung nacional-socialista, diferentemente do marxismo e do comunismo, não é resultado de uma filosofia ou teoria coerente, e sim se caracteriza por um conjunto de idéias e princípios, concepções, esperanças e emoções, unidos por um movimento político radical numa época de crise. A Alemanha não precisava, necessariamente, de caminhar para o Terceiro Reich. Escolheu este caminho, contrariamente ao que fizeram outros países, pela natureza específica das tendências antidemocráticas existentes na Alemanha e pelas específicas condições em que se deu o nascimento do Nacional-socialismo na República de Weimar. A causa final, porém, foi a ruptura profunda entre o pensamento político alemão e o pensamento político ocidental, bem como o surgimento de um particular sentimento fatalista alemão com leves aspectos antiocidentais.

f) Com relação à importância do radicalismo anti-semita, é correto afirmar que os precursores anti-semitas do Nacional-socialismo não tinham qualquer possibilidade de sucesso político antes da grande guerra. Não passavam de grupos insignificantes, divididos entre si no que se referia aos objetivos e também com relação à função dos judeus; não tinham influência alguma no processo legislativo nem, tampouco, tinham condições para propor leis anti-semitas ou controlar o processo de emancipação e assimilação dos judeus, apesar da magnitude de suas manifestações entre 1873 e o início do século XX. Além disso, os grupos conservadores no poder, embora utilizassem de vez em quando o anti-semitismo a seu favor, preparando desta forma o caminho para sua afirmação e seu desenvolvimento, nunca a ele proporcionaram espaços consideráveis, politicamente. Antes da ascensão de Hitler, as manifestações de violência anti-semita na Alemanha eram raras, diversamente do que ocorria na Europa oriental. Naturalmente, o anti-semitismo estava sempre presente, aguardando novas oportunidades, principalmente em períodos de crise política e econômica. Conheceu momentos de grande intensidade nos períodos de 1873 a 1895, 1918 a 1923 e 1930 a 1933, porém sua influência na vida política e a terrível concretização de seus bárbaros objetivos somente se tornaram possíveis, quando conseguiu se incorporar a um grande movimento antidemocrático de massa.

(Continua na próxima postagem.)


20 de novembro de 2007

Nacional-socialismo (I)

Conforme prometido, passo a publicar uma série de textos sobre o nazismo. O primeiro deles, logo abaixo, é retirado do "Dicionário de Política", de Norberto Bobbio, e traz definições sobre o próprio conceito de nazismo (o texto será subdividido em algumas postagens para melhor compreensão). Logo após a definição inicial, farei algumas considerações próprias sobre esta ideologia.

I. PROBLEMAS DE DEFINIÇÃO. O termo Nacional-socialismo possui inúmeros significados e diferentes conotações. No seu sentido mais geral tem sido usado, há mais de um século, por vários movimentos e ideologias políticas, defensores de um tipo de socialismo diferente do socialismo internacionalista e marxista, ou até contrários a ele. Por um lado, o nacionalismo nasceu no século XIX, como reação à sociedade industrial e à emancipação liberal. Por outro, os movimentos nacionalistas nos países em desenvolvimento, sobretudo nos Estados árabes (socialismo árabe), defenderam, até o presente momento, formas novas de Nacional-socialismo, como alternativa ao feudalismo e ao colonialismo. Em todos estes exemplos, todavia, qualquer uso que se faça do termo ficará praticamente abandonado ou provocará mais confusão uma vez que o Nacional-socialismo, como fenômeno político de dimensões históricas mundiais, indica sobretudo o movimento político alemão, fundado e guiado por Adolf Hitler após a Primeira Guerra Mundial, polemicamente conhecido pelo diminutivo de nazismo.

Conseqüentemente, como no caso do fascismo italiano, é preciso não esquecer a origem concreta e o significado político do Nacional-socialismo histórico, todas as vezes que a palavra for empregada na terminologia atual; este cuidado é de suma importância uma vez que termos como fascismo e Nacional-socialismo, inúmeras vezes, são utilizados impropriamente, como instrumentos de polêmica ativa contra o adversário político, sem levar em consideração seu significado original e sua correta aplicação à realidade. Em ambos os casos, a análise do fenômeno histórico -- o Nacional-socialismo alemão e o fascismo italiano -- representa a condição indispensável para qualquer tentativa de definição e aplicação destes termos.

Como fenômeno histórico, o Nacional-socialismo tem que ser definido focalizando dois níveis principais: em primeiro lugar, como reação direta à Primeira Guerra Mundial e a suas conseqüências, porém, também, como resultado de tendências e idéias bem mais antigas, relacionadas com a problemática da unificação política e da modernização social -- problemática que dominou o desenvolvimento alemão desde o começo do século XIX. Sem dúvida foram a inesperada derrota de 1918 e suas trágicas conseqüências -- quer materiais quer psicológicas -- que tornaram possível a fundação e a ascensão política do Nacional-socialismo. Porém, ao mesmo tempo, é importante considerar o fato de que as tendências e as idéias políticas fundamentais do Nacional-socialismo nasceram muito antes de 1918 e da guerra, e que o Nacional-socialismo é bem mais do que um simples movimento de protesto pós-guerra, dirigido por um eficiente agitador de massas como o foi Hitler.

Ambos os níveis -- as raízes ideológicas e a concretização política -- têm a mesma importância na análise e na definição dos principais elementos do Nacionalsocialismo. Suas qualidades dinâmicas e explosivas conseguiram tomar consistência unicamente na situação de crise profunda da Alemanha no primeiro pós-guerra; porém, os aspectos mais radicais do movimento precisam ser explicados como resultados de várias posições ideológicas fundamentais que têm raízes históricas profundas. Estas posições formam o pano de fundo da Weltanschaung nacionalsocialista, onde já encontramos os postulados principais e o vocabulário específico do sistema de valores do Nacional-socialismo, cujas palavras-chaves são: nação, raça, espaço vital (Lebensraum), a comunidade do povo (Volksgemeinschaft), liderança, ação, autoridade, sangue e terra, frente e batalha.

(Continua na próxima postagem.)


Conclusões (II)

(Continuação da postagem anterior)

O estado ampliou sua área de atuação; ampliou-se também a área de atuação da teoria marxista. A dominação de uma classe por outra não tem mais apenas justificativas ou explicações econômicas; as ideologias, as idéias passam também a ter papel fundamental nesta dominação. É importante destacar a função que ambas esferas executam na vida social. As duas esferas -- força e idéias -- formam o estado em sentido amplo: é a "hegemonia escudada pela coerção".


A parte coercitiva ("sociedade política") abrange a todos de forma indiscriminada; a parte não-coercitiva (no sentido da violência, ou seja, a "sociedade civil") abrange apenas aqueles indivíduos que a ela se submetem, sugerindo uma voluntariedade da dominação. Isto é claro: todos devem (devem?) submeter-se à polícia, já que este é um aparelho repressivo do estado -- ou seja, compõe a sociedade política. Mas o indivíduo escolhe, "livremente", em qual escola ele vai matricular seu filho -- ou seja, ele se voluntariza a ser dominado por esta ou por aquela outra escola. Porém, mesmo no caso da sociedade civil, sua abrangência é imensa sobre a maioria da população.

Será justamente esta sociedade civil gramsciana que faz a ligação entre a base econômica da sociedade (a infra-estrutura) e o estado em sentido restrito -- que domina pelo uso da força. Inverte-se o argumento de Marx: a dominação não surge mais de baixo para cima, da economia para o político e o ideológico, da infra-estrutura para a superestrutura; há condicionantes também na superestrutura que garantem, corroboram, legalizam esta dominação e exploração. Além disso, o estado -- ou sociedade política -- não necessariamente precisa dominar por meio da força: ele pode utilizar a sociedade civil -- de uma escola, por exemplo -- para inculcar nos indivíduos a sua vontade própria, ou seja, o estado em sentido restrito mantém contato com a infra-estrutura por meio de um incrível aparelho ideológico do estado.

Como tomar o poder, em uma situação destas? A saída para Gramsci é "simples": a classe que se propõe uma transformação revolucionária da sociedade deve ser uma classe dirigente (ou hegemônica) antes de ser dominante, ou seja, ela deve ter em suas mãos, primeiramente, os aparelhos ideológicos do estado. A classe revolucionária deve conseguir dominar ideologicamente a sociedade, deve primeiro apoderar-se da sociedade civil, infiltrar-se em uma "guerra de posições", para só depois, concluída a conquista dos aparelhos ideológicos do estado, partir para o ataque contra os aparelhos repressivos do estado. É claro o caráter processual da transição revolucionária: deve haver uma expansão da hegemonia das classes subalternas, por meio da conquista progressiva de posições, resultando na imposição de uma nova classe ao poder do estado.

O que fazer, no entanto, se as atividades do estado como garantidor da dominação e da exploração de uma classe por outra forem atividades intrínsecas a este estado, ou seja, se o estado tiver sido criado especificamente para isto? Mais ainda: o que fazer caso este estado reproduza as relações sociais -- desiguais, é claro -- de forma inconsciente? Como fica a luta de classes? Onde ela ocorre? Como o proletariado pode alterar os sistemas econômico, político, ideológico e social se o próprio estado, autonomamente, garante a reprodução e a continuidade do sistema atual? Estas são perguntas fundamentais para os estruturalistas marxistas, tanto para os estruturalistas em termos políticos -- como Poulantzas -- quanto para os estruturalistas em termos econômicos -- como Offe.

O problema se complica ainda mais se levarmos em consideração a existência não de uma, mas de várias burguesias -- ou melhor, de várias frações da classe burguesa como um todo. O estado, estruturalmente, vai reproduzir as desiguais relações sociais; no entanto, cabe à fração burguesa dominante definir de que modo isto vai acontecer, ou em outros termos, "para qual lado o estado irá pender". O que resta ao proletariado? Resta enfatizar a luta de classes não apenas na tomada do poder formal, mas em todo e qualquer espaço existente, disponível, a ser preenchido por alguém da classe dominada. Por que isto é necessário? Porque a classe dominante, obviamente, se sente satisfeita pelo estado refletir estruturalmente a divisão da sociedade em classes e, conseqüentemente, reproduzir tal divisão sem a necessidade da presença constante dos dominantes nas estruturas do estado. No entanto, caso os proletários consigam atingir o poder -- principalmente no caso disto ocorrer por meios formais --, a classe dominante tem condições de alterar o verdadeiro foco do poder. Por exemplo, ela pode tirar o poder das mãos do poder executivo, ocupado naquele momento por um representante da classe dominada, e transferir este poder para o poder legislativo, caso este ainda esteja nas mãos da classe dominante. Ou seja, o poder real passa de uma instituição a outra, de um ramo a outro do estado, e este continuará, portanto, a simplesmente reproduzir estas desigualdades sociais. É necessário, então, organizar e realizar a luta de classes em todas as "trincheiras" possíveis, em todos os espaços disponíveis, para que a burguesia não possa alterar o foco do poder real -- para que o proletariado consiga, efetivamente, tomar o poder e realizar as mudanças necessárias.

A situação é um pouco mais complicada quando se reconhece que o estado é, estruturalmente, um estado capitalista -- ou seja, ele beneficia a classe burguesa não apenas porque ele é um reflexo da sociedade, e as desigualdades da sociedade estão dentro de sua própria estrutura, mas porque o próprio estado depende da economia capitalista para sobreviver como tal. Aqui, a autonomia estatal é ainda maior: o estado deve assegurar as relações de dominação e de desigualdade entre as duas principais classes da sociedade porque, caso não faça isto, ele mesmo desaparece. Ou seja, o estado, nesta visão, depende da existência de uma classe burguesa dominante, e depende também da manutenção desta classe como tal. No entanto, este estado estruturalmente capitalista não pode se mostrar como tal. Ao contrário, o estado deve, sempre, se mostrar como autônomo em relação a todas as classes sociais; deve se mostrar como aquela instituição que busca "o bem comum", "o melhor para todos", independentemente de conflitos de classe. No entanto, "por baixo dos panos", o estado garante e perpetua a dominação burguesa, já que depende dos dividendos auferidos por meio de impostos para sobreviver como tal.

Em suma, podemos ver como um amplo leque de "opções" a serem analisadas pelos marxistas surgiu com a ampliação do estado. Ao abarcar novas tarefas para si, o estado tornou-se, obviamente, mais forte, mais presente na sociedade, mas também mais vulnerável, com mais flancos por onde ser atacado. No entanto, o embate entre "burguesia e proletariado", entre um estado "neoliberal" e um estado "socialista" ainda está longe de acabar: por mais que se mostrem as deficiências do estado capitalista, este sempre tenta se manter, se reproduzir, utilizando-se de todos os meios disponíveis -- a força e as idéias. Cabe aos marxistas encontrar fórmulas que efetivamente minem a estrutura capitalista e levem a sociedade a um patamar melhor do que o atual, sem, entretanto, basear-se em "ilusões" reformistas, que prometem muito e pouco fazem.

Referências bibliográficas:

ALTHUSSER, Louis. Aparelhos ideológicos de estado. 6ª Ed. Rio de Janeiro: Graal, 1985.

CARNOY, Martin. Estado e teoria política. 2ª Ed. Campinas: Papirus, 1988.

CHEVALLIER, Jean-Jacques. As grandes obras políticas de Maquiavel a nossos dias. 8ª Ed. Rio de Janeiro: Agir, 1998.

CHILCOTE, Ronald. Teorias de política comparativa: a busca de um paradigma reconsiderado. Petrópolis: Vozes, 1997.

COUTINHO, Carlos Nelson. Gramsci: um estudo sobre seu pensamento político. Nova edição ampliada. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999.

MARX, Karl & ENGELS, Friedrich. O manifesto do Partido Comunista. Porto Alegre: L&PM, 2001.

MILIBAND, Ralph. O estado na sociedade capitalista. Rio de Janeiro: Zahar, 1972.

OFFE, Claus. Problemas estruturais do estado capitalista. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984.

POULANTZAS, Nicos. O estado, o poder, o socialismo. 4ª Ed. Rio de Janeiro: Graal, 2000.

WEFFORT, Francisco C. Os clássicos da política -- volume 2. 7ª Ed. São Paulo: Ática, 1998.


19 de novembro de 2007

Conclusões (I)

Nas últimas duas semanas fiz uma série de postagens sobre o pensamento socialista desde que o mesmo se originou em sua vertente científica com o Manifesto comunista em 1848. Abaixo apresento, dividida em duas partes, uma conclusão sobre o assunto.

Após esta extensa revisão bibliográfica daqueles que considero como os autores marxistas mais importantes, pode-se chegar a algumas conclusões interessantes, e novas direções para o pensamento marxista podem ser definidas.

A primeira conclusão, clara e óbvia para todos que estudam um pouco a teoria marxista, é a mudança do enfoque da análise de classes entre Marx, Engels e Lênin, de um lado, e os demais marxistas, de outro. Os três primeiros fazem parte da chamada "análise restrita" do estado, uma análise que leva em consideração "apenas" os meios repressivos de atuação do estado. As análises dos marxistas posteriores a estes três pensadores são consideradas como análise "ampliada" do estado, já que incluem, além dos meios repressivos, também os meios ideológicos e até mesmo legitimadores do estado em suas análises.

A diferença não é difícil de ser explicada. Marx e Engels viveram em uma época onde o estado se refletia principalmente pelo poder executivo. Praticamente não havia parlamentos, não havia eleições, não havia participação política da sociedade, não havia organização política da sociedade. Desta forma, com um estado, ele próprio, tão centralizado, nada mais lógico do que lutar contra o cerne, o núcleo deste estado; e, para que esta luta fosse bem-sucedida, era obviamente necessário utilizar-se da violência física contra este estado opressor e onipotente.

A idéia de estado caracterizado apenas como "aparelho repressor" muda ainda ao final do século XIX; é por isto que Engels vai afirmar, ao final de sua vida, que a violência não deve ser usada mais para o ataque contra as posições ocupadas pelo estado, e sim para a defesa das posições conquistadas pelo proletariado. Além disso, a dominação de classe não se manifesta mais apenas por meio da coerção, mas também por mecanismos de legitimação que asseguram o consenso dos governados, como um parlamento eleito por sufrágio universal, partidos políticos legais e de massa, etc. Conseqüentemente, a transição ao socialismo não ocorrerá mais de forma abrupta e violenta, e sim dentro dos quadros legais existentes na república democrática -- ainda que esta república continue exibindo características coercitivas e classistas. Engels enfatiza, assim uma transição processual ao socialismo, e não mais explosiva.

Como explicar, então, a postura extremamente radical, violenta e explosiva de Lênin, que deu vida às suas idéias em termos teóricos após estas mudanças propostas por Engels? A explicação lógica é: contexto histórico. A Rússia czarista da época assemelhava-se, politicamente, a um país europeu do meio do século XVIII, e daí advém a ênfase leninista em destruição do estado, destruição dos meios de exploração de uma classe sobre a outra; daí surge a idéia de que não é possível lutar contra o estado utilizando seus próprios mecanismos burgueses -- notadamente as eleições. Para se efetuar mudanças sociais, os dominados deveriam utilizar sim a violência física, deveriam utilizar a força para atingir seus objetivos. Tal era a situação política da Rússia na época que permitiu que as idéias de Lênin dessem resultados concretos -- com a Revolução de Outubro de 1917. Se a essência do estado reside em seus aparelhos coercitivos e repressivos, para Lênin é impossível substituir o estado burguês pelo estado proletário sem uma revolução violenta, com a destruição completa da velha máquina estatal (nenhuma forma e/ou instituição do "velho" aparelho de estado pode ser reformada) e com as massas operárias e camponesas estando conscientes de que só atingirão o poder por meio de uma revolução violenta.

Se a solução "explosiva" deu certo na Rússia, assim não aconteceu nos demais países da Europa, notadamente nos da Europa ocidental. Porém, o marxismo "não morreu" -- e surge então Gramsci para fazer a "ampliação definitiva" do conceito de estado. Ora, o que é esta ampliação do conceito de estado, senão o reconhecimento de que a luta de classes não se dá apenas entre os proletários, de um lado, e a burguesia de outro, sendo esta última apoiada única e exclusivamente pelo poder executivo, mas sim entre os proletariados, de um lado, e a burguesia de outro, apoiada pelo poder executivo, pelo poder legislativo, pelo poder judiciário, pelo sistema partidário, pelo sistema educacional, pelo sistema religioso... De um momento para outro, o estado ampliou sua "área de atuação", trazendo novas dificuldades e desafios para a doutrina marxista. Não basta apenas lutar contra as armas: deve-se lutar também contra as idéias pelas quais estas armas lutam.

É claro que o estado não deixa de ser um aparelho repressivo, que garante a dominação de uma classe sobre a outra meramente por meio de idéias. Ao contrário: o estado reforça estas idéias, esta dominação ideológica, por meio do seu já consolidado aparelho repressivo. No entanto, Gramsci destacou não apenas o que seria a "sociedade política" (conjunto de aparelhos pelos quais a classe dominante detém e exerce o monopólio legal da violência), mas principalmente o que seria a "sociedade civil" -- que também estaria no campo da superestrutura e seria formada por sistema escolar, igrejas, partidos políticos, organizações profissionais, meios de comunicação, etc.

(Continua na próxima postagem.)


16 de novembro de 2007

Problemas estruturais do estado capitalista

Claus Offe nasceu em Berlim e é um dos principais sociólogos políticos de orientação marxista do mundo. Foi aluno de Jürgen Habermas. Atualmente dá aulas em uma universidade particular em Berlim.

Suas principais contribuições acadêmicas se referem às relações entre democracia e capitalismo. Seus trabalhos recentes são focados nas economias e nos estados em transição para a democracia.

Para Offe, o problema das teorias marxistas do estado é que elas não levam em conta que o estado, embora não seja ele próprio capitalista, precisa ser concebido, apesar de tudo, como um estado capitalista -- e não somente como "um estado dentro da sociedade capitalista".

Para determinarmos o caráter classista do estado, não basta apenas basearmo-nos nas teorias da influência. É necessário perceber que os interesses da classe dominante expressam-se em decisões legislativas e administrativas do aparelho estatal que não são desencadeadas por interesses articulados, mas que brotam das próprias rotinas e estruturas formais das organizações estatais. Assim, é necessário comprovarmos o caráter de classe capitalista do estado, e tal comprovação é feita por meio da explicitação das analogias estruturais entre o estado e a economia organizada sob forma capitalista.

O estado cria uma seletividade nas ações e decisões que toma. É o estado quem define o que fazer, e não a burguesia. Contudo, as decisões estatais favorecem a burguesia, pois as ações selecionadas pelo estado fundamentam o caráter classista da dominação estatal.

O aparelho estatal deve escolher e selecionar somente aqueles interesses compatíveis com os "interesses globais do capital", de forma a favorecer sua articulação. Adicionalmente, o estado necessita de uma seletividade que permita ao mesmo defender prática e politicamente o interesse de classes que ele próprio constituiu e reduziu ao seu núcleo racional, conferindo-lhe oportunidades de realização fundamentalmente privilegiadas. Caso o estado não tome tais atitudes, ele poderia ainda assim estar vinculado a interesses de classe, mas não seria um "estado de classe". A dominação estatal somente tem caráter de classe quando for construída de modo a proteger o capital tanto de sua própria falsa consciência quanto de uma consciência anticapitalista.

O problema da teoria do estado que quer comprovar o caráter classista de dominação política e sua cumplicidade estrutural com o interesse do capital global consiste no fato de que ela não é absolutamente realizável como teoria, como descrição objetivante das funções estatais e de sua inserção em um complexo de interesses. É necessária a luta de classes prática para que a teoria funcione. O estado, desta forma, exerce sua dominação política sem demonstrar que a está exercendo. Para o estado manter sua soberania em suas decisões, é necessário que o aparelho estatal assuma funções de classe sob o pretexto da neutralidade de classe e invoque o álibi do universal para o exercício do seu poder particular. O estado precisa simultaneamente praticar e tornar invisível o seu caráter de classe. As operações de seleção e direcionamento de caráter coordenador e repressor que constituem conteúdo de seu caráter classista precisam ser desmentidas por uma terceira categoria de operações seletivas de caráter ocultador. Somente a preservação da aparência da neutralidade de classe permite o exercício da dominação de classe.

O sistema político teria, portanto, duas "faces": uma é a simbólica, onde aparecem os conflitos políticos, as eleições, os pronunciamentos públicos e o desempenho dos papéis oficiais, entre outros. Além disso, existe também a face substantiva, que é onde ocorrem as proteções, deduções de taxas, descontos, benefícios e o processo orçamentário protegendo e servindo os grandes interesses dos produtores, ora contornando e ignorando a lei em benefício dos poderosos, ora aplicando-a com todo o seu rigor punitivo contra os "heréticos" e os "desordeiros". O sistema simbólico é extremamente visível. O sistema substancial se coloca raramente em evidência, não sendo levado em conta.

Inicialmente deve ser comprovado o desenvolvimento simultâneo e convergente das funções do estado que servem para a consolidação dos pré-requisitos do processo de valorização e das categorias de operações seletivas que fazem com que o caráter classista e específico destas funções se torne invisível.

Mais importante que este paralelismo é o critério da não-identidade de conteúdo entre a percepção das exigências funcionais da economia capitalista e os motivos mobilizados para sua implementação. Assim, "bem-estar para todos" é o lema de uma política econômica que torna a distribuição da renda cada vez mais desigual; a "educação como direito do cidadão" é proclamada quando se percebem afunilamentos no mercado de trabalho; o cultivo de motivos caritativos em relação aos países do Terceiro Mundo fornece o pano de fundo para a legitimação da conquista, consciente e ampla, de mercados. Nestas condições, a propaganda de candidatos social-democratas enfrentando seus eleitores assume quase o caráter de uma mentira necessária.

Os conflitos que surgem com tais ações servem como provas concretas do caráter de classe da dominação estatal. Para suprimir tais conflitos, os próprios social-democratas acabam radicalizando no uso da repressão e da disciplina, que são instrumentos usados pela burguesia que a social-democracia pretendia destruir.

As estruturas formais da democracia burguesa não são apenas a única alternativa realizável no contexto das relações de produção capitalistas. Elas são adicionalmente indispensáveis, devido à sua importância para as relações de produção. Suas funções são de dois tipos: elas estruturam de tal forma o instrumento de direção do poder político que o aparelho estatal, mesmo ao preço de novas contradições, consegue, dentro de certos limites específicos, superar a contradição entre produção social e apropriação privada; e permitem constituir um interesse de classe sistêmico capitalista, capaz de superar em racionalidade cada interesse individual capitalista.

Referências bibliográficas:

OFFE, Claus. Problemas estruturais do estado capitalista. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984.


14 de novembro de 2007

O estado, o poder e o socialismo

Nicos Poulantzas foi um filósofo e sociólogo grego. É bastante conhecido pelo seu trabalho teórico sobre o estado, visto por meio de lentes marxistas. Além disso, analisou também o fascismo, as classes sociais no mundo contemporâneo e o colapso das ditaduras do sul da Europa (Portugal, Espanha e Grécia).

Poulantzas era de linha marxista e membro do Partido Comunista da Grécia. Exilou-se para Paris onde lecionou a partir de 1960. Foi aluno de Louis Althusser. Empreendeu uma série de estudos sobre o Estado e as classes sociais que se tornaram referências. Abaixo, pequeno resumo de seu texto "Estado, poder e socialismo".

O problema das teorias relativas ao estado é que elas colocam a luta de classes como algo que apenas faz variar ou concretizar este estado, e baseiam-se apenas nas relações de produção. As constantes mudanças pelas quais o estado passou mudaram profundamente suas relações de produção e sua divisão social do trabalho. É necessária, portanto, a construção de uma teoria do estado que leve em consideração, partindo-se das relações de produção, as lutas de classes.

Nota-se que as teorias marxistas ficam centradas em apenas um aspecto: todo estado capitalista é uma ditadura da burguesia. Acha-se que tudo o que acontece de ruim com o proletariado é culpa do estado e da burguesia; toda dominação política é uma ditadura de classe; e assim sucessivamente. É necessário, então, construir uma teoria que coloque as lutas de classes como papel histórico fundamental responsável pelas sucessivas mudanças e alterações pelas quais o estado capitalista passou no decorrer de sua existência.

O estado capitalista coloca a burguesia como classe política dominante. É importante notar, contudo, que a classe dominante não é composta de uma burguesia, e sim de várias frações burguesas, que impõem suas vontades à direção do estado. O próprio estado é organizado para manter o interesse da classe burguesa dominante em longo prazo. O estado, contudo, dispõe de certa autonomia em relação a estas frações, pois ele está relativamente separado das relações de produção. Esta autonomia está garantida pelo fato de que o estado precisa dela para assegurar a organização do interesse geral da burguesia sob a hegemonia de uma de suas frações. O estado produz resultados não de forma mecânica, mas por meio de uma intensa luta entre as burguesias dominantes. Poder-se-ia, desta forma, supor que a orientação social dada pelo estado poderia mudar, desde que a fração dominante fosse operária.

Existem duas concepções em relação ao estado: a primeira diz que o estado é uma Coisa, e que suas atitudes são tomadas pela simples manipulação por parte de uma única fração da burguesia, ou seja, o estado não tem nenhuma autonomia. A segunda diz que o estado é um Sujeito, e, portanto, tem uma vontade pensante, um poder próprio e, principalmente, autonomia em relação às classes sociais. O estado seria um instrumento para impor a política burguesa aos interesses divergentes e concorrentes da sociedade civil. Na concepção de estado-Coisa, cada fração dominante ficaria com a melhor parte para si, dando unidade ao estado. Já na concepção de estado-Sujeito, a unidade do estado seria uma decorrência do fracionamento da sociedade civil.

O estado não é unitário. O poder do estado está disperso em cada ramo do mesmo. O poder é exercido, então, pela fração mais hegemônica, ou então pela aliança de várias frações contra outra ou outras. Por mais contraditório que pareça, é o jogo destas disputas na materialidade do estado que torna possível a função de organização do estado.

A autonomia do estado não advém do fato de o estado manter-se exterior às frações do bloco de poder. A autonomia existe justamente pelas disputas de e pelo poder por parte destas diversas frações. Isto não significa que não existam medidas coerentes, nem que o estado não tenha um papel próprio exercido por sua burocracia.

O estado possui unidade de aparelho. Isto significa dizer que ele empenha todos os seus recursos para atender as reivindicações da classe ou fração hegemônica. Esta unidade está no núcleo do estado, por meio da própria divisão social do trabalho dentro dele próprio, e da separação específica das relações de produção.

Pode-se dizer, portanto, que as medidas adotadas pelo estado têm como origem a fração ou classe dominante no poder, ou seja, as políticas que estrangulam certas classes e beneficiam outra(s). A classe hegemônica não utiliza apenas os aparelhos dominantes que já estão ao seu lado; usam todo o aparelho dominante do estado.

Analisando-se agora um partido operário que quisesse fazer uma transição para o socialismo, vemos que não é necessário apenas tomar o poder de estado. Deve-se estender a transformação dos aparelhos de estado, e isso só é possível com a tomada do poder.

O simples fato de a esquerda ocupar o poder não significa necessariamente que ela detenha o poder. A burguesia pode alterar os lugares do poder real e do poder formal. Além disto, mesmo que a esquerda detenha o poder e os aparelhos de estado, ela pode ainda não dominar o mesmo, caso a burguesia domine o pivô central do estado, ou seja, caso a burguesia seja a classe ou fração dominante. E mesmo que a esquerda domine o aparelho dominante do estado, a burguesia pode alterar este papel dominante, tornando dominante o papel que ela, burguesia, detém, e tirando o poder da esquerda. O estado é, portanto, um campo estratégico, que aceita permutações e trocas por parte da burguesia para que esta se mantenha sempre no poder; ele está sempre em mudança.

Vale a pena ainda lembrar que, em relação aos aparelhos do estado, o poder propriamente dito situa-se difuso dentro do próprio aparelho, e não no cume, hierarquizado. Desta forma, caso a esquerda domine um aparelho, a burguesia existente dentro dele pode modificar o foco do poder e continuar manipulando tal aparelho. Assim, mesmo que a esquerda domine os cumes, resta saber se ela controla realmente os núcleos do poder real.

Referências bibliográficas:

POULANTZAS, Nicos. O estado, o poder, o socialismo. 4ª Ed. Rio de Janeiro: Graal, 2000.


13 de novembro de 2007

Deixemos a história julgar as revoluções russas

O texto abaixo é um artigo publicado no jornal "The Moscow Times". É bastante interessante e, por isto, o publico aqui. Infelizmente não tenho tempo para traduzir o artigo inteiro, então ele é publicado em seu original. Perdoem-me aqueles que não falam inglês.

Let History Judge Russia's Revolutions

By Roy Medvedev

A plethora of anniversaries is arriving in Russia. This month commemorates the 90th anniversary of the October Revolution and the 25th anniversary of the death of Leonid Brezhnev. Next month will see the 16th anniversary of the Soviet Union's disintegration. Only by understanding that first event, however, can we understand the others.

The October Revolution has always had many critics. The philosopher Ivan Shmelev named it "the great beating of Russia." Pre-Revolutionary writer Vasily Rozanov called it "The Massacre of Russia." Countless authors view it as a tragedy that broke the flow of history and destroyed the country's best people.

But the Revolution also has its apologists, for whom it marked the beginning of a new era in history, a breakthrough to freedom from a world of slavery and oppression, a salvation for Russia and Europe and a source of hope for Asia and Africa. According to this view, there was no conspiracy but a great social revolution that, by virtue of a powerful internal logic, brought to power workers, peasants, and the Bolshevik Party, which represented their will.

For the majority of Russians who grew up in the Soviet system, there is truth in both views, but no place for ultraradical criticism of the Revolution and other aspects of socialist life in 20th-century Soviet Union. The Revolution is not only history for many people, it is also a part of life and consciousness. Of course, this does not excuse those who refuse to listen to reasoned analysis about our country's past, but Russians won't accept glib rants.

Studying the Revolution is almost as old as the Revolution itself and has yielded a massive amount of research both at home and abroad. But, even today, we are still far from understanding many important factors, connections, motives, reasons and consequences of what happened in 1917 and the first years of Soviet power. Few events in history have generated so many concepts and theories for their explanation and assessment -- or so many falsifications, both crude and sophisticated.

Both the Bolsheviks and their opponents were involved in these falsifications, concealing, distorting, and concocting facts and circumstances, whether referring to the real role of Stalin or Trotsky in the Revolution or to the behavior of peasants and Cossacks. Thousands of names fell out of the history, people's deeds were passed to others, and the nature, motives, and activities of parties, groups, national movements and classes were distorted.

The Revolution and its leaders were idolized, and falsified reputations and biographies were created. The real course of events was simplified and "straightened," with each stage of the Revolution made into the natural continuation of the previous one. Nobody talked about the mistakes, doubts, hesitations and ignorance of the Revolution's leaders. The most important archives were inaccessible, and some documents were destroyed.

The situation started to change from 1988 to 1991, when the history of the Soviet Union and the Russian revolutions moved to the center of public attention. The collapse of the Soviet Union and the Communist Party opened new horizons -- and almost all archives -- for historians. Masses of documents and other sources related to the beginnings of Soviet power became accessible for survey and analysis. Today, no matter what people say of President Vladimir Putin's administration, we are free from political and strict ideological censorship. Although today's new political reality is creating its own new myths and falsifications, this has not extended to historians' work. So the impartial history of the Revolution that has not been written may yet be.

Putin rarely talks about the problems of Russia's 20th-century history, once replying to a direct question about his attitude toward the events of 1917 by saying that he considered it to be "the country's natural reaction to defeat in the World War I." When he visited the Russian cemetery near Paris -- where many central figures of the "White" movement and Russian emigrants are buried -- Putin placed wreaths on the graves of poet Ivan Bunin and Vika Obolenskaya, a hero of the French resistance.

Putin also stopped near the common gravestone of generals and officers of the White Army. "We are children of the same mother -- Russia," said Putin, "and it's time for us all to unite." The remains of Andrei Denikin, a White Army general, have recently been moved to Moscow, and the remains of Vladimir Karpel, another White Army general, to Irkutsk.

A monument to Admiral Alexander Kolchak, who led the White Army against the Bolsheviks, has been erected in Irkutsk, and a monument to Nicholas II has been built in Moscow. Indeed, the Orthodox Church has consecrated Nicholas II a saint. These are steps toward the unification of a state and nation and not attempts to gain revenge or break up the country. Today, good conditions exist for calm and unbiased examination of Russia's past, from the Revolution to the days of stagnation under Brezhnev.

It is a moment that historians must seize.

Roy Medvedev, a historian and former Soviet dissident, is the author of "The October Revolution" and "Let History Judge: The Origins and Consequences of Stalinism." This comment appears © Project Syndicate.

Original disponível aqui.