7 de fevereiro de 2008

Formação do estado russo (VIII)

(Continuação da postagem anterior.)

Ainda relacionado à temática do patrimonialismo, é interessante notar que a mentalidade patrimonialista é passada de pai para filho: Dmitrii afirma, em diversas ocasiões, que a propriedade é patrimonial também em relação à sua esposa e a seus filhos. Ou seja, Dmitrii não está passando adiante o direito de governar: na verdade, ele transfere para sua esposa e para seus filhos a posse daquelas propriedades (e dos impostos recebidos das mesmas). Seus filhos, portanto, serão donos do patrimônio, e não apenas administradores do território como os posadniki eram em Novgorod.

É curioso verificar que em nenhum momento Dmitrii afirma que seus filhos serão líderes políticos; mesmo assim, deduz-se que já está subentendido na mentalidade moscovita o fato de que os príncipes serão donos daquelas terras e, conseqüentemente, serão também os líderes políticos de todo o território de Moscou -- ainda que não houvesse, à sua época, uma legislação clara sobre a sucessão após o falecimento do grão-príncipe. Dmitrii deixa claro que é de responsabilidade de Vasilii cuidar de seus irmãos mais novos: "E meus filhos mais novos, irmãos do príncipe Vasilii, honrem e obedeçam ao seu irmão mais velho, príncipe Vasilii, em meu lugar, seu pai" (KAISER; MARKER, 1994, p. 90). É por este motivo que Dmitrii dá a seu filho Vasilii comparativamente mais do que aos demais, deixando subentendido que a linha de sucessão política acontece de acordo com a ordem de nascimento dos filhos -- e os demais irmãos devem se submeter à vontade do pai, sob pena de não recebimento dos favores divinos e também do próprio Dmitrii.

Interessante destacar também a importância dada por Dmitrii à Horda de Ouro: "E se Deus fizer acontecer alguma mudança no que diz respeito à Horda (...) [e] se meus filhos não tiverem o suficiente para dar como tributo para os tártaros, então o tributo que cada um dos meus filhos recolhe em seus principados patrimoniais deve ser dela" (KAISER; MARKER, 1994, 90). Ou seja, mesmo após sua vitória contra os mongóis em Kulikovo, em 1380, Dmitrii ainda se preocupa em manter a estabilidade por meio do pagamento de tributos aos mongóis, e deixa claro que seus filhos devem fazer de tudo para cumprir com seus compromissos junto aos invasores.

O último item importante a ser destacado no testamento de Dmitrii é a maneira como ele trata os boiardos: estes estão tão submetidos à vontade do príncipe como qualquer outra pessoa. "E aqueles dos meus boiardos que servem à minha princesa, estes boiardos, meus filhos, cuidem como a um homem" (KAISER; MARKER, 1994, 90). Pode-se subentender que os próprios boiardos também estão submetidos à vontade do príncipe, o que deixa claro que todos, não apenas os servos, escravos e camponeses, mas absolutamente todos dependem diretamente da vontade e dos favores que advêm do príncipe. "Patrimônio" refere-se não apenas às terras, mas também às pessoas que trabalham nestas terras (camponeses, servos) e às pessoas que afirmam ser donas destas terras (boiardos), tanto que cabe ao príncipe conceder aos e/ou retirar dos boiardos o direito de ser dono das terras. Dmitrii termina seu testamento afirmando que o mesmo foi escrito na presença de abades e de boiardos, buscando, assim, dar legitimidade à sua última vontade.

O próximo documento diz respeito ao evento que marcou, ao mesmo tempo, a supremacia de Moscou como centro do estado russo em formação, por um lado, e o fortalecimento da dominação caracterizada pela mentalidade patrimonialista de estado que subsiste até os dias atuais na Rússia, por outro. O documento é intitulado "A anexação de Novgorod de acordo com a crônica de Nikon de Moscou (1471-78)" e, como nos dizem Kaiser e Marker (1994, 90), "poucos eventos melhor ilustram o conceito patrimonial de estado do que a anexação moscovita de Novgorod nos anos 1470".

Uma vez tendo conquistado Novgorod em 1471, Ivan III permitiu que a cidade mantivesse sua estrutura política de participação popular, especialmente porque Novgorod, como grande ponto comercial, era cidade riquíssima. Entretanto, justamente por ter permitido a manutenção de tal sistema, surgiram na cidade focos de resistência ao domínio moscovita: parte da população preferia se submeter ao jugo lituano, e não ao jugo moscovita.

O documento começa com a descrição do envio de representantes de Novgorod até Moscou após a conquista daquela cidade por esta para conversar com Ivan III sobre a consagração do arcebispo de Novgorod em Moscou. Em sua resposta, Ivan III responde utilizando-se, mais de uma vez, da expressão "meu patrimônio" ao se referir a Novgorod. Em seguida, o documento mostra que, após o retorno dos emissários a Novgorod, foi realizada uma veche e, nesta ocasião, alguns cidadãos da cidade (chamados de "bêbados" no documento) são contra o uso da expressão "patrimônio" por Ivan III: acham que a cidade não deve se submeter a Ivan III, mas sim ao Rei da Polônia e Grão-Príncipe da Lituânia. O documento segue afirmando que houve grande balbúrdia na veche entre os defensores da submissão a Moscou e os defensores da submissão à Lituânia.

Por causa disso, Ivan III enviou nova correspondência à cidade. Nesta, o grão-príncipe de Moscou se utiliza da linhagem para afirmar que, sem dúvida, Novgorod é seu patrimônio e que, portanto, os habitantes de Novgorod deveriam obedecê-lo. A citação é longa, mas vale a pena ser lida:

Povo de Novgorod, sua terra é meu patrimônio, assim como era desde nossos avós e antepassados, desde o tempo do Grão-Príncipe Vladimir, que cristianizou a terra russa [referência a Vladimir que, em 988, se converteu ao cristianismo ortodoxo], que era o tataraneto de Rurik, o primeiro grande príncipe de nossas terras. E deste Rurik até os nossos dias vocês conheceram apenas uma dinastia de grão-príncipes, dos príncipes de Kiev ao Grão-Príncipe Dmitrii Iurievich (...). E do Grão-Príncipe até mim é a mesma linhagem. Nós os governamos e vos agraciamos com nossa honra, e nós os defendemos de todos e somos livres para castigá-los caso vocês comecem a nos considerar de maneira diferente do costume. Vocês nunca estiveram sob nenhum rei [da Polônia] ou sob nenhum grão-príncipe da Lituânia, e sempre foi assim desde o surgimento de nossas terras. E agora vocês deserdam a Cristandade e se voltam para os Latinos, apesar de sua promessa para com a cruz [juramento de submissão à ortodoxia]. E eu, o Grão-Príncipe, não aplico nenhuma força sobre vocês, e não os taxo mais do que era taxado por meu pai, Grão-Príncipe Vasilii Vasilievich, ou pelo meu avô, ou pelo meu bisavô, ou por outros grandes príncipes de nossa linhagem. E eu pretendo, no futuro, vos agraciar com minha boa vontade porque vocês são meu patrimônio (KAISER; MARKER, 1994, 92).

O autor do documento mostra também o grande esforço feito pelo Metropolitano Felipe, da Igreja Ortodoxa em Moscou, no sentido de mostrar que submeter-se aos lituanos, além de ser uma questão política, era também uma questão religiosa: os lituanos, católicos, eram vistos como hereges. Caso Novgorod jurasse fidelidade ao grão-príncipe da Lituânia, estaria não apenas fugindo ao destino de união de toda a Rússia sob as mãos de Ivan III como também estaria criando um grande cisma dentro da Igreja Ortodoxa. Interessante notar as palavras do Metropolitano: "(...) meus filhos, vocês devem se submeter a uma mão forte do seguidor das leis e piedoso soberano Grão-Príncipe Ivan Vasilievich de Toda a Rússia porque vocês foram sujeitados a ele por Deus..." (KAISER; MARKER, 1994, 90, grifo nosso). Esta frase é importante porque mostra que mesmo a Igreja apoiava o patrimonialismo moscovita e se colocava, pelo menos publicamente, abaixo do príncipe, ainda que, a esta época, a Igreja fosse a única instituição suficientemente forte em todo o território para se opor ao governante -- o que não aconteceu em nenhum momento. Contudo, mesmo com a intervenção do Metropolitano os cidadãos de Novgorod não se sujeitaram pacatamente a Moscou. Em conseqüência, Ivan III, "seguindo orientação divina" decidiu realizar a campanha militar contra a cidade em 1471.

(Continua na próxima postagem.)


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