29 de fevereiro de 2008

O dever, a moral e o direito na perspectiva de I. Kant (III)

(Continuação da postagem anterior.)

A LEI MORAL

O paradigma estampado por Kant no que diz respeito ao comportamento humano é o seu imperativo categórico -- uma lei moral que é incondicional situada na consciência humana; é ela quem determinará o certo e o errado. Para ilustrar melhor o que dissemos, atentemos para o que C. Helferich diz sobre isso:

A obrigação de agir eticamente [...] mesmo em desacordo com a própria sensibilidade [a natureza em nós -- 'o patife interior'], tem um caráter incondicional. Kant chama essa instância de lei moral. Ela se manifesta como uma ordem dentro de nós. A obediência à lei moral é um dever incondicional. Nessa obediência reside, no entanto, toda dignidade do homem! O dever de seguir a lei moral é base e garantia de sua liberdade!(30)

Seu célebre imperativo categórico é assim formulado: "Age como se a máxima da tua ação devesse se tornar, pela tua vontade, lei universal da natureza."(31)

Percebe-se, portanto, que "agir moralmente é cumprir com seu dever 'sem esperar resultado'"(32). Assim, "devo agir, portanto, de tal modo que aquilo que considero correto possa ser válido ao mesmo tempo para todos os outros"(33). Conforme o imperativo categórico, é impossível que um político minta, mesmo que sua mentira seja para uma boa intenção. A mentira(34) não pode tornar-se princípio de uma legislação universal.

Patente está que a ética kantiana é a ética do dever pelo dever. Ela não vislumbra resultados e nem recompensas, pois a vontade em seu móbil deve estar submetida à lei moral, cravada na consciência do homem.

MORAL E DIREITO

O pensamento jurídico de Kant está concretizado na Metafísica dos Costumes. Assim, de antemão, é necessário a princípio reconhecer, com base na Metafísica dos Costumes, os dois tipos de legislação que atuam sobre o homem, cônscio de sua liberdade: a legislação interna, circunscrita à ética e ao foro íntimo e a legislação externa, que se prende à regulação que uma pessoa exerce sobre a outra. A primeira aponta-nos para o plano da Moral, norteada pela autonomia da vontade e a segunda para o Direito, aqui não basta somente agir, prioritariamente, através da vontade, além disso, será necessário que a ação esteja de acordo com a norma, se assim não for, as sanções recairão sobre o agente violador. O desfecho que se dá, é: a Moral está para a autonomia, assim como o Direito está para heteronomia.

Assim, em Kant, os limites do Direito estão reduzidos ao campo externo das relações entre os homens. Então,

quando a Moral diz "não mates", não precisa de qualquer outra justificação. O próprio imperativo moral basta-se a si mesmo [...] Os preceitos autônomos, que se bastam a si mesmos, por conterem em si próprios a sua finalidade, são preceitos morais.

Já não acontece o mesmo com os preceitos jurídicos. O Direito é eminantemente [sic] técnico e instrumental. Toda norma jurídica é instrumento de fins [...] sua finalidade é a segurança geral, a ordem pública, a coexistência harmônica das liberdades, etc.(35)

Identifica-se, aqui, nas palavras de Reale que o Direito, como instrumento utilizado para evidenciar a legalidade, objetiva garantir a liberdade entre os homens. Se esta liberdade é vítima de transgressão, a função de coercitividade do Direito virá a lume, com o intuito de preservá-la. Aliás, em A Paz perpetua, o Direito terá a função de garantir coexistência pacífica entre os homens. Nesse mesmo sentido, Bittar e Almeida expõe a diferença entre moralidade e juridicidade: "aí vai a grande diferença entre moralidade e juridicidade de uma ação [...], a moralidade pressupõe autonomia, liberdade, dever e auto-convencimento; a juridicidade pressupõe coercitividade"(36).

Em suma, "ninguém tem o direito de fazer o que deseja, exceto quanto deseja fazer o que é direito"(37).

CONCLUSÃO

A Filosofia de Kant é um manancial inesgotável. Sua obra de difícil intelecção perpassa pelos mais diversos ramos do conhecimento, inclusive o Direito. Kant por meio do criticismo tentou solucionar o problema do conhecimento, através de uma síntese entre racionalismo e empirismo. Sua solução abriu ainda mais a problemática da epistemologia e da metafísica. No campo jurídico, sob influência de Thomasius, estabeleceu um paralelo entre Moral e Direito, tendo como fundamento deontológico uma ética do dever, onde a liberdade é assegurada na observância da conformidade com a máxima do imperativo categórico. Enquanto a Moral exige uma legislação interna e autônoma, em que a liberdade e o dever se entrelaçam, o Direito, por sua vez, exige o cumprimento de legislações externas, e para tal dispõe da coação para fazer valer a ação legal.

O sistema filosófico-jurídico kantiano tem seu cerne no universalismo de seu imperativo categórico, determinado pela razão prática.

O supra-sumo do pensamento de Kant está no seu encantamento, que Reale, magistralmente, interpreta: "o dever impõe-se a nosso espírito com o mesmo esplendor com que contemplamos nos céus as estrelas. 'Há duas coisas que me deslumbram, dizia Kant, 'as estrelas no exterior, e o imperativo do dever, a "boa vontade", no plano da consciência'"(38).

Nas palavras do próprio Kant, literalmente, lemos: "Duas coisas enchem a alma de uma admiração e de uma veneração sempre renovadas e crescentes, quanto mais freqüência e aplicação delas se ocupa a reflexão: O céu estrelado sobre mim, e a lei moral em mim"(39).

(30) Op. cit., p. 251.
(31) KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes, p. 52, gf. do autor.
(32) COMTE-SPONVILLE, André. Op. cit., p. 41
(33) HELFERICH, Christoph. Op. cit., p. 252
(34) Kant abordou o tema em seu texto "Sobre um suposto direito de mentir por amor à humanidade". Aqui Kant afirma: "É um dever dizer a verdade" (Sobre um suposto direito de mentir por amor à humanidade, p. 123).
(35) REALE, Miguel. Op. cit., p. 660.
(36) Curso de filosofia do direito, p. 278.
(37) Fonte desconhecida.
(38) Op. cit., p. 660.
(39) Crítica da razão prática, p. 172, gf. do autor.

BIBLIOGRAFIA

BITTAR, Eduardo C. Bianca; ALMEIDA, G. Assis. de. Curso de filosofia do direito. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2002.
COMTE-SPONVILLE, André; DELUMEAU, Jean; FARGE, Arlette. A mais bela história da felicidade. Trad. Edgar A. Carvalho; Maria P. Bosco. Rio de Janeiro: Diefel, 2006.
COLLINSON, Diané. 50 grandes filósofos. Trad. Maurício Waldman; Bia costa. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2004.
DURANT, Will. A história da filosofia. Trad. Luiz C. N. Silva. Rio de Janeiro: Nova cultural, 1996. (Col. Os Pensadores)
HELFERICH, Christoph. História da filosofia. Trad. Luiz S. Repa; Maria E. Heider; R. Nascimento. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
HESSEN, Johannes. Teoria do conhecimento. Trad. João V. G. Cuter. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
KANT, Immanuel. Crítica da razão prática. Trad. Rodolfo Schaefer. São Paulo: Martin Claret, 2005.
_____. Fundamentação da metafísica dos costumes. Trad. Rodolfo Schaefer. São Paulo: Martin Claret, 2005.
_____. Sobre um suposto direito de mentir por amor à humanidade. Trad. Leopoldo Holzbach. São Paulo: Martin Claret, 2005.
LEITE, Flamarion Tavares. 10 lições sobre Kant. Petrópolis. RJ: Vozes, 2007.
MORENTE, Manuel Garcia. Fundamentos de filosofia -- lições preliminares. Trad. Guilhermo de la C. Coronado. 8. ed. São Paulo: Mestre Jou, 1930.
NADER, Paulo. Filosofia do direito. 15. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006.
REALE, Miguel. Filosofia do direito. 20. ed. São Paulo: Saraiva, 2002.
REZENDE, Antonio (org.). Curso de filosofia. 13. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005.


27 de fevereiro de 2008

O dever, a moral e o direito na perspectiva de I. Kant (II)

(Continuação da postagem anterior.)

Seu epígono, Johann Herder, escreveu sobre ele:

eu tive a grande sorte de conhecer um filósofo [...] nenhum desejo por fama poderiam alguma vez tê-lo tirado do caminho reto e claro da verdade.[...] Este homem, sobre o qual eu sublinho com a maior gratidão e respeito era Emanuel Kant(13).

Paralelo a isso e com a mesma convicção, Will Durant afirma que "a filosofia [...] deverá ser sempre diferente, daqui por diante, e mais profunda, porque Kant existiu"(14).

O RACIONALISMO CRÍTICO DE KANT

A postulação doutrinária de Kant "promoveu o fim da Escola Clássica e o início da Escola do direito Racional"(15). O racionalismo elaborado por nosso filósofo difere do cartesiano, visto que este enfatiza o primado da razão como o único meio de origem do conhecimento; em Leibniz continuaremos a encontrar resquícios desse cartesianismo. Para situarmos bem a questão do racionalismo puro de Descartes, tomemos como referência a teoria de suas idéias inatas (idae innatae).

Segundo ela, há em nós um certo número de conceitos inatos, conceitos que são, na verdade, os mais importantes, fundamentadores do conhecimento. Eles não provêm da experiência, mas constituem um patrimônio original de nossa razão(16).

Kant, que se sente despertado do seu sono dogmático, não sustentará em sua plenitude o primado da razão como origem do conhecimento, nem tampouco deixar-se-á convencido de que o empirismo (de empería, experiência) proposto por Bacon, Hume e Locke seja a fonte de todo o conhecimento. Nem um e nem outro isoladamente podem, conforme demonstramos, para Kant, conduzir-nos ao conhecimento; "ambos os pontos de vista são, segundo ele, unilaterais"(17). O que Kant propõe, portanto, é uma síntese da antítese racionalismo-empirismo. É em meio a esse impasse opositivo entre racionalismo e empirismo que nosso filósofo se vale do criticismo(18).

O apanágio do criticismo kantiano é o apriorismo. Este, a grosso modo, é uma forma do conhecimento que independe da experiência. Nesse sentido, Kant aproxima-se do racionalismo; todavia, não se distancia do empirismo, na medida em que o objeto fornece dados ao sujeito para este formatar o conhecimento. Sobre isso, Hessen afirma: "o material do conhecimento provém da experiência, enquanto a forma provém do pensamento"(19). Assim, "conhecer é unir um elemento material de ordem empírica e intuitiva aos elementos formais de ordem intelectual, elementos estes que são a priori em relação aos dados sensíveis, cuja ordenação possibilitam"(20).

O criticismo kantiano não ficou restrito apenas ao nosso filósofo, sua teoria do conhecimento serviu de esteio para nomes como o de Rudolf Stammler e Del Vecchio. Estes fazem parte do movimento denominado de neokantismo.

Não nos cabe, aqui, ir mais além, pois a epistemologia kantiana é inexaurível. Doravante, uma vez tendo, de certo modo, compreendido o formalismo de Kant, adentraremos, agora, na sua esfera moral.

A ÉTICA KANTIANA

Na Crítica da Razão Pura(21), Kant trata de examinar as possibilidades da razão. Nesta sua obra máxima, a razão é posta como que num tribunal; diante disso, conceitos como o de liberdade, alma, Deus, o universo, não estão ao alcance da razão humana, haja vista que não podemos compreender a coisa em si (noumenon), apenas o fenômeno (phenomenon), isto é, "o modo como a realidade nos aparece e é conhecida"(22). Assim, "o balanço da Crítica da Razão Pura é, portanto, negativo"(23), diz C. Helferich.

Diante disso, Kant migra da razão pura para uma prática, pautada nos fundamentos do agir livre, sem ser movido por nenhum tipo de coação, mas na autonomia de uma vontade alicerçada em uma lei moral universal -- eis a ética kantiana.

O problema da ética é abordado no campo da ação prática, do dever ser ausente de todo motivo teleológico, utilitário, hedonístico...

Qualquer ação voltada, desse modo para um bem, não é uma ação livre, visto que o móbil desta ação é um meio para se chegar a um fim. Nesse sentido, o agente da ação agiu segundo suas necessidades emocionais e não por meio da razão prática. Segundo Comte-Sponville, "Kant acredita que é justamente por isso que a felicidade é um ideal que 'não procede da razão, mas sim da imaginação'"(24).

O problema da ética em perspectiva kantiana é posto numa indagação fulcral: "O que devo fazer?"(25).

O levantamento dessa questão está associado, subjacentemente, ao plano jurídico; concernente a isso, vejamos o que diz Reale: "O Direito, como experiência humana, situa-se no plano da Ética, referindo-se a toda a problemática da conduta humana, subordinadas a normas de caráter obrigatório"(26). Outrossim, "é na razão prática desdobrada em vontade e tendo a idéia de liberdade por fundamento -- que vai situar, em germe, a concepção jurídica kantiana, desenvolvida mais tarde em A Metafísica dos Costumes"(27).

Posto desta maneira, a ação do ser humano, como outrora dissemos, deve ser livre de qualquer coercitividade, ela deve seguir uma norma racional universal, que todos ao mesmo tempo sintam-se motivados por ela, visto que é moral e desprovida de qualquer outro interesse que não seja o dever. Assim, o agente não deve ser impingido a cumprir essa norma, senão a sua liberdade será violada. Sua ação deve ser livre, pois cumpre uma legislação universal fundamentada na moralidade e nos ditames da razão. Noutras palavras, o caráter de sua conduta seguirá a priori uma norma que valha, universalmente, para todos os homens, de modo que os outros também possam seguir o exemplo dessa conduta porque ela não foi destinada a nem um fim, mas apenas ao dever. Decerto, agindo assim, a liberdade não será transgredida.

Como se vê, a ética de Kant é uma ética do dever, onde todas as nossas ações devem obedecer aos princípios da razão, pois

se você praticá-la com a condição de obter felicidade, ela deixa de ser uma boa ação no sentido moral do termo [que, ao contrário, pressupõe o dever como algo incondicional]. Se você pratica o bem para ser feliz, sua ação é egoísta. Ela não é dotada de nenhum valor moral(28).

Assim sendo, "apenas aquele que age por puro dever, age moralmente"(29).

Entretanto, que norma norteará a conduta do agente que enseja o viver ético? É com essa preocupação que Kant formula seu imperativo categórico -- uma espécie de lei moral que jaz em nossa consciência.

(13) In: COLLINSON, Diané. Op. cit., p. 161
(14) Op. cit., p. 246
(15) Cf. VECCHIO, Giorgio Del; MORENO, Ruiz. Apud. NADER, Paulo. Filosofia do direito, p. 143.
(16) HESSEN, Johannes. Teoria do conhecimento, p. 52-53.
(17) Id., Ibid., p. 43
(16) "O criticismo kantiano é a confluência de duas direções fundamentais do pensamento filosófico: o racionalismo dogmático [Descartes- Spinoza- Leibniz] e o empirismo cético [Bacon-Locke-Hume]” (LEITE, Flamarion Tavares. Op. cit., p. 36)
(19) Op. Cit., p. 63
(20) REALE, Miguel. Op. cit., p. 101/102
(21) "publicada em 1781; em 1787 foi impressa a segunda edição, com consideráveis acréscimos e esclarecimentos e novos pontos obscuros” (HELFERICH, Christoph. Op. cit., p. 243)
(22) ROHDEN, Valério. O criticismo kantiano. In: REZENDE, Antonio (org). Curso de filosofia, p. 141.
(23) Op. cit., p. 250
(24) A mais bela história da felicidade, p. 39
(25) Cf. HELFERICH, Christoph. Op. cit., p. 250
(26) Op. cit., p. 37
(27) LEITE, Flamarion Tavares. Op. cit., p. 54, gf. do autor.
(28) COMTE-SPONVILLE, André. Op. cit., p. 41
(29) LEITE F. T. Op. cit., p. 57

(Continua na próxima postagem.)


26 de fevereiro de 2008

O dever, a moral e o direito na perspectiva de I. Kant (I)

José Fernandes P. Junior(1)

RESUMO

A importância da filosofia de Kant é incomensurável. Conhecido como filósofo das três críticas versou sobre os mais variados temas do conhecimento. Utilizou-se do criticismo para tentar uma síntese que superasse as unilateralidades do racionalismo e empirismo. Valeu-se da razão prática para adentrar em conceitos inatingíveis pela razão pura. Sua ética do dever é formulada em seu célebre imperativo categórico. No âmbito jurídico, estabeleceu um paralelo entre Moral e Direito, evidenciando as diferenças entre ambos e sua relação. Embora delimitado, aqui, o tema é inesgotável e aberto às muitas possibilidades de entendimento.

PALAVRAS-CHAVE: Criticismo, Imperativo categórico, Dever, Moral e Direito.

INTRODUÇÃO

O manuscrito que se segue tem o escopo de contribuir, despretensiosamente, para o entendimento de algumas questões relevantes do pensamento de Kant. A intenção é expor e trazer luz (se é que isso é possível) ao seu hermético arcabouço filosófico. Assim, não nos remeteremos à crítica, mas tão-somente à exposição de sua filosofia jurídica.

Num primeiro momento, traçaremos de modo muito sucinto um perfil biográfico de sua pessoa. Em seguida, examinaremos o seu criticismo -- caminho que trilhou para superar a antítese entre racionalismo e empirismo. Depois nos situaremos na questão da ética, que nos remeterá à abordagem da lei moral através do imperativo categórico. Por último, buscaremos diferenciar Moral e Direito e qual o liame existente entre ambos.

Acreditamos não ser possível a compreensão do pensamento jurídico de Kant sem algumas noções de sua filosofia propriamente dita, por isso recomendamos ao leitor a busca dessas noções elementares. Diante dessa constatação, procuramos desenvolver um texto acessível que convide tal leitor ao prazer de tentar compreendê-lo.

KANT EM PESSOA

Immanuel Kant viveu de 1724 a 1804. Oriundo da pequena Königsberg -- Prússia, cidade que na época contava com cerca de cinqüenta mil habitantes.(2)

"Kant vivia tal como ensinava"(3), escreveu R.B. Jackmann; com isso queria insinuar que sua vida era marcada por um profundo senso moral, calcada no ambiente educacional pietista que seus pais o legara. Sua existência cumpriu o transcurso de uma vida de extrema intelectualidade, regrada pela disciplina e conduta admiráveis. Quadro bem detalhado dessa disciplina e conduta foi pintado pelo biógrafo Haine: "acordar, tomar café, escrever, jantar, caminhar, tudo tinha a sua hora marcada"(4). Fato bem conhecido da vida de Kant era a hora de seu passeio: pontualmente, às 15h30min, fazia sua caminhada, diariamente, sempre acompanhado de seu velho criado Lampe, que, prudentemente, conduzia um grande guarda-chuva. A respeito disso, Diané Collinson nos mostra que "numa das raras ocasiões em que atrasou na sua caminhada vespertina, foi em razão, segundo nos é contado, de estar absorto na leitura de Emílio, de Rousseau"(5). Essa rotina era tão conhecida que seus concidadãos o tinham como referência no acerto de seus relógios.

Ademais, era homem de pequena estatura(6), de frágil compleição; no entanto, este homenzinho de Königsberg, de hábitos simples e metódicos é tido como um gigante do pensamento universal.

De saber enciclopédico, nosso filósofo produziu uma obra de larga amplitude; nas diversas searas do conhecimento o kantismo floresce, seja na antropologia, epistemologia, metafísica, ética, estética, direito... Dentre suas obras, destacamos as suas três críticas: Crítica da Razão Pura (1781), Crítica da Razão Prática (1788) e Crítica do Juízo (1790), por isso -- não por acaso -- é conhecido como o filósofo das três críticas. No âmbito do Direito, especificamente, conforme Miguel Reale, "o grande filósofo tratou deste em várias obras"(7) , sendo essa temática aprofundada na "Metafísica dos Costumes [Die Metaphysik der Sitten], obra dividida em duas partes: a doutrina do direito [Rechtslehre] e a doutrina da virtude [Ingendlehe]"(8).

A leitura de Kant não é fácil. Seu estilo rebuscado é permeado de terminologias formais. A respeito disso "Haine fala de um 'estilo cinzento, seco, tosco', de uma 'linguagem afetada, cortês, fria'"(9). Para endossar a difícil hermenêutica do estilo kantiano, Will Durant conta-nos que, "quando Kant entregou o manuscrito da Crítica a seu amigo Herz, homem muito versado em especulação, Herz o devolveu lido pela metade, dizendo que temia ficar louco se continuasse"(10). Não obstante, conforme registra Garcia Morente, "a Crítica da Razão Pura, seu livro capital, o mais estudado, o mais comentado, o mais discutido de toda a literatura filosófica de todos os tempos"(11) é o contraponto que estabelece o convite para enfrentar o desafio de tentar compreender o pensamento kantiano. Desse modo, aceitemos auspiciosamente a ponderação de Will Durant:

aproximemo-nos dele por desvios e com cautela, começando a uma distância segura e respeitosa; comecemos em vários pontos sobre a circunferência do assunto, e depois avancemos tateando em direção àquele sutil centro em que o mais difícil dos filósofos guarda o seu segredo, o seu tesouro(12).

A vida de Kant é muito mais minuciosa e mais nobre do que os detalhes aqui expostos. À guisa da introdução, esboçamos um quadro biográfico desse personagem imortal do intelectualismo humano.

(1) Graduado em Filosofia e Acadêmico do Curso de Direito da Faculdade Projeção.
(2) Cf. LEITE, Flamarion Tavares. 10 Lições sobre Kant, p. 23, rodapé.
(3) In: HELFERICH, Christoph. História da filosofia, p. 239
(4) In: DURANT, Will. A história da filosofia, p. 254
(5) 50 Grandes filósofos, p. 155
(6) "não chegava a um metro e sessenta de altura": ( DURANT, Will. Op. cit, p. 254)
(7) Cf. Filosofia do direito, p. 656.
(8) LEITE, Flamarion Tavares. Op. cit, p. 15
(9) In: HELFERICH, Christoph. Op. cit, p. 241
(10) Op. cit., p. 246
(11) Fundamentos de filosofia - lições preliminares, p. 220
(12) Op. cit., p. 246

(Continua na próxima postagem.)


14 de fevereiro de 2008

Compartilhando conhecimento

Foi-se o tempo em que um blog era meramente um "diário eletrônico". Como é sabido, atualmente os blogs têm uma função muito mais importante que meramente apresentar o que seu dono fez naquele dia: eles têm a função de disseminar conhecimento em uma sociedade cada vez mais integrada. Neste sentido, o objetivo da criação deste blog "acadêmico" foi exatamente esta: tentar contribuir, de alguma forma, com a formação acadêmica daqueles que aqui vêm por meio da publicação de artigos, resumos, resenhas e até mesmo, como vinha sendo praxe nos últimos meses, trabalhos acadêmicos completos.

Tendo-se em mente tal função "social" dos blogs, faço um convite aberto a todos os visitantes: se alguém tiver interesse em publicar alguma coisa por aqui, fique à vontade para entrar em contato comigo e enviar seu arquivo, para que o mesmo possa ser publicado. A partir de amanhã esta nova fase começará, e o primeiro trabalho a ser publicado será o de um ex-aluno meu do semestre passado.

Em caso de dúvidas, entrem em contato.

Cordialmente,

Prof. Matheus.


13 de fevereiro de 2008

Formação do estado russo (XII)

(Continuação da postagem anterior.)

Pelo que nos é dito pela literatura especializada e por algumas fontes não analisadas neste trabalho, a invasão fez surgir nos russos um sentimento de pânico que era desconhecido até então. Sem dúvida que guerras por territórios aconteceram antes da invasão mongol; entretanto, pelo que nos é dito pela literatura, não havia acontecido nada antes que se comparasse a esta invasão. O impacto psicológico causado nos russos foi bastante grande, e neste momento específico não havia nenhum estado fortemente centralizado que pudesse responder aos anseios da população por ordem e defesa do território. Coube à cidade de Moscou concentrar todo o poder político e militar objetivando criar o estado russo que pudesse proteger sua população.

(...) O nascente estado russo moderno [século XIV] foi muito mais um produto da sua experiência mongol recente do que do passado kieviano removido geográfica e cronologicamente. É verdade que a Rússia do noroeste [região de Vladimir-Suzdal] sempre se distinguiu da "Horda" e que a centralização moscovita foi realizada não com o encorajamento dos khans, mas contra a vontade dos mesmos. Entretanto, o longo período sob domínio mongol levou a Moscóvia a adotar vários elementos importantes de cultura política e do pensamento mongóis, bem como de suas práticas econômicas e sociais. Tais apropriações incluíram o conceito de que toda a terra pertencia ao líder; a estrutura do conselho boiardo; o sistema de dupla administração, no qual o poder militar e civil regional estava concentrado nas mãos de representantes do centro (...). Todas estas instituições e práticas (...) ajudaram a formar as características básicas da Moscóvia como uma entidade política, social e econômica. (...) O noroeste da antiga Rússia de Kiev emergiu do período de domínio mongol fortalecido e unido, mas também muito diferente daquelas partes (...) que não experimentaram o longo domínio dos khans (PLOKHY, 2006, p. 133-134).

Por meio de uma política bastante hábil, os príncipes moscovitas conseguiram se equilibrar entre as pressões externas vindas dos mongóis e as pressões internas de sua própria população, tanto dos boiardos quanto do povo, que foi extremamente explorado e que, sem dúvida, não obteve nenhum benefício com a suserania mongol. Ao se mostrarem capazes de acomodar os conflitos de interesses entre estas duas partes, os príncipes moscovistas, mais que os príncipes de Novgorod, se mostraram capazes de realizar a tão esperada centralização política em suas mãos e, com o apoio de ambas as partes citadas, fortalecer seu poder político a ponto de dar origem a um estado que fosse capaz, em longo prazo, de acabar com as próprias pressões que lhe deram origem.

O terceiro ponto que nos chama a atenção diz respeito ao sentimento de pertencimento que os russos têm de si mesmos em relação ao seu estado -- ou seja, diz respeito à resposta para a pergunta "o que é ser russo?". Para responder a esta questão seria necessário entrarmos no conceito de nação na Rússia e, ainda que este não seja o nosso objetivo neste trabalho, acreditamos ser interessante fazer breves apontamentos sobre o tema para que possamos, posteriormente, dar continuidade à nossa análise do processo de formação do estado russo.

No caso da Rússia, a definição do sentimento de nação não é tão fácil de ser feita. Vera Tolz (2001, p. 1), por exemplo, afirma que há três maneiras principais de se analisar a construção da identidade russa: a primeira seria a visão de "Rússia versus o Ocidente", presente na intelectualidade russa em praticamente todo o período que vai do século XVI até os dias de hoje; a segunda seria a de se enxergar os russos como criadores e preservadores de uma comunidade multi-étnica única, vista como profundamente diferente dos impérios europeus e asiáticos e que, portanto, poderia servir como "ponte" entre Europa e Ásia -- daí advindo sua importância como nação; e a terceira seria a de tomar os russos como membros de uma comunidade de eslavos do leste, cujas origens remontam à Rússia de Kiev, por volta do século IX. Já Geoffrey Hosking (1997) afirma que a Rússia tem problemas históricos em sua definição de nacionalidade porque seus governantes, em primeiro lugar, se preocuparam em criar um estado imperial para só então, garantidas as fronteiras e a segurança externa do império, pensar em se criar uma sociedade civil e, conseqüentemente, uma nação. Para Hosking, a dificuldade de se definir o conceito de nação na Rússia é dada pelos próprios vocábulos: russkii define aqueles que são etnicamente russos -- nacionalidade étnica --, e rossiiskii são aqueles que faziam parte do império russo -- nacionalidade cívica.(1) Ainda segundo Hosking (1997, p. xix): "(...) a língua russa reflete o fato de que há dois tipos de Russianness,(2) uma conectada com o povo, com a língua e com os principados pré-imperiais, e outro com o território, com o império multinacional, com a grande potência européia".

Por sua vez, temos um interessante relato contemporâneo feito pelo professor Viktor Viktorovich Gorokhov, titular da cadeira de "Cultura Russa" e membro do Conselho Superior do Instituto de Turismo e Hospitalidade da Rússia. Segundo o professor:

Interessante quem eram chamados de "russos" [por volta do século XIV]: não pela origem, nem pelo sangue, nem pelo nome ou pelo sobrenome; se o indivíduo se considerasse russo e, principalmente, se o indivíduo fosse ortodoxo, então seria russo. Era o pertencer à Igreja Ortodoxa que fazia com que o indivíduo fosse considerado "russo" (GOROKHOV, 2006, grifo nosso).

O relato do prof. Gorokhov se relaciona diretamente com o contexto histórico e com as fontes apresentadas anteriormente. Como vimos, durante o período de dominação mongol não havia estado russo propriamente dito; as instituições políticas russas deixaram de existir, de maneira que cada uma das três principais regiões seguiu um caminho de desenvolvimento político próprio. O estado russo como instituição que detém o monopólio legítimo do uso da força física dentro de determinado território, como afirma Weber, só surgiu a partir do final do século XIV. Neste contexto, a única instituição que permaneceu sempre presente desde sua criação foi a Igreja Ortodoxa russa. A Igreja foi a única instituição que, de uma forma ou de outra, se manteve como tal desde 988 -- data da conversão de Vladimir de Kiev ao cristianismo -- até os dias de hoje. O "ser russo" esteve indubitavelmente ligado à Igreja Ortodoxa: "nós" somos ortodoxos e, portanto, russos; "eles" são católicos e, portanto, lituanos ou poloneses; "eles" são muçulmanos e, portanto, membros da Horda de Ouro.

Assim, coube à Igreja Ortodoxa se apresentar como única instituição genuinamente russa, ainda que não se opusesse frontalmente ao domínio mongol. Ao mesmo tempo, a falta de ordem característica dos primeiros anos após a invasão pode ter legitimado o surgimento e o fortalecimento da mentalidade patrimonialista em Moscou. Sem um norte a quem recorrer, cabia à população aceitar o domínio inconteste dos príncipes, que mandavam do jeito que achavam melhor para manter a ordem e, principalmente, manter seu patrimônio, em um processo de submissão por parte da população que apresenta paralelos com o processo apresentado anteriormente e que ocorreu durante o "Tempo das Revoltas" -- a auto-escravização.

A identificação do indivíduo, especialmente durante o período da dominação mongol, era feita diretamente com a Igreja Ortodoxa. Apenas a partir do final do século XIV, com a vitória de Dmitrii Donskoi em Kulikovo, em um processo de formação do estado que durou no mínimo até o início do reinado de Pedro, o Grande, pode-se afirmar que os russos passaram a se identificar como tais tendo em mente o estado russo e não mais a Igreja Ortodoxa -- ainda que esta não tenha perdido em nenhum momento sua importância como símbolo de união da nação russa. Apenas a partir de então é que realmente se consolida territorial e politicamente o estado russo, que viria a se transformar, a partir do século XVIII, em um dos principais atores políticos mundiais até os dias de hoje.

(1) Tal diferença está presente até os dias de hoje e está na base da crescente xenofobia na Rússia.
(2) Tal termo pode ser entendido como "russianidade".

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ABDULLAEV, Nabi. “Nostalgia remains strong for Brezhnev era”. In: The Moscow Times. Nº 3562, 15 de dezembro de 2006, pág. 1. Disponível em http://www.themoscowtimes.com/stories/2006/12/15/003.html. Acessado em 15 de dezembro de 2006.

BOBBIO, Norberto. Dicionário de política. 11ª Ed. Brasília: Ed. Universidade de Brasília, 1998.

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12 de fevereiro de 2008

Formação do estado russo (XI)

(Continuação da postagem anterior.)

4. CONCLUSÕES

Uma vez apresentado o contexto histórico e alguns documentos sobre o período estudado, compete-nos fazer uma breve análise sobre alguns itens que, no decorrer do nosso trabalho, nos chamaram a atenção. Destaque será dado especificamente a três pontos que se relacionam com a temática principal de nossa tese de doutorado, que é analisar o surgimento do sentimento de nação na Rússia e seus reflexos no ambiente político russo contemporâneo. Para tal empreitada, é preciso falar necessariamente de todo o processo de formação do estado russo, objeto central deste trabalho.

O primeiro ponto que queremos abordar diz respeito às estruturas políticas surgidas ainda no período da Rússia de Kiev nos três pólos de poder de então. Como já afirmado anteriormente, surgiram nos séculos XII e XIII três tipos distintos de estrutura política: na região da Galícia-Volynia havia um regime que poderíamos chamar de aristocrático, já que apenas os boiardos participavam das decisões políticas, relegando a segundo plano tanto o príncipe quanto os cidadãos comuns; na região de Novgorod, por sua vez, surgiu um regime político que poderíamos chamar de democrático, por haver participação de representantes de todos os estratos sociais considerados como livres; por fim, na região de Vladimir-Suzdal -- onde se situa a cidade de Moscou -- surgiu um regime político que hoje chamaríamos de autoritário -- com fortes tendências a ser totalitário -- no qual o poder político estava concentrado unicamente nas mãos do príncipe.

Tal distinção é importante para o objetivo de nossa tese porque, com a vitória de Moscou como centro do novo estado eslavo, acreditamos ser possível afirmar que a mentalidade autoritária, típica daquela cidade, se espalhou e se entranhou no imaginário popular e se perpetuou até os dias de hoje, trazendo conseqüências na política russa contemporânea. Ainda que a distância temporal seja muito grande -- do século XIV aos dias de hoje --, o que vemos atualmente na política russa é um reflexo de tal mentalidade: muitos russos acreditam que o governante deve ter a mão firme na hora de conduzir seu governo. É neste sentido que Stalin, por exemplo, por mais que tenha sido um governante totalitário, é mais bem visto atualmente no país do que Gorbachev, o último governante do período soviético, considerado pelos russos como um governante "fraco".(1)

No que diz respeito à situação política recente, a população russa acredita que o ex-presidente Boris Yeltsin foi um governante fraco(2) por ter se deixado dominar pelas oligarquias econômicas formadas devido ao processo de privatização ocorrido na década de 1990.(3) Entretanto, em contraste com a visão dos russos, de maneira geral Yeltsin é visto pelas elites políticas ocidentais como um presidente comprometido com a democracia. Por outro lado, a população dá apoio total ao atual presidente, Vladimir Putin, que, faltando pouco mais de três meses para terminar seu segundo mandato, tem 85% de aprovação da população -- sendo que a popularidade mais baixa dele foi em agosto de 2000, com 60% de apoio popular (LEVADA CENTER, 2007).

Por outro lado, o país é considerado atualmente como não-livre pela Freedom House (2007) por causa das iniciativas tomadas pelo presidente Putin na esfera política, tais como a marginalização da oposição política, a expansão do controle político sobre a mídia e a tendência a minar a independência do judiciário, exercendo pressão constante sobre juízes no sentido de que os mesmos satisfaçam os anseios do Kremlin. As recentes eleições legislativas na Rússia foram consideradas pela OCDE como manipuladas, não havendo liberdade efetiva no momento da eleição.

Mesmo assim, como mostrado, o presidente Putin tem níveis de aprovação elevados. O que justifica a alta popularidade de um líder político nos últimos momentos de seu segundo mandato? Como se sabe, a tendência é que, em seu segundo mandato, os presidentes tenham queda em sua popularidade. Com Putin, entretanto, a situação é contrária: a média de popularidade em seu segundo mandato é mais alta do que a média do primeiro (LEVADA CENTER, 2007). Não há dúvidas de que fatores econômicos independentes da Rússia, como a alta do preço das matérias-primas -- notadamente gás natural e petróleo -- fizeram com que o país tivesse grandes lucros com a venda de tais produtos, capitalizados como resultado de uma boa administração. Mas também é inegável o fato de que boa parte da popularidade de Putin advém de sua personificação como presidente "durão", que resolve da melhor forma possível os problemas quando estes se apresentam. A personalização política atual, portanto, pode ser entendida como resultado da visão personalista presente na Moscóvia do século XIV.

Não pretendemos afirmar aqui que Putin ou qualquer outro governante russo tenha, necessariamente, características autoritárias e/ou patrimonialistas. Pretendemos afirmar que a sociedade russa, de maneira geral, vê com bons olhos o fato de um presidente ser "firme", ser "durão", e exercer o poder político da maneira que achar necessário para a correta administração do estado russo. Em várias ocasiões tivemos a oportunidade de ouvir dos próprios russos a idéia de que eles se dispõem a abrir mão de alguns direitos que, no Ocidente, são vistos como inalienáveis -- tais como o direito à liberdade de expressão -- em benefício de um governante que efetivamente resolva os problemas sociais.(4) Outros dois exemplos nos mostram esta forte personalização do poder: 1) O constante debate, ao longo de 2007, sobre a possibilidade de criação de um terceiro mandado para presidente na Rússia, o que permitiria que Putin continuasse na presidência; 2) O fato de o presidente Putin ter se candidatado nas eleições legislativas como o primeiro da lista do partido "Rússia Unida", o que formalmente lhe dá a chance de permanecer no poder por mais tempo que o legalmente estabelecido. Estes exemplos, dentre vários outros, demonstram uma mentalidade típica russa que vê no líder político como o responsável pela satisfação de todo o bem-estar da sociedade -- da mesma forma que os grãos-príncipes eram vistos como donos do território e, portanto, responsáveis pelo bem-estar dos seus súditos. Tal mentalidade, a nosso ver, só pode ser fruto da presença da visão patrimonialista no decorrer do período fundamental para a formação do estado russo decorrente da vitória de Moscou sobre os demais principados russos.

O segundo ponto que acreditamos ser interessante destacar no processo de formação do estado russo diz respeito à invasão mongol. Pela contextualização histórica e pela análise documental apresentada, acreditamos ser possível afirmar que o ponto de partida para a centralização política em Moscou e a conseqüente criação do estado russo foi a presença da Horda de Ouro nos territórios da antiga Rússia de Kiev: a presença dos mongóis foi a justificativa que faltava aos russos para realizarem a centralização política necessária a todo estado.

(1) Informação obtida diretamente junto a professores e alunos do Instituto Latino-Americano da Academia de Ciências da Rússia entre 2004 e 2006.
(2) Em recente pesquisa realizada pelo centro VTsIOM, apenas 1% da população russa preferiria viver nos padrões do período de Boris Yeltsin (ABDULLAEV, 2006).
(3) Informação obtida diretamente junto a professores e alunos do Instituto Latino-Americano da Academia de Ciências da Rússia entre 2004 e 2006.
(4) Informação obtida diretamente junto a professores e alunos do Instituto Latino-Americano da Academia de Ciências da Rússia entre 2004 e 2006.

(Última parte na próxima postagem.)


11 de fevereiro de 2008

Formação do estado russo (X)

(Continuação da postagem anterior.)

O terceiro documento, por sua vez, diz respeito ao período em que o domínio mongol, ainda que formalmente existente -- os russos só se viram oficialmente livres dos mongóis em 1480, e a fonte diz respeito à conquista de Novgorod entre 1471 e 1478 --, na prática já não estava mais presente, pois desde 1452 Moscou era suserana de um canato mongol. Como já identificado na primeira parte deste trabalho, a partir de 1380, com a batalha de Kulikovo vencida por Dmitrii Donskoi, ao mesmo tempo em que os mongóis foram cada vez mais perdendo o controle sobre os russos, a cidade de Moscou foi crescendo, se expandindo e obtendo poderio político, militar, econômico e religioso cada vez maior. Ao mesmo tempo, foi-se expandindo, por todo o território que viria a ser chamado de "núcleo do estado russo moderno" -- ou seja, a área que hoje corresponde à Rússia européia -- a mentalidade patrimonialista, típica dos governantes de Moscou. Tal mentalidade está fortemente presente na terceira fonte analisada até o momento, com Ivan III deixando claro que a cidade conquistada fará parte de seu domínio pessoal e não de um território estatal.

Tal fato é interessante porque se acredita que uma das principais características do processo de formação do estado moderno seja justamente a sua transformação de um domínio pessoal em uma burocracia impessoal. As teorias sobre formação do estado enfatizam com vigor o fato de que esta instituição tem como uma de suas principais características justamente a impessoalidade, com a máquina burocrática sendo utilizada em benefício do público, da sociedade, e não em benefício pessoal do líder ou chefe político. Como diz Bobbio (1998, p. 425-426)

Em tal sentido, o "Estado moderno europeu" nos aparece como uma forma de organização do poder historicamente determinada e, enquanto tal, caracterizada por conotações que a tornam peculiar e diversa de outras formas, historicamente também determinadas e interiormente homogêneas, de organização do poder.

O elemento central de tal diferenciação consiste, sem dúvida, na progressiva centralização do poder segundo uma instância sempre mais ampla, que termina por compreender o âmbito completo das relações políticas. Desse processo, fundado por sua vez sobre a concomitante afirmação do princípio da territorialidade da obrigação política e sobre a progressiva aquisição da impessoalidade do comando político, por meio da evolução do conceito de officium, nascem os traços essenciais de uma nova forma de organização política: precisamente o Estado moderno. (Grifos no original.)

O que a terceira fonte nos mostra é que na Rússia o estado se formou e se consolidou politicamente, mas a impessoalidade do comando político não surgiu. Em 1480, o núcleo do estado russo, territorialmente falando, já estava formado, e Moscou já era considerada como o centro do estado russo. A diferença da Rússia em relação às teorias sobre o estado é que, mesmo havendo se centralizado e mesmo controlando um território definido, Moscou permaneceu com a mentalidade patrimonialista e pessoal de uso do aparelho estatal.

A comprovação de que esta mentalidade perpassou todo o processo de formação do estado russo pode ser vista em outra fonte, de período posterior: referimo-nos ao texto "Um estrangeiro descreve a Oprichnina do Czar Ivan, o Terrível", escrito entre 1565-70. Esta fonte irá tratar da oprichnina, instituição criada por Ivan IV em 1565 e que teve como objetivo permitir ao czar administrar o seu território da maneira que bem entendesse. A própria criação desta instituição já mostra que o mando pessoal estava acima de qualquer regulação em Moscou. Ivan IV dividiu o território russo em duas partes: em uma delas, chamada de zemshchina, mandariam os boiardos, e na outra, chamada de oprichnina, mandaria o czar com seus oprichniki -- membros da oprichnina --, que eram diretamente dependentes de Ivan IV.

Segundo o documento, "os príncipes e boiardos que eram membros da oprichnina eram classificados não de acordo com sua riqueza, mas de acordo com seu nascimento". Os oprichniki deveriam também jurar que não tinham nenhum tipo de relação com aqueles que faziam parte da outra parte administrativa do território; só assim receberiam as terras expropriadas em nome do czar (KAISER; MARKER, 1994, 151).

O documento deixa clara também a superioridade legal dos oprichniki: estes "(...) não deveriam [nunca] estar entre os errados [aqueles julgados como errados]" (KAISER; MARKER, 1994, 152). O documento dá um exemplo: se um oprichnik acusasse alguém de lhe dever dinheiro, mesmo sem conhecer tal pessoa, esta deveria pagar de qualquer maneira; caso contrário, apanharia em praça pública até que pagasse tal quantia. Ninguém estava imune a tal regra, nem mesmo clérigos ou juristas.

Não se deve imaginar que a parte oficialmente administrada pelos boiardos estava livre da intervenção pessoal de Ivan IV. A administração boiarda nada mais era do que uma representação do czar e, portanto, os líderes boiardos não tinham tanta autonomia quanto a separação do territóirio em duas administrações pode deixar subentendido. O documento deixa isto bem claro: Ivan IV escolhia quem queria como líder da zemshchina e, uma vez que tal líder não satisfizesse a vontade do czar, era morto e substituído por outro: "O Grão-Príncipe continuou a remover [da função] e a matar um líder [da zemshchina] atrás do outro de acordo com sua própria vontade, um deste jeito, outro de outro jeito". (KAISER; MARKER, 1994, 152). Nem mesmo os clérigos escapavam da vontade pessoal do czar: o documento afirma que o Metropolitano Felipe reclamou junto a Ivan IV da situação e, em conseqüência, ficou preso até o fim de sua vida. Quando o czar atacou Novgorod em 1569, os primeiros lugares que sofreram foram os monastérios e as propriedades dos clérigos: Ivan IV "(...) se apropriou de tudo que pertencia ao bispo. (...) Havia trezentos monastérios dentro e fora da cidade, e nenhum deles foi poupado" (KAISER; MARKER, 1994, 152).

A invasão de Novgorod por Ivan IV em 1569-70 levou tal cidade à ruína total. Se antes ainda havia algum resquício de liberdade e de auto-determinação em Novgorod (ainda que, como vimos, a cidade já estivesse submetida à vontade de Moscou desde a época de Ivan III), com a invasão de Ivan IV Novgorod se viu totalmente reduzida à condição de apenas mais uma cidade sob domínio dos czares de Moscou; a partir de então é que Novgorod efetivamente passou a fazer parte do patrimônio moscovita.

O domínio pessoal de Ivan IV foi tão grande que o czar se voltou contra os próprios oprichniki: quando estes passaram a levar a cabo ações que não haviam sido autorizadas pelo czar, Ivan IV ordenou a devolução de tudo que havia sido pilhado sem sua autorização. "Então o Grão-Príncipe começou a eliminar todos os chefes populares da oprichnina" (KAISER; MARKER, 1994, 153). No decorrer do processo, o czar atacou a todos indistintamente, tanto membros da zemshchina quanto da oprichnina, e tudo isto com apenas um objetivo: aprofundar a submissão de todos ao seu mando pessoal e mostrar que não haveria outro pólo de poder político que não fosse o czar.

A última fonte a ser analisada neste trabalho diz respeito à situação de auto-escravização ocorrida ao final do reinado de Fiodor (filho de Ivan IV), sob tutela de Boris Godunov, e em boa parte do reinado de Boris Godunov, já durante o "Tempo das Revoltas". O título da fonte é "Alguns documentos sobre a auto-escravização", no período de 1595 a 1603, que mostra como aumentou "(...) a freqüência com a qual homens livres (e mulheres) se venderam e se tornaram escravos" (KAISER; MARKER, 1994, 173).

O tipo de escravidão, em princípio, era temporária: o indivíduo pegava determinada quantia emprestada e servia como escravo durante determinado período de tempo (geralmente um ano). Após tal período, devolvendo a quantia, o indivíduo obteria sua liberdade. Entretanto, o que geralmente acontecia era a transformação da escravidão temporária em permanente, já que tais contratos previam que, se o que pegou a quantia não a devolvesse na data estipulada, o mesmo se tornaria um escravo hereditário (KAISER; MARKER, 1994, 173).

É curioso notar que o início do aumento do número de escravos ocorreu exatamente no período imediatamente anterior ao "Tempo das Revoltas" e se manteve estável até meados do século XVII, quando a economia moscovita voltou a se estabilizar após a expulsão dos poloneses e a eleição de Mikhail Romanov como novo czar. Tal fato, entretanto, não é surpreendente: "(...) os indivíduos podem ter se tornados escravos com o objetivo preciso de se transformarem em escravos permanentes, vendo na escravidão uma forma de bem-estar social por meio da qual os mais pobres recebiam comida, abrigo e proteção em um período de grande escassez" (KAISER; MARKER, 1994, 173). A escravidão na Rússia foi abolida apenas no início do século XVIII.

A importância desta fonte reside no fato de que, durante o "Tempo das Revoltas", há uma busca autônoma por parte dos indivíduos no sentido de garantirem condições mínimas de vida para si. Neste sentido, o indivíduo prefere se auto-escravizar a se manter como homem livre. Mais ainda, é importante ver nesta fonte um prelúdio para a situação dos servos deste período em diante: assim como já foi mostrado no que diz respeito a cidades, terras, boiardos e até mesmo à Igreja Ortodoxa, os servos serão vistos como propriedade privada do seu senhor, ligados não apenas à terra na qual trabalham, mas principalmente às pessoas que comandam tais terras -- todas, em uma estrutura piramidal, se submetendo à vontade do grão-príncipe de Moscou. Vemos, assim, que a mentalidade patrimonialista, presente na formação do estado russo, se disseminou para toda a sociedade, fazendo com que as relações sociais sejam vistas muito mais como relações patrimoniais que sociais: "(...) a pressão [para o pagamento dos débitos], as necessidades fiscais do estado e as necessidades econômicas dos proprietários rurais gradualmente reduziram os servos de uma situação relativamente livre a uma de servidão, que não diferia muito de escravidão" (HOSKING, 2002, p. 135).

(Continua na próxima postagem.)


8 de fevereiro de 2008

Formação do estado russo (IX)

(Continuação da postagem anterior.)

Assim como na fonte anterior (o testamento de Dmitrii), a Igreja como instituição está abaixo do príncipe: este tem a primazia de ser o primeiro citado em todo o documento. Durante a narrativa da batalha, por exemplo, o narrador afirma que os soldados de Novgorod estavam fugindo porque sabiam "(...) de sua traição não apenas para com o soberano, mas também para com o próprio Deus" (KAISER; MARKER, 1994, 93). Mais uma vez é destacada a importância primordial do Grão-Príncipe: primeiro ele, depois a Igreja Ortodoxa. Ao mesmo tempo, o príncipe se utiliza, o tempo todo, da legitimidade da Igreja, única instituição realmente forte e estável que foi capaz de manter o "espírito russo" vivo durante o período da dominação mongol.

Após a narração da batalha, o documento descreve como os boiardos, posadniki e até mesmo cidadãos de Novgorod pediram clemência a Ivan III. Segundo a fonte, Ivan III aceitou o pedido e ordenou que cessassem todas as hostilidades entre as cidades. Foi enviado a Novgorod um representante de Ivan III que seria responsável por garantir que todos os cidadãos jurassem fidelidade a Ivan III e pagassem tributo ao príncipe de Moscou (KAISER; MARKER, 1994, 94).

O documento pula para 1477 e descreve o que seria o começo de uma nova rebelião contra Moscou: os habitantes de Novgorod mataram um de seus próprios representantes sob a acusação de que ele havia jurado subserviência a Moscou sem consentimento dos cidadãos. Segundo o documento, novamente surgiram rumores sugerindo que Novgorod se submetesse ao rei da Polônia, o que fez com que Ivan III, em 30 de setembro de 1477, enviasse a Novgorod um aviso de que enviaria um exército para pôr ordem na cidade (KAISER; MARKER, 1994, 95).

Após o reinício das hostilidades, enviados de Novgorod foram a Moscou e solicitaram que Ivan III não mais atacasse a cidade. Interessante notar que nestas petições, de acordo com o documento, os próprios representantes de Novgorod se colocam como membros do "patrimônio" de Ivan III, tanto que escrevem pedindo que "(...) o Grão-Príncipe não mais derrame sangue cristão de seu próprio patrimônio (...)" (KAISER; MARKER, 1994, 95). Ivan III responde que, ao dar a Novgorod a chance de permanecer com seu sistema político anterior à conquista moscovita, novos rumores de rebelião surgiram na cidade, e que os cidadãos de Novgorod não souberam aproveitar a oportunidade dada pelo grão-príncipe moscovita; houve pouco caso por parte de Novgorod em relação ao grão-príncipe e, por isso, Ivan III havia enviado novamente seus exércitos para fazer valer sua vontade. Ivan III deixa claro que, na verdade, não queria atacar a cidade: assim o fez por conta do próprio comportamento de Novgorod, que não o aceitou como dono do território conquistado.

Durante as negociações para o fim das hostilidades, mais uma vez é reforçado o caráter patrimonial moscovita: em uma série de idas e vindas, os representantes de Novgorod fazem várias demandas junto a Ivan III, especialmente no que diz respeito à manutenção da administração da cidade. É interessante a resposta que Ivan III dá a tais demandas:

Você, arcebispo, e nosso patrimônio, Grã-Novgorod, pedem a nós, nos chamando de Soberanos, que nós gentilmente mostremos ao nosso patrimônio que tipo de governo deve haver em nosso patrimônio, em Novgorod, a Grande. E eu, Grão-Príncipe, lhes disse que quero em meu patrimônio, Novgorod, a Grande, o mesmo [tipo de] governo que temos nas terras da Nizovskaia, em Moscou. E agora você me ensina de que tipo meu governo deve ser. Como, então, ele pode ser meu governo? (KAISER; MARKER, 1994, 97, grifos no original)

Novgorod respondeu dizendo que não sabia que tipo de governo havia em Moscou, ao que Ivan III respondeu com todo patrimonialismo possível: 1) Não haveria mais veche nem posadnik -- as ordens viriam diretamente de Moscou; 2) Ivan III governaria todo seu patrimônio do mesmo jeito que governava Moscou -- e acrescenta que "todas as terras do Grão-Príncipe que vocês mantêm agora serão nossas"; 3) As leis a serem aplicadas em Novgorod seriam as mesmas de Moscou, sem nenhum tipo de diferenciação (KAISER; MARKER, 1994, 97).

Para tentar acalmar Ivan III, Novgorod oferece diversas áreas para o grão-príncipe de Moscou, mas este não as aceita; retruca dizendo que quer "(...) metade de todos os territórios do arcebispo, metade de todos os monastérios e todas as terras de Novotorzhok, independentemente de quem seja dono destas terras" (KAISER; MARKER, 1994, 98). Novgorod tenta negociar, mas Ivan III retruca dizendo que a cidade deveria dar tudo que ele quis e não esconder nada; caso contrário sofreriam as conseqüências. O documento termina com a descrição do envio, por parte de Ivan III, de seus representantes a Novgorod para realizar as seguintes tarefas: 1) Fazer com que os cidadãos jurassem fidelidade a ele; 2) Extinguir a veche; 3) Simbolicamente, trazer para Moscou o sino que era tocado toda vez que a veche deveria se reunir.

Os três documentos brevemente descritos anteriormente têm uma linha de raciocínio em comum: a estruturação do estado russo. As duas primeiras fontes se referem ao período de dominação mongol e, neste sentido, apresentam duas formas distintas de organização estatal: em Novgorod formou-se um sistema que, para a época, poderia ser chamado de "democrático", com a participação na assembléia de membros de todos os segmentos sociais (à exceção dos camponeses) no que diz respeito à criação das leis e administração da cidade. Além disso, em Novgorod é clara a permanência do príncipe como um administrador cuja principal função é apenas a de executar a lei: o próprio documento é um contrato feito entre a cidade de Novgorod e aquele que a administraria. Não há, portanto, nenhum vínculo pessoal entre o príncipe e as terras da cidade -- talvez até mesmo pela vocação comercial da cidade fosse bastante claro aos seus habitantes o fato de que a relação entre o príncipe e a cidade seria uma relação "comercial".

Já o segundo documento -- o testamento de Dmitrii Donskoi -- nos mostra uma estrutura estatal bastante diferente. Dmitrii deixa claro, o tempo todo, que as terras nas quais Moscou se situa são pessoalmente dele, ou seja, que não há ali uma relação impessoal entre cidade, terras e príncipe, como em Novgorod: Dmitrii é príncipe pois é dono daquelas terras. Para o grão-príncipe, nada mais natural que tratar todos os demais cidadãos -- sejam escravos, servos, camponeses, boiardos e até mesmo membros da Igreja Ortodoxa -- como subordinados a ele, já que todos estão ali porque ele, como dono daquelas terras, permite que ali estejam. Se não fosse pela "bondade" do grão-príncipe, ninguém estaria naquelas terras, ninguém se enriqueceria, ninguém teria nem mesmo o que comer ou onde viver.

(Continua na próxima postagem.)


7 de fevereiro de 2008

Formação do estado russo (VIII)

(Continuação da postagem anterior.)

Ainda relacionado à temática do patrimonialismo, é interessante notar que a mentalidade patrimonialista é passada de pai para filho: Dmitrii afirma, em diversas ocasiões, que a propriedade é patrimonial também em relação à sua esposa e a seus filhos. Ou seja, Dmitrii não está passando adiante o direito de governar: na verdade, ele transfere para sua esposa e para seus filhos a posse daquelas propriedades (e dos impostos recebidos das mesmas). Seus filhos, portanto, serão donos do patrimônio, e não apenas administradores do território como os posadniki eram em Novgorod.

É curioso verificar que em nenhum momento Dmitrii afirma que seus filhos serão líderes políticos; mesmo assim, deduz-se que já está subentendido na mentalidade moscovita o fato de que os príncipes serão donos daquelas terras e, conseqüentemente, serão também os líderes políticos de todo o território de Moscou -- ainda que não houvesse, à sua época, uma legislação clara sobre a sucessão após o falecimento do grão-príncipe. Dmitrii deixa claro que é de responsabilidade de Vasilii cuidar de seus irmãos mais novos: "E meus filhos mais novos, irmãos do príncipe Vasilii, honrem e obedeçam ao seu irmão mais velho, príncipe Vasilii, em meu lugar, seu pai" (KAISER; MARKER, 1994, p. 90). É por este motivo que Dmitrii dá a seu filho Vasilii comparativamente mais do que aos demais, deixando subentendido que a linha de sucessão política acontece de acordo com a ordem de nascimento dos filhos -- e os demais irmãos devem se submeter à vontade do pai, sob pena de não recebimento dos favores divinos e também do próprio Dmitrii.

Interessante destacar também a importância dada por Dmitrii à Horda de Ouro: "E se Deus fizer acontecer alguma mudança no que diz respeito à Horda (...) [e] se meus filhos não tiverem o suficiente para dar como tributo para os tártaros, então o tributo que cada um dos meus filhos recolhe em seus principados patrimoniais deve ser dela" (KAISER; MARKER, 1994, 90). Ou seja, mesmo após sua vitória contra os mongóis em Kulikovo, em 1380, Dmitrii ainda se preocupa em manter a estabilidade por meio do pagamento de tributos aos mongóis, e deixa claro que seus filhos devem fazer de tudo para cumprir com seus compromissos junto aos invasores.

O último item importante a ser destacado no testamento de Dmitrii é a maneira como ele trata os boiardos: estes estão tão submetidos à vontade do príncipe como qualquer outra pessoa. "E aqueles dos meus boiardos que servem à minha princesa, estes boiardos, meus filhos, cuidem como a um homem" (KAISER; MARKER, 1994, 90). Pode-se subentender que os próprios boiardos também estão submetidos à vontade do príncipe, o que deixa claro que todos, não apenas os servos, escravos e camponeses, mas absolutamente todos dependem diretamente da vontade e dos favores que advêm do príncipe. "Patrimônio" refere-se não apenas às terras, mas também às pessoas que trabalham nestas terras (camponeses, servos) e às pessoas que afirmam ser donas destas terras (boiardos), tanto que cabe ao príncipe conceder aos e/ou retirar dos boiardos o direito de ser dono das terras. Dmitrii termina seu testamento afirmando que o mesmo foi escrito na presença de abades e de boiardos, buscando, assim, dar legitimidade à sua última vontade.

O próximo documento diz respeito ao evento que marcou, ao mesmo tempo, a supremacia de Moscou como centro do estado russo em formação, por um lado, e o fortalecimento da dominação caracterizada pela mentalidade patrimonialista de estado que subsiste até os dias atuais na Rússia, por outro. O documento é intitulado "A anexação de Novgorod de acordo com a crônica de Nikon de Moscou (1471-78)" e, como nos dizem Kaiser e Marker (1994, 90), "poucos eventos melhor ilustram o conceito patrimonial de estado do que a anexação moscovita de Novgorod nos anos 1470".

Uma vez tendo conquistado Novgorod em 1471, Ivan III permitiu que a cidade mantivesse sua estrutura política de participação popular, especialmente porque Novgorod, como grande ponto comercial, era cidade riquíssima. Entretanto, justamente por ter permitido a manutenção de tal sistema, surgiram na cidade focos de resistência ao domínio moscovita: parte da população preferia se submeter ao jugo lituano, e não ao jugo moscovita.

O documento começa com a descrição do envio de representantes de Novgorod até Moscou após a conquista daquela cidade por esta para conversar com Ivan III sobre a consagração do arcebispo de Novgorod em Moscou. Em sua resposta, Ivan III responde utilizando-se, mais de uma vez, da expressão "meu patrimônio" ao se referir a Novgorod. Em seguida, o documento mostra que, após o retorno dos emissários a Novgorod, foi realizada uma veche e, nesta ocasião, alguns cidadãos da cidade (chamados de "bêbados" no documento) são contra o uso da expressão "patrimônio" por Ivan III: acham que a cidade não deve se submeter a Ivan III, mas sim ao Rei da Polônia e Grão-Príncipe da Lituânia. O documento segue afirmando que houve grande balbúrdia na veche entre os defensores da submissão a Moscou e os defensores da submissão à Lituânia.

Por causa disso, Ivan III enviou nova correspondência à cidade. Nesta, o grão-príncipe de Moscou se utiliza da linhagem para afirmar que, sem dúvida, Novgorod é seu patrimônio e que, portanto, os habitantes de Novgorod deveriam obedecê-lo. A citação é longa, mas vale a pena ser lida:

Povo de Novgorod, sua terra é meu patrimônio, assim como era desde nossos avós e antepassados, desde o tempo do Grão-Príncipe Vladimir, que cristianizou a terra russa [referência a Vladimir que, em 988, se converteu ao cristianismo ortodoxo], que era o tataraneto de Rurik, o primeiro grande príncipe de nossas terras. E deste Rurik até os nossos dias vocês conheceram apenas uma dinastia de grão-príncipes, dos príncipes de Kiev ao Grão-Príncipe Dmitrii Iurievich (...). E do Grão-Príncipe até mim é a mesma linhagem. Nós os governamos e vos agraciamos com nossa honra, e nós os defendemos de todos e somos livres para castigá-los caso vocês comecem a nos considerar de maneira diferente do costume. Vocês nunca estiveram sob nenhum rei [da Polônia] ou sob nenhum grão-príncipe da Lituânia, e sempre foi assim desde o surgimento de nossas terras. E agora vocês deserdam a Cristandade e se voltam para os Latinos, apesar de sua promessa para com a cruz [juramento de submissão à ortodoxia]. E eu, o Grão-Príncipe, não aplico nenhuma força sobre vocês, e não os taxo mais do que era taxado por meu pai, Grão-Príncipe Vasilii Vasilievich, ou pelo meu avô, ou pelo meu bisavô, ou por outros grandes príncipes de nossa linhagem. E eu pretendo, no futuro, vos agraciar com minha boa vontade porque vocês são meu patrimônio (KAISER; MARKER, 1994, 92).

O autor do documento mostra também o grande esforço feito pelo Metropolitano Felipe, da Igreja Ortodoxa em Moscou, no sentido de mostrar que submeter-se aos lituanos, além de ser uma questão política, era também uma questão religiosa: os lituanos, católicos, eram vistos como hereges. Caso Novgorod jurasse fidelidade ao grão-príncipe da Lituânia, estaria não apenas fugindo ao destino de união de toda a Rússia sob as mãos de Ivan III como também estaria criando um grande cisma dentro da Igreja Ortodoxa. Interessante notar as palavras do Metropolitano: "(...) meus filhos, vocês devem se submeter a uma mão forte do seguidor das leis e piedoso soberano Grão-Príncipe Ivan Vasilievich de Toda a Rússia porque vocês foram sujeitados a ele por Deus..." (KAISER; MARKER, 1994, 90, grifo nosso). Esta frase é importante porque mostra que mesmo a Igreja apoiava o patrimonialismo moscovita e se colocava, pelo menos publicamente, abaixo do príncipe, ainda que, a esta época, a Igreja fosse a única instituição suficientemente forte em todo o território para se opor ao governante -- o que não aconteceu em nenhum momento. Contudo, mesmo com a intervenção do Metropolitano os cidadãos de Novgorod não se sujeitaram pacatamente a Moscou. Em conseqüência, Ivan III, "seguindo orientação divina" decidiu realizar a campanha militar contra a cidade em 1471.

(Continua na próxima postagem.)


1 de fevereiro de 2008

Formação do estado russo (VII)

(Continuação da postagem anterior.)

3. ANÁLISE DOCUMENTAL

Nesta segunda parte do trabalho, nosso objetivo será o de fazer uma análise de algumas fontes referentes ao período apresentado na primeira parte. Pretendemos, com isto, comprovar materialmente o contexto apresentado anteriormente, bem como embasar todo o processo de centralização do poder político na Rússia com o destaque de alguns itens que, a nosso ver, surgiram na época estudada e continuam presentes na mentalidade russa até os dias atuais.

A primeira análise diz respeito às diferentes mentalidades presentes no momento de dominação mongol sobre o território da antiga Rússia de Kiev. De um lado há a mentalidade da região norte do país, capitaneada pela cidade de Novgorod, e de outro vemos a mentalidade dos príncipes de Moscou. As fontes utilizadas para análise de tais mentalidades são "O primeiro tratado [da cidade] de Novgorod com o Grão-Príncipe Iaroslav Iaroslavich de Tver", de 1264-65, e "O segundo testamento do Grão-Príncipe Dmitrii Donskoi de Moscou", de 1389. Ainda que haja uma diferença de mais de cem anos entre as fontes, acreditamos ser possível compará-las, já que a literatura especializada afirma que há uma continuidade em ambas as mentalidades até a ascensão final de Moscou como centro do estado russo a partir do século XV.

Como as fontes nos mostram, são claras as diferenças entre uma mentalidade e outra: em Novgorod desenvolveu-se "(...) um conjunto muito poderoso de instituições civis que tiveram sucesso em impor ao príncipe de Novgorod certas restrições" (KAISER; MARKER, 1994, p. 84). Ainda segundo tais autores, foi justamente tal mentalidade que permitiu à cidade se tornar um importante centro comercial ainda no século XII e se mantido como tal até a conquista da cidade por Moscou em 1471-78.

A fonte sobre Novgorod é um contrato feito entre a cidade e um príncipe de Tver, para que este viesse a governar aquela cidade. Logo no início do documento já surge um item interessante: a ordem em que os diversos atores políticos que assinam o documento. O primeiro a aparecer é o arcebispo; em seguida vem o nome do posadnik, ou seja, do oficial eleito pela assembléia popular, como um governador geral da cidade; em seguida vem o milenário, o grupo dos "cem-homens", os idosos e, por fim, há uma referência a todo o povo de Novgorod. Neste parágrafo inicial, dois itens merecem atenção: primeiro, o fato do nome do arcebispo aparecer antes do nome do próprio posadnik, indicando a força e a importância da Igreja Ortodoxa como instituição que efetivamente detinha o poder político -- já que o estado kieviano, à época do contrato, oficialmente não mais existia por ter sido invadido pelos mongóis vinte e cinco anos antes; segundo, o fato de aparecer explícito que o documento representa a vontade "de toda Novgorod", ou seja, de toda a sua população, e não apenas da elite dominante (KAISER; MARKER, 1994, p. 84).

O contrato proposto por Novgorod é claro: todo poder político emanava de sua população e caberia ao príncipe apenas administrar o território. Vejamos os itens número 5 e 6: "5. E sem o posadnik você, príncipe, não vai doar nenhuma terra, nem emitir nenhum documento [que diga respeito a transações fundiárias]. 6. E você, príncipe, não administrará as terras de Novgorod com seus homens, mas sim com homens de Novgorod (...)" (KAISER; MARKER, 1994, p. 84).

Por todo o documento percebe-se a preocupação dos habitantes de Novgorod de, por um lado, cercear o poder do príncipe e, por outro, deixar claro que o poder do príncipe é totalmente dependente da veche de Novgorod -- tanto que é exigido do príncipe, no último item do contrato, que ele "jure por tudo [especificado no contrato] com amor [entendido aqui como sinceridade], sem dissimulação, na justiça, na presença de nossos emissários" (KAISER; MARKER, 1994, p. 85). Percebe-se, assim, que o poder do príncipe era mínimo: cabia a ele apenas executar aquilo que havia sido decidido em assembléia.

Já em Moscou seus líderes se colocavam não apenas como administradores, mas como verdadeiros donos do território que controlavam. A visão patrimonialista está claramente presente na maneira como Dmitrii Donskoi, governante de Moscou entre 1359 e 1389, escreveu seu testamento. Suas palavras mostram que a mentalidade moscovita era extremamente diferente da mentalidade de Novgorod: não havia limites práticos ao poder do príncipe.

Em relação ao documento de Novgorod, as diferenças são claras já nas primeiras linhas: enquanto naquela cidade o documento começa com a apresentação do representante da Igreja Ortodoxa, o documento de Moscou começa com Dmitrii invocando diretamente à Santíssima Trindade: "Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, em verdade eu, o pobre escravo pecador de Deus, Dmitrii Ivanovich, escrevo [este] testamento, estando em sã consciência. Eu faço [este] arranjo para meus filhos e para minha princesa" (KAISER; MARKER, 1994, p. 87). É interessante notar tal diferença porque a mesma deixa claro que os príncipes moscovitas se viam acima de todos os demais: enquanto em Novgorod a primeira instituição presente no contrato é a Igreja Ortodoxa, vindo posteriormente os demais representantes de instituições "mundanas", no documento moscovita, em primeiro lugar, aparece diretamente Deus, vindo a seguir o príncipe Dmitrii. Pode-se especular, assim, que a idéia de que o príncipe era o representante divino na Terra estava fortemente arraigada em Moscou, a ponto do príncipe vir diretamente a seguir a Deus. Em Novgorod estão as diversas instituições compostas por várias pessoas, em certo grau de igualdade; já em Moscou o príncipe está acima de todos: apenas Deus está acima dele.

Em seguida, de maneira bem clara e inequívoca, Dmitrii afirma: "E eu transmito meu patrimônio, Moscou, para meus filhos, para o príncipe Vasilii, para o príncipe Iuri, para o príncipe Andrei [e] para o príncipe Pyotr. (...)" (KAISER; MARKER, 1994, p. 87, grifos nossos). Em claro contraste com o documento de Novgorod -- que afirma que o príncipe não pode fazer aquilo que não lhe for autorizado pela população --, o príncipe de Moscou deixa transparente que Moscou é seu patrimônio, e não um local no qual ele vai apenas trabalhar como administrador. Em diversas outras passagens Dmitrii reforça esta idéia, chamando Moscou de "meu principado patrimonial", ou afirmando que "das minhas duas partes dos impostos" (KAISER; MARKER, 1994, p. 87, grifos nossos). Dmitrii distribui diversos principados, diversas vilas, diversos apiários e o que recolhe de diversos impostos a seus filhos, sendo que tais itens são sempre precedidos pelo pronome "meu".

(Continua na próxima postagem.)