30 de junho de 2008

Diferenças conceituais (XI)

(Continuação da postagem anterior.)

IV. O estado burguês como domínio de classe. O condicionamento da superestrutura política por parte da estrutura econômica, isto é, a dependência do Estado da sociedade civil, se manifesta nisto: que a sociedade civil é o lugar onde se formam as classes sociais e se revelam seus antagonismos, e o Estado é o aparelho ou conjunto de aparelhos dos quais o determinante é o aparelho repressivo (o uso da força monopolizada), cuja função principal é, pelo menos em geral e feitas algumas exceções, de impedir que o antagonismo degenere em luta perpétua (o que seria uma volta pura e simples ao estado de natureza), não tanto mediando os interesses das classes opostas mas reforçando e contribuindo para manter o domínio da classe dominante sobre a classe dominada. No Manifesto do partido comunista, o "poder político" é definido com uma fórmula que já se tornou clássica: "O poder organizado de uma classe para oprimir uma outra".

Marx não desconheceu as formas de poder político existentes em outros tipos de sociedade diferentes da sociedade burguesa, mas concentrou sua atenção e a grande maioria de suas reflexões sobre o Estado burguês. Quando ele fala do Estado como "domínio" ou "despotismo" de classe, ou como "ditadura" de uma classe sobre a outra, o objeto histórico é quase sempre o Estado burguês. Desde um de seus primeiros artigos, comentando os Debates sobre a lei contra os furtos de lenha (1842), notara que o interesse do proprietário de florestas era "o princípio determinante de toda a sociedade", tendo como conseqüência que: "Todos os órgãos do Estado se tornam ouvidos, olhos, braços, pernas com que o interesse do proprietário escuta, observa, avalia, provê, pega, anda". Portanto, contra as interpretações deformantes e -- a meu ver -- banalizantes que insistem mais sobre a independência do que sobre a dependência do Estado da sociedade, com uma frase que merece ser sublinhada, concluíra: "Esta lógica, que transforma o dependente do proprietário florestal numa autoridade estatal, transforma a autoridade estatal num dependente do proprietário" (Escritos políticos juvenis, p. 203). Especialmente em relação ao Estado burguês, isto é, àquela fase de desenvolvimento da sociedade civil em que as categorias se transformaram em classes e a propriedade, sendo privada, se emancipou totalmente do Estado, Marx afirma, em A ideologia alemã, que o Estado "nada mais é do que a forma de organização que os burgueses se dão por necessidade, tanto interna como externamente, a fim de garantir reciprocamente sua propriedade e seus interesses". Após ter precisado mais uma vez que "a independência do Estado hoje não se encontra mais que naqueles países onde as categorias ainda não se transformaram em classes", e, portanto, na Alemanha mas não nos Estados Unidos, formula a sua tese nos seguintes termos, gerais e inequívocos: "O Estado é a forma em que os indivíduos de uma classe dominante fazer prevalecer seus interesses comuns e em que se resume toda a sociedade civil de uma época" (A ideologia alemã, p. 40).

O fato de que em certos períodos de crise, em que o conflito de classe se torna mais agudo, a classe dominante faz prevalecer seus interesses próprios pelo poder político direto, que ela exerce através do Parlamento (que nada mais é do que um "comitê de negócios" da burguesia), a um personagem que surge acima das partes, como aconteceu na França após o golpe de Estado de 2 de dezembro de 1851 que deu o poder supremo a Luís Napoleão, não significa absolutamente que o Estado mude sua natureza: o que acontece nesse caso (trata-se do "bonapartismo" que Engels, considerando-o uma categoria histórica, estenderá ao regime instaurado por Bismarck na Alemanha) (Correspondência Marx-Engels, IV, p. 406) é pura e simplesmente a passagem das prerrogativas soberanas, no interior do mesmo Estado burguês, do poder legislativo para o poder executivo, representado por aquele que dirige a administração pública; trata-se, em outros termos, da passagem dessas prerrogativas do Parlamento para a burocracia que, aliás, preexiste ao Parlamento, já que ela se formou durante a monarquia absoluta e constitui um "terrível corpo parasitário que envolve, como um invólucro, o corpo da sociedade francesa obstruindo todos os seus poros (O 18 de brumário, in K. Marx e F. Engels, Obras, p. 575). Essa substituição de um poder por outro pode dar a impressão de que o Estado tenha-se tornado independente da sociedade civil: mas também essa forma extraordinária de "despotismo individual" não pode se sustentar, se não se apoiar numa determinada classe social, que, no caso específico de Luís Napoleão, foi, segundo Marx, a classe dos pequenos proprietários camponeses; fundamentalmente a função do poder político, esteja esse nas mãos de uma assembléia como o Parlamento ou nas mãos de um homem como o ditador, não muda: Bonaparte sente, observa Marx, que "a sua missão consiste em garantir a ordem burguesa" (Ibid, p. 584), mesmo se depois, envolvido nas contradições de seu papel de mediador acima das partes e impossibilitado de exercê-lo com sucesso, devido às contradições objetivas da sociedade de classes, não consegue o intento (ou pelo menos Marx julga que, ao invés de trazer a ordem prometida, o suposto salvador acabe por deixar o país no caos de uma nova anarquia). Na realidade, se a burguesia renuncia ao próprio poder direto, isto é, ao regime parlamentar para se entregar ao ditador, isto acontece porque ela julga (embora erroneamente, porque baseando-se num cálculo que não dará certo) que num momento difícil o ditador assegura o seu domínio sobre a sociedade civil, que esse domínio vale mais do que o Parlamento, ou, como diz Marx, a burguesia "reconhece que, para manter intato o seu poder social, precisa quebrar o seu poder político", ou em termos mais vulgares, "que para salvar a própria bolsa ela tem que perder a própria coroa" (Ibid., p. 530).

V. O estado de transição. Marx confirma com precisão a dependência, muitas vezes afirmada, do Estado da sociedade civil e do poder político da classe dominante, quando põe o problema da passagem do Estado, em que a classe dominante é a burguesia, para o Estado, em que a classe dominante é o proletariado. Sobre esse problema, ele será induzido a refletir especialmente por causa do episódio da Comuna de Paris (março--maio 1871). Numa carta a Ludwig Kugelmann, de 12 de abril de 1871, referindo-se exatamente ao último capítulo do escrito sobre o golpe de Estado na França (O 18 de brumário de Luís Bonaparte), em que tinha afirmado que "todas as revoluções políticas só serviram para aperfeiçoar esta máquina (isto é, a máquina do Estado) ao invés de quebrá-la" (Ibid, p. 576), reafirma, após já vinte anos, que "a próxima tentativa de Revolução Francesa não vai consistir em transferir de uma mão para outra a máquina militar e burocrática, como aconteceu até agora, mas em quebrá-la e tal é a condição preliminar de qualquer revolução popular no continente" (Cartas a Kugelmann, p. 139). Ele frisa, portanto, que o objetivo visado pelos insurrectos parisienses é exatamente este: eles não tendem a apoderar-se do aparelho do Estado burguês, mas tentam "quebrá-lo". Nas considerações sobre a Comuna, Marx volta freqüentemente a esse conceito: ora diz que a unidade da nação tinha que se tornar uma realidade "através da destruição daquele poder estatal que pretendia ser a encarnação desta unidade independente e, até, superior à própria nação, enquanto era apenas uma excrescência parasitária"; ora fala da Comuna como de uma nova forma de Estado que "quebra" o moderno poder estatal e que substitui o velho governo centralizado pelo "autogoverno dos produtores" (A guerra civil na França, in K. Marx e F. Engels, Obras, pp. 911--12).

(Continua na próxima postagem.)

27 de junho de 2008

Diferenças conceituais (X)

(Continuação da postagem anterior.)

É claro que, uma vez aplicada a crítica do método especulativo à filosofia política de Hegel, Marx deduz daí a rejeição não somente do método hegeliano mas também dos resultados que Hegel julgava poder obter por este método em relação aos problemas do Estado. O que Marx critica e refuta é a mesma estruturação do sistema da filosofia do direito hegeliano, baseado na prioridade do Estado sobre a família e sobre a sociedade civil (isto é, sobre as esferas que historicamente precedem o Estado), prioridade que Hegel afirma sem observar e respeitar a realidade histórica de seu tempo nem estudar como efetivamente se foi formando o Estado moderno, mas deduzindo-a da idéia abstrata de Estado como totalidade superior e anterior às suas partes. Enquanto na realidade família e sociedade civil são os pressupostos do Estado, "na especulação sucede o contrário", isto é, "os sujeitos reais, a sociedade civil, a família [...], se tornam momentos objetivos da idéia, irreais, alegóricos", ou, por outras palavras, enquanto estas são "os agentes" (isto é, um sujeito histórico real, na filosofia especulativa são "postas em ato" pela idéia real e "devem sua existência a um espírito diferente delas", pelo que "a condição se torna o condicionado, o determinador, o determinado, o produtor, o produto de seu produto" (Obras filosóficas juvenis, pp. 18-9). Desde as primeiras proposições do comentário, Marx chama a este processo "misticismo lógico". Não é o caso de nos delongarmos sobre as críticas particulares que Marx faz a essa ou àquela tese política de Hegel; basta mencionar que as críticas mais importantes são as que dizem respeito à concepção do Estado como organismo, à exaltação da monarquia constitucional, à interpretação da burocracia como classe universal e à teoria da representação por classes, contraposta ao sistema representativo nascido da Revolução Francesa. Importa destacar particularmente que a rejeição do método especulativo de Hegel leva Marx a inverter as relações entre sociedade civil e Estado (considerando este último conseqüência do método especulativo), a firmar a sua atenção bem mais sobre a sociedade civil que sobre o Estado e, portanto, a divisar a solução do problema político não na subordinação da sociedade civil ao Estado mas, pelo contrário, na absorção do Estado por parte da sociedade civil, na qual consiste a "verdadeira" democracia, na qual, segundo os franceses, "o Estado político desaparece" (Ibid., p. 42) e cujo instituto fundamental, o sufrágio universal, tende a eliminar a diferença entre Estado político e sociedade civil, pondo "no Estado político abstrato a constância da dissolução deste, como também da dissolução da sociedade civil" (Ibid., p. 135).

III. O estado como superestrutura. A inversão das relações entre sociedade civil e Estado, realizada por Marx a respeito da filosofia política de Hegel, representa uma verdadeira ruptura com toda a tradição da filosofia política moderna. Enquanto esta tende a ver na sociedade pré-estatal (quer seja esta o estado de natureza de Hobbes, ou a sociedade natural de Locke, ou o estado primitivo de natureza de Rousseau do Contrato social, ou o estado das relações de direito privado-natural de Kant, ou a família e a sociedade civil do próprio Hegel) uma subestrutura, real mas efêmera, destinada a ser absorvida na estrutura do Estado onde somente o homem pode conduzir uma vida racional e, portanto, destinada a desaparecer total ou parcialmente uma vez constituído o Estado, Marx, ao invés, considera o Estado -- entendido como o conjunto das instituições políticas onde se concentra a máxima força impossível e disponível numa determinada sociedade -- pura e simplesmente como uma superestrutura em relação à sociedade pré-estatal, que é o lugar onde se formam e se desenvolvem as relações materiais de existência, e, sendo superestrutura, é destinado, por sua vez, a desaparecer na futura sociedade sem classes. Enquanto a filosofia da história dos escritores anteriores a Hegel (e especialmente no próprio Hegel) caminha para um aperfeiçoamento cada vez maior do Estado, a filosofia da história de Marx caminha, ao invés, para a extinção do Estado. O que para os escritores precedentes, é a sociedade pré-estatal, ou seja, o reino da força irregular e ilegítima -- seja este o bellum omnium contra omnes de Hobbes, ou o estado de guerra ou de anarquia que, segundo Locke, uma vez iniciado não pode ser abolido senão através de um salto para a sociedade civil e política, ou a société civile de Rousseau, onde vigora o pretenso direito do mais forte, direito que na realidade não é direito, mas mera coação, ou o estado de natureza de Kant, como estado "sem nenhuma garantia jurídica" e, portanto, provisório -- é para Marx, ao contrário, o Estado, que, como reino da força ou, conforme a conhecida definição que ele dá em O capital, como "violência concentrada e organizada da sociedade" (vol. 1, p. 814), é, não a abolição nem a superação, mas o prolongamento do Estado de natureza como Estado histórico (ou pré-histórico), não tanto imaginário ou fictício mas real da humanidade.

Já Marx, nos Manuscritos econômico-filosóficos de 1844, expressa esse conceito fundamental, segundo o qual o Estado não é o momento subordinante mas o momento subordinado do sistema social considerado em seu conjunto, afirmando que "a religião, a família, o Estado, o direito, a moral, a ciência, a arte, etc. são apenas modos particulares da produção e caem sob sua lei universal" (p. 112). Numa forma ainda mais clara e extensa assim escreve na grande obra imediatamente posterior, A ideologia alemã (1845--1846): "A vida material dos indivíduos, que não dependem em absoluto de sua pura 'vontade', o seu modo de produção e a forma de relações, que se condicionam reciprocamente, são a base real do Estado em todos os estádios nos quais ainda é necessária a divisão do trabalho, totalmente independente da vontade dos indivíduos. Estas relações reais não são absolutamente criadas pelo poder do Estado; são, antes, essas relações o poder que cria o Estado" (p. 324). Diferentemente da anterior que ficou inédita, na obra do mesmo período, A sagrada família, publicada em 1845, a inversão da idéia tradicional, personificada neste contexto por Bruno Bauer, segundo o qual "o ser universal do Estado deve manter unidos cada um dos átomos egoístas", não poderia ser expressada com maior clareza: "Somente a superstição política imagina ainda hoje que a vida civil precise de ser mantida unida pelo Estado, enquanto, pelo contrário, é o Estado que na realidade é mantido unido pela vida civil" (p. 131). Em assunto de relações entre estrutura e superestrutura, é celebérrimo o texto do Prefácio a Para a crítica de economia política: "O conjunto dessas relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade, isto é, a base real sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e política e à qual correspondem formas determinadas de consciência social. O modo de produção da vida material condiciona, em geral, o processo social, político e espiritual da vida" (p. 11).

Contra a "superstição política", ou seja, contra a supervalorização do Estado, o ataque de Marx é constante, apesar de alguns intérpretes recentes discordarem. Essa rejeição da superstição política o leva a dizer num escrito juvenil, A questão hebraica (1843), que a Revolução Francesa não foi uma revolução completa, porque foi somente uma revolução política, e que a emancipação política não é ainda a emancipação humana. E, num escrito da maturidade, ataca Mazzini, dizendo que este nunca entendeu nada porque "para este o Estado, que cria na sua imaginação, é tudo, enquanto que a sociedade, que existe na realidade, não é nada" (o que é um outro modo de dizer que uma revolução apenas política não é uma verdadeira revolução).

(Continua na próxima postagem.)

26 de junho de 2008

Diferenças conceituais (IX)

(Continuação da postagem anterior.)

MARXISMO

I. Marx e o problema do estado. Entende-se por Marxismo o conjunto das idéias, dos conceitos, das teses, das teorias, das propostas de metodologia científica e de estratégia política e, em geral, a concepção do mundo, da vida social e política, consideradas como um corpo homogêneo de proposições até constituir uma verdadeira e autêntica "doutrina", que se podem deduzir das obras de Karl Marx e de Friedrich Engels. A tendência, muitas vezes manifestada, de distinguir o pensamento de Marx do de Engels surge dentro do próprio Marxismo, ou seja, ela própria se constitui numa forma de Marxismo. Identificam-se diversas formas de Marxismo, quer com base nas diferentes interpretações do pensamento dos dois fundadores, quer com base nos juízos de valor com que se pretende distinguir o Marxismo que se aceita do Marxismo que se rejeita: por exemplo, o Marxismo da Segunda e da Terceira Internacional, o Marxismo revisionista e ortodoxo, vulgar, duro, dogmático, etc. Nessa seção nos limitaremos a expor as linhas da teoria marxista do Estado e, em geral, da política, notando que ter-se-ão em vista principalmente as obras de Marx e, só subsidiariamente, as de Engels, que geralmente, representando as teses de Marx em polêmica contra os detratores e os deturpadores, acaba às vezes por torná-las mais rígidas.

Como é sabido, Marx não escreveu nenhuma obra de teoria do Estado em sentido estrito, embora sua primeira obra de pulso, que ficou aliás incompleta e inédita por quase um século (escrita em 1843, foi publicada pela primeira vez em 1927) fosse um comentário e uma crítica, parágrafo por parágrafo, de uma boa parte da seção sobre o Estado da Filosofia do direito de Hegel (obra já conhecida sob o título de Crítica. da filosofia do direito público de Hegel); e não obstante, na obra que imediatamente se lhe seguiu -- tal como a primeira incompleta e inédita, conhecida sob o título de Manuscritos econômico-filosóficos de 1844 -- ter preanunciado nas primeiras linhas do Prefácio que apresentaria "uma após outra, em ensaios diferentes e independentes, a crítica do direito, da moral, da política". Muitos anos mais tarde, no Prefácio a Para a crítica da economia política (1859), contando a história de sua formação, relatou como passara dos primeiros estudos jurídicos e filosóficos para os estudos de economia política e como, através dessas pesquisas, chegara à conclusão de que "tanto as relações jurídicas quanto as formas do Estado não podem ser compreendidas nem por si mesmas nem pela chamada evolução geral do espírito humano, mas antes têm suas raízes nas relações materiais da existência". Para reconstruir o pensamento de Marx sobre o Estado é preciso, portanto, recorrer àquelas idéias esparsas que se encontram nas obras econômicas, históricas e políticas: de fato, embora, após a obra juvenil de crítica à filosofia do direito de Hegel, não exista nenhuma obra de Marx que trate especificamente do problema do Estado, igualmente não existe obra sua de onde não seja possível extrair, sobre esse problema, trechos relevantes e iluminativos. É óbvio que, por causa dessa fragmentaridade e devido ao fato de que estes fragmentos estão disseminados ao longo de um período de mais de trinta anos e de que as teses que esses apresentam concisamente são expostas freqüentemente de forma ocasional e polêmica, toda reconstrução rigorosa da teoria marxiana do Estado corre o risco de ser deformante ou, pelo menos, unilateral. É preferível, porém, assumir esse risco, aceitando uma ambigüidade insuperável ou relevando a presença de duas ou mais teorias paralelas.

Partindo da crítica à filosofia do direito e do Estado de Hegel, que o leva a uma mudança radical das relações tradicionais entre sociedade (natural e civil) e Estado, Marx propõe uma teoria do Estado estritamente ligada à teoria geral da sociedade e da história, que ele deduz do estudo da economia política. Essa teoria geral lhe permite dar uma interpretação e fazer uma crítica do Estado burguês do seu tempo nas diversas formas em que se apresenta e dar também uma interpretação e formular algumas propostas relativas ao Estado que se deverá seguir ao Estado burguês: permite-lhe, enfim, deduzir o fim ou a extinção do Estado. Segue-se daí que para uma exposição tanto quanto possível sistemática das linhas gerais da teoria marxista do Estado parece oportuno focalizar os cinco pontos seguintes: 1o) crítica das teorias anteriores, de modo particular da teoria hegeliana (§ 2o); 2o) teoria geral do Estado (§ 3o); 3o) teoria do Estado burguês em particular (§ 4o); 4o) teoria do Estado de transição (§ 5o); 5o) teoria da extinção do Estado (§ 6o).

II. Crítica da filosofia política hegeliana. Na filosofia do direito de Hegel chegara ao cumprimento e à exasperação aquela tendência típica do pensamento político que acompanha o surgimento e a formação do Estado moderno, de Hobbes em diante, proclamando o Estado ou como a forma racional da existência social do homem, garante da ordem e da paz social que é o único interesse que todos os indivíduos viventes em sociedade têm em comum (Hobbes); ou como árbitro imparcial acima das partes, que impede a degeneração da sociedade natural, dirigida pelas leis da natureza e da razão, num Estado de conflitos permanentes e insolúveis (Locke); ou como expressão da vontade geral através da qual cada um, renunciando à liberdade natural em favor de todas as outras, adquire a liberdade civil ou moral e se torna mais livre do que antes (Rousseau); ou como meio através do qual é possível realizar empiricamente o princípio jurídico ideal da coexistência das liberdades externas, pelo que sair do Estado natural para entrar no Estado social não é tanto efeito de um cálculo utilitário quanto de uma obrigação moral por parte dos indivíduos (Kant). Iniciando a seção da Filosofia do direito sobre o Estado, Hegel tinha dito que "o Estado, enquanto é a realidade da vontade substancial (...) é o racional em si e de per si", deduzindo-se daí que o "dever supremo" de cada indivíduo era o de "ser parte essencial do Estado" (§ 258).

A crítica que Marx, sob a influência de Feuerbach, levanta contra Hegel na obra juvenil, anteriormente citada, Crítica da filosofia do direito público de Hegel (que contém um comentário aos §§ 261--313 sobre Lineamentos da filosofia do direito), tem, na verdade, mais valor filosófico e metodológico que político, no sentido de que o que interessa principalmente a Marx nesse escrito é a crítica do método especulativo de Hegel, isto é, do método segundo o qual o que deveria ser o predicado, a idéia abstrata, se torna o sujeito e o que deveria ser o sujeito, o ser concreto, se torna o predicado, como aparece mais claramente no exemplo seguinte do que em qualquer outra explicação. Hegel, partindo da idéia abstrata de soberania, em vez da figura histórica do monarca constitucional, formula a proposição especulativa "a soberania do Estado é o monarca", ao passo que, partindo da observação da realidade, o filósofo não-especulativo tem que dizer que "o monarca (isto é, aquele tal personagem histórico com aqueles determinados atributos) tem o poder soberano"; nas duas proposições, como se vê, sujeito e predicado estão invertidos. Em um capítulo sobre A sagrada família (1845), que é o melhor comentário a esta crítica, intitulado O mistério da construção especulativa, Marx, após ter ilustrado com outro exemplo o mesmo tipo de inversão (para o filósofo não especulativo a pêra é uma fruta, enquanto que para o filósofo especulativo o termo "fruta" está colocado no lugar de "pêra"), explica que esta operação pela qual se concebe a substância como sujeito (enquanto deveria ser predicado) e o fenômeno como predicado (enquanto deveria ser sujeito) "forma o caráter essencial do método hegeliano" (A sagrada família, p. 66).

(Continua na próxima postagem.)

25 de junho de 2008

Diferenças conceituais (VIII)

(Continuação da postagem anterior.)

IV. PROBLEMAS ATUAIS DO SOCIALISMO. A cisão do movimento socialista internacional que se seguiu à revolução soviética, à medida que o novo Estado ia adquirindo, nas décadas de 1920 e 1930, a sua configuração jurídica, política e econômica definitivas, foi cristalizando o Socialismo e o comunismo em duas culturas políticas profundamente diferentes e muitas vezes hostis, mesmo que ao período de choque frontal, em que os socialistas foram tratados pelas lideranças leninistas como "social-traidores" e "social-fascistas", se tenha seguido uma fase de aliança e de colaboração durante a luta antifascista e a resistência. Não faltaram as formas intermediárias e as tentativas de superar o cisma que se verificou no movimento operário, mas, na realidade, foram elaboradas, a partir da década de 1930 e especialmente depois da Segunda Guerra Mundial, dois modelos completamente diferentes de Socialismo, ambos muito distantes das formas previstas pelo Socialismo do século passado e da formulação utópica do Manifesto de Marx e Engels ("No lugar da velha sociedade burguesa, com suas classes e seus antagonismos de classe, entra uma associação na qual o livre desenvolvimento de cada um é a condição para o livre desenvolvimento de todos"). No Ocidente, os governos regidos pelas social-democracias, na Alemanha, na Inglaterra, na Bélgica e nos países escandinavos, promoveram algumas nacionalizações e a instauração de uma economia mista no quadro de um "capitalismo organizado", com redistribuicão de renda e formas de segurança social para as classes trabalhadoras que o "Estado assistencial" (Welfare State) tornou possíveis. Ao contrário da social-democracia clássica, as social-democracias contemporâneas são partidos populares que abandonaram a idéia da divisão da sociedade em classes contrapostas e o Socialismo como abolição da propriedade privada (as declarações mais explícitas foram as da social-democracia alemã no programa de Bad Godesberg, 1959) (Reformismo (v.) e v. Social-democráticos). Na União Soviética e nos países em que se instaurou a ditadura do partido "marxista-leninista" (identificada ideologicamente com a "ditadura do proletariado"), o Socialismo, de fase de transição, transformou-se em formação social autônoma, caracterizada pelo esvaziamento das formas originárias da democracia de base pela concentração autoritária dos poderes por parte do aparelho burocrático do Estado e do partido, e pelo reproduzir-se de profundas desigualdades e agudos conflitos sociais, não obstante a "desestalinização" e as tentativas de liberalização, substancialmente fracassadas, de sistemas político-econômicos, aos quais hoje é freqüentemente aplicada a fórmula de "Socialismo real", para sublinhar a sua discordância com as expectativas do Socialismo teórico.

Surge, portanto, um dilema que N. Bobbio ilustrou nos seguintes termos: "chocamo-nos com essa contradição, que é a verdadeira pedra de tropeço da democracia socialista (não se confunda com a social-democracia): pelo método democrático o Socialismo é inatingível; mas o Socialismo não alcançado por via democrática não consegue encontrar o caminho para a transição de um regime de ditadura ao regime de democracia. Nos Estados capitalistas, o método democrático, mesmo em suas melhores explicações, bloqueia o caminho para o Socialismo; nos Estados socialistas, a concentração do poder tornada necessária para uma direção unificada da economia torna extremamente difícil a introdução do método democrático". O problema seria o de conjugar os conteúdos socialistas com as técnicas jurídico-políticas que derivam da tradição liberal-democrática. Confirmando também aqui a consolidada diferença entre culturas socialistas e comunistas anteriormente mencionada, é completamente diferente a forma como é proposto o problema na literatura marxista que rejeita o "Socialismo real". Citamos, por exemplo, a introdução de R. Rossanda num congresso de 1977 sobre as "sociedades pós-revolucionárias": "Se se trata de formações sociais, então a luta é entre 'poderes' e seus sistemas de compensação... Se se trata de formações capitalistas de tipo novo, então a questão não está numa exortação à democracia e aos direitos civis. Está na retomada da luta de classes nesses países".

Os problemas mencionados tornam-se ainda mais urgentes desde que, na década de 1970, ambos os modelos de Socialismo entram em crise: o Welfare State, promovido pelas social-democracias, não consegue manter suas promessas diante da crise econômica; o "Socialismo real", por sua vez, é obrigado a contar cada vez mais com seus aparelhos militares para manter o status quo. Nem é possível afirmar que o propósito de alguns partidos comunistas ocidentais de elaborar uma "terceira via" eurocomunista tenha até agora esboçado um modelo alternativo suficientemente definido de Socialismo (v. Eurocomunismo).

Outra ordem de problemas concerne ao âmbito da validade possível de qualquer modelo socialista. O Internacionalismo (v.) substancialmente eurocêntrico do século passado já foi abandonado na fundamentação da Internacional leninista que tentou, pelo menos em princípio, unir, sob o signo do antiimperialismo, a luta do proletariado nos países industriais, a aspiração à independência dos povos oprimidos dos países coloniais e a defesa da URSS como "pátria do Socialismo". A recente evolução do Socialismo demonstrou, de forma cada vez mais evidente, o peso das histórias nacionais, da diversidade das situações econômicas, da pluralidade das tradições culturais e das ideologias. Após a Segunda Guerra Mundial, ao lado dos modelos apresentados pelas social-democracias européias e pelo Socialismo soviético, se delinearam as realidades dos Estados de nova independência do Terceiro Mundo que, embora adotando o Socialismo, têm perseguido o objetivo da modernização por meio dos instrumentos do partido único, do fortalecimento das elites burocráticas e militares, da integração das massas com base no tradicionalismo cultural e religioso. No mundo comunista, ao Socialismo soviético se contrapuseram, além disso, o Socialismo da Iugoslávia, fundado na Autogestão (v.), e o radicalismo comunista da China (Maoísmo (v.)). A teoria das "vias nacionais para o Socialismo" (aceita como princípio também pela União Soviética, mas corrigida em 1968 pela tese da "soberania limitada" dos Estados socialistas do próprio bloco) toma ciência dessa situação, mas deixa em aberto o problema do internacionalismo e dos modos de uma ação comum entre Socialismos fortemente divergentes e, às vezes, abertamente contrastantes.

(Continua na próxima postagem.)

24 de junho de 2008

Diferenças conceituais (VII)

(Continuação da postagem anterior.)

III. TENDÊNCIAS DO SOCIALISMO. Dentro do Socialismo da Segunda Internacional delinearam-se as principais tendências políticas que deviam coexistir na social-democracia clássica até a Primeira Guerra Mundial e caracterizar ao mesmo tempo, pelo menos em parte, as orientações divergentes do Socialismo posterior. As diferenças de posição que se foram definindo a partir da disputa sobre o "revisionismo", entre o fim do século XIX e o início do século XX, mergulham em parte suas raízes na história anterior do Socialismo (por exemplo, o contraste entre reformistas e revolucionários já se havia dado na França em 1848), e, em parte, são provocadas pela inserção cada vez mais ampla do movimento socialista na luta política e sindical diária, dentro do quadro das estruturas políticas liberaldemocráticas dos maiores Estados industriais, e pela delonga da crise final de um capitalismo que, saído da grande depressão, iniciava uma nova fase expansiva. A dificuldade real era captada por Rosa Luxemburg, ao escrever que a vontade revolucionária, "as massas não a podem formar senão na luta contínua contra a estrutura existente e somente no seu contexto. A união da grande massa popular com um objetivo que vai além de todo o ordenamento atual, o da luta diária para a grande reforma do mundo, eis o grande problema do movimento socialdemocrático, que, portanto, deve atuar avançando durante o curso da sua evolução entre dois escolhos: entre o abandono do caráter de massa e o abandono do objetivo final, entre o recair na seita e o precipitar-se no movimento reformista burguês" (Reforma social ou revolução?, 1899).

A grande divisão foi, antes de tudo, entre o Socialismo declaradamente reformista que, considerando o sistema capitalista profundamente mudado, pugnava pela integração do movimento operário nas estruturas políticas e econômicas capitalistas com o propósito da sua gradual transformação em sentido socialista, pela via democrático-parlamentar, e, do outro lado, o Socialismo que considerava atual o modelo analítico do capitalismo elaborado por Marx e a perspectiva da crise geral do sistema e da revolução. A primeira posição teve sua elaboração teórica mais autorizada no "revisionismo" de E. Bernstein (Os pressupostos do socialismo e as junções da social-democracia, 1899). Derrotado formalmente no plano das decisões congressuais do partido social-democrático alemão e das resoluções da Internacional, o reformismo "revisionista" ia adquirindo, todavia, consistência orgânica e espaço na práxis real do movimento operário de todos os países industrialmente avançados e se tornou na Inglaterra, onde o marxismo nunca teve uma difusão de alta relevância, a teoria oficial da Fabian Society (G. B. Shaw e S. Webb, Ensaios fabianos sobre o Socialismo, 1899) e da maioria do partido laborista e do movimento sindical. É de lembrar que os primeiros ensaios "revisionistas" de Bernstein foram elaborados na Inglaterra e em estreita referência à situação inglesa. Analisadas as coisas num quadro temporário bastante longo, o Socialismo reformista, que avalia o contexto institucional do Estado liberal-democrático como o melhor terreno para a afirmação dos objetivos das classes trabalhadoras e que considera, implícita ou explicitamente, o "fim último" da abolição da forma mercatória dos produtos do trabalho e do trabalhador (o princípio mais fundamental do Socialismo marxista) como uma utopia a ser abandonada, tornou-se a alternativa histórica e amplamente preponderante no Socialismo ocidental.

A alternativa marxista "ortodoxa", que predominou na social-democracia "clássica" do partido alemão e da Segunda Internacional, e que teve em K. Kautsky, até a Primeira Guerra Mundial, o teórico mais orgânico, procurou harmonizar a letra do Socialismo marxista, aceito formalmente em sua globalidade, com uma concepção diferente e uma avaliação positiva "do Estado moderno, do papel do Parlamento, da função das liberdades políticas e civis herdadas do liberalismo burguês, da insubstituibilidade de um aparelho administrativo-burocrático centralizado (em aberta polêmica com a 'legislação direta') e do significado da democracia política como método para o conhecimento da realidade e verificação da vontade do corpo social" (M. C. Salvadori). O objetivo final do Socialismo era continuamente reafirmado, mas adiado para uma situação histórica nunca atual, de maturação decisiva das suas condições objetivas e subjetivas; o núcleo teórico radical era salvaguardado à custa do contínuo adiamento da práxis correspondente, até o momento em que as opções fundamentais se tornaram iniludíveis no período da guerra e da aguda crise social do pós-guerra, e a síntese efetuada pela maioria da social-democracia clássica, entre "ortodoxia" formal e "revisão" substancial, tornouse insustentável, abrindo um período atormentado de lacerações não só entre os continuadores da Segunda Internacional e os adeptos da nova Internacional leninista, mas também no campo do Socialismo de matriz não-leninista (Revisionismo (v.) e Social-democracia (v.)).

As outras duas alternativas, que se constituíram, com uma fisionomia autônoma, no pensamento socialista, foram as posições revolucionárias de esquerda que tiveram como maiores teóricos R. Luxemburg e V. I. Lenin. Em ambas as tendências, o nexo entre funções imediatas do movimento operário e revolução social se resolve, em princípio, na subordinação de toda a experiência do movimento operário ao objetivo final da conquista e do exercício direto do poder político; em ambas o Estado liberal-democrático é entendido no sentido originário de Marx e Engels, isto é, de Estado de Classe ("o Estado, ou seja, a organização política, e as relações de propriedade, ou seja, a organização jurídica do capitalismo, enquanto se tornam, com o sucessivo desenvolvimento, cada vez mais capitalistas e não cada vez mais socialistas, opõem à teoria da instauração gradual do Socialismo duas dificuldades insuperáveis", afirma R. Luxemburg em Reforma social ou revolução?; e é conhecida a elaboração de Lenin sobre a destruição revolucionária do Estado burguês e sobre a sua substituição pelo "Estado-comuna", à margem dos textos marxianos sobre a Comuna de 1871, contida em Estado e revolução, 1917). Mas em R. Luxemburg subsiste, transcrita em termos marxistas, a tendência "economicistarevolucionária" do sindicalismo revolucionário e do sindicalismo anárquico, sendo postuladas a continuidade entre a luta econômica imediata e a luta política revolucionária e privilegiada a ação direta dos organismos de base que surgem espontaneamente nos períodos mais agudos da luta de classe como alavanca insubstituível da transformação social. Lenin, pelo contrário, não obstante todo o valor dado aos sovietes durante a revolução de 1905 e 1917, defende "a subordinação incondicional de todos os movimentos econômicos, culturais e ideológicos do proletariado, ao movimento político dirigido pelo partido revolucionário. Seria essa orientação do marxismo, que considerava como primária a 'política', que havia de experimentar o triunfo do seu princípio em escala mundial na revolução bolchevique de 1917, e que determinou até hoje toda a estrutura e desenvolvimento do Estado soviético, com o totalitarismo decorrente do seu princípio político" (K. Korsch, Karl Marx, 1938). A oscilação entre a supremacia do partido e a primazia dos organismos básicos de conselho foi, de qualquer modo, uma característica do Socialismo revolucionário, várias vezes repetida em sua história (Leninismo (v.)).

(Continua na próxima postagem.)

23 de junho de 2008

Diferenças conceituais (VI)

(Continuação da postagem anterior.)

II. O SOCIALISMO "DA UTOPIA À CIÊNCIA". Lá pelo fim da década de 1830, começou a ser usada pelos críticos do Socialismo a qualificação de "utopistas" para designar os socialistas (a aproximação entre "Socialismo" e "utopismo" foi feita provavelmente pela primeira vez em 1839, na História da economia política, do economista liberal francês J. A. Blanqui). Mas foram Marx e Engels que estabeleceram no Manifesto (e depois em vários outros lugares, dentre os quais destacamos especialmente os capítulos do Antidühring de Engels refundidos no pequeno volume A evolução do socialismo da utopia à ciência, 1888) a distinção entre socialismo "utópico" e socialismo "científico", a que se refere depois continuamente a tradição marxista. Enquanto a crítica do Manifesto é muito severa em relação ao Socialismo "reacionário" dos críticos do industrialismo que idealizavam a situação histórica anterior, do "verdadeiro" Socialismo filosófico alemão e do Socialismo "burguês" de Proudhon por causa do seu reformismo, Marx e Engels reconheceram a função positiva desempenhada pelo "Socialismo e comunismo crítico-utópico", especialmente pelo de Saint-Simon, Fourier e Owen, na identificação das contradições fundamentais da sociedade industrial e na delineação do futuro ordenamento social (eliminação do contraste entre cidade e campo, abolição da família junto com a propriedade privada, transformação do Estado em simples órgão de administração da produção, unificação da instrução e do trabalho produtivo, etc.). Consideraram, porém, suas tentativas parciais e imaturas em relação ao fraco desenvolvimento do proletariado industrial e às lutas de classe, motivo pelo qual esse tipo de Socialismo acabou por construir "sistemas" e "seitas" que "não descobrem no proletariado nenhuma função histórica autônoma, nenhum movimento político que lhe seja próprio". O caráter científico da nova teoria socialista de Marx e Engels consiste, segundo os seus autores: a) no fato de que o Socialismo, de programa racionalístico de reconstrução da sociedade que se dirige indistintamente à sua parte intelectualmente esclarecida, se transforma em programa de auto-emancipação do proletariado, como sujeito histórico da tendência objetiva para a solução comunista das contradições econômico-sociais do capitalismo (em particular da contradição entre propriedade privada e crescente socialização dos meios e dos processos produtivos); nesse sentido o Socialismo pretende ser "ciência" da revolução proletária; b) no fato de que o Socialismo não se apresenta mais como um "ideal", mas como uma necessidade histórica derivante do inevitável declínio do modo capitalista de produção, que se anuncia objetivamente nas crises cada vez mais agudas que ele enfrenta; c) no fato de que o Socialismo usa agora um "método científico" de análise da sociedade e da história, que tem seus pontos fortes no "materialismo histórico", com a teoria da sucessão histórica dos modos de produção, e na "crítica da economia política", com a teoria da mais-valia como forma específica da exploração na situação do capitalismo industrial. São aspectos conexos, mas parcialmente diferentes. Enquanto até a metade do século XIX, nas obras de Marx e Engels, se dá maior ênfase à história como tecido de lutas de classe e à identificação do proletariado como classe autonomamente revolucionária, os aspectos referentes à necessidade objetiva do desenvolvimento econômico só foram ressaltados de modo particular após o fracasso da revolução de 1848, quando, contra as impaciências revolucionárias ainda sobreviventes, Marx insistiu no axioma de que "uma formação social não perece enquanto não se tenham desenvolvido todas as forças produtivas a que pode dar origem" (prefácio de 1859 à obra Para a crítica da economia política). A imagem do Marx cientista e antiutopista, investigador das contradições e da ruína inevitável do sistema capitalista, tornou-se corrente no Socialismo da Segunda Internacional, especialmente na obra de elaboração e de construção sistemática do marxismo realizada por K. Kautsky e pelo centro "ortodoxo" do partido socialdemocrático alemão; mas já no esforço de Marx e Engels por transformá-lo em ciência e em suprimir-lhe o conteúdo utópico e ético, o Socialismo, ao mesmo tempo que se substanciava de concreção histórica e econômica, perdia parcialmente a dimensão de "projetualidade", não garantida pelo curso das coisas, acerca do ordenamento futuro da sociedade. Marx entendeu fundamentalmente a sua análise como "crítica científica" do modo de produção burguês-capitalista, recusando-se a formular "receitas para a cozinha do futuro" (pós-escrito de 1873 ao primeiro livro de O capital). Deu indicações precisas apenas sobre um ponto: a passagem do ordenamento baseado na propriedade privada à sociedade comunista se configuraria, após a tomada do poder por parte do proletariado, como um período de transição caracterizado, no plano político, pela "ditadura do proletariado" e, no plano econômico, pela sobrevivência parcial da forma mercatória dos produtos e do trabalho, com a relativa repartição da renda segundo as quantidades desiguais de trabalho; numa segunda fase, com a completa extinção da divisão das classes e da forma mercatória, todo o domínio político desapareceria na sansimoniana "administração das coisas" e a repartição do produto social se realizaria segundo as "necessidades" (Escritos sobre a Comuna, 1871, e Crítica do Programa de Gotha, 1875). O ponto teórico que mantém unidas a crítica do Estado e a do modo capitalista de produção é, em Marx, o fato de que a abolição do trabalho assalariado exige a apropriação e o controle direto", por parte dos produtores, das condições de trabalho e de todo o aparelho que regula a reprodução social.

Aquilo a que Marx chamou "fases" da sociedade comunista, a tradição marxista denominou-o depois "Socialismo" e "comunismo", dando ao Socialismo o significado de sociedade transitória a caminho de um modo de produção integralmente comunista.

A formação de um movimento político da classe operária que se organiza visando à gestão do Estado e à direção central da economia (deixando a questão de como chegar a esse resultado, por via pacífica ou revolucionária, às circunstâncias históricas concretas) foi o motivo principal da divergência e da luta furiosa suscitadas no seio da Primeira Internacional entre o Socialismo de Marx e Engels e o anarquismo em suas várias formas. No período da formação dos partidos socialistas nos últimos decênios do século XIX, o ponto de vista do Socialismo marxista pareceu já majoritário e consolidado, tanto que o "Socialismo libertário" de matriz anárquica foi explicitamente excluído da Segunda Internacional, em 1896.

(Continua na próxima postagem.)

20 de junho de 2008

Diferenças conceituais (V)

(Continuação da postagem anterior.)

SOCIALISMO

I. SIGNIFICADO DO TERMO; SOCIALISMO E COMUNISMO. Em geral, o Socialismo tem sido historicamente definido como programa político das classes trabalhadoras que se foram formando durante a Revolução Industrial. A base comum das múltiplas variantes do Socialismo pode ser identificada na transformação substancial do ordenamento jurídico e econômico fundado na propriedade privada dos meios de produção e troca, numa organização social na qual: a) o direito de propriedade seja fortemente limitado; b) os principais recursos econômicos estejam sob o controle das classes trabalhadoras; c) a sua gestão tenha por objetivo promover a igualdade social (e não somente jurídica ou política), por meio da intervenção dos poderes públicos. O termo e o conceito de Socialismo andam unidos, desde a origem, com os de Comunismo (v.), numa relação mutável que ilustraremos sinteticamente.

Embora tenham sido usadas às vezes para designar, por exemplo, o contratualismo por escritores italianos do século XVIII e do início do XIX (F. Facchinei, A. Buonafede, G. Giuliani), as palavras "socialismo" e "socialista" adquiriram seu sentido moderno nos programas de cooperação entre os operários e nos de gestão comum dos meios de produção propugnados pelos owenianos na segunda metade da década de 1820-1830, sendo, em seguida, largamente empregados nesse sentido na década seguinte, na Inglaterra e na França: o órgão oweniano "The New Moral World" admitia a expressão organ of socialism em fim de 1836; em 1841, R. Owen escrevia o opúsculo O que é o Socialismo?, e o sansimoniano P. Leroux contrapunha o Socialismo ao individualismo no artigo sobre o individualismo e o Socialismo, publicado em 1833, na Revue Enciclopédique; nos mesmos anos, "Socialismo" era usada pelos fourieristas como sinônimo de "escola societária". Em 1835, o estudioso francês L. Reybaud publicava na Revue des Deux Mondes uma série de artigos, reunidos depois sob o título Estudos sobre rei armadores ou socialistas modernos (Paris, 1842-1843), e o alemão L. von Stein publicava em 1842, em Leipzig, Socialismo e comunismo na França de hoje, uma obra que, embora crítica em relação às doutrinas socialistas, contribuía notavelmente para a sua difusão na Alemanha. No fim da década de 1830 começava a ser usado na França, por E. Cabet e outros, o termo "comunismo" como equivalente a "Socialismo" ou a "comunitarismo". Mas, na década de 1840, as palavras "comunismo" e "Socialismo" acabaram, pelo menos em parte, por indicar variações diversas do movimento que denunciava as condições dos operários no desenvolvimento da sociedade industrial, se opunha ao liberalismo político e econômico e ao individualismo, apresentava um projeto de uma reconstrução da sociedade em bases comunitárias e promovia formas associativas de vários gêneros (sindicais, políticas, experiências cooperativistas e comunitárias) para realizar as novas idéias. Prova dessa divergência de significados é a declaração de F. Engels no prefácio ao Manifesto do partido comunista, escrita para a edição inglesa de 1888 (e repetida com palavras quase idênticas na edição alemã de 1890): "Em 1847, apontavam-se como socialistas, de um lado, os seguidores de diversos sistemas utópicos: discípulos de Owen na Inglaterra, de Fourier na França, uns e outros já reduzidos ao estado de simples seitas em via de gradual extinção; de outro lado, os charlatanismos sociais mais diversos... em ambos os casos, tratava-se de homens alheios ao movimento operário que procuravam mais que tudo o apoio das classes 'instruídas'. Toda a fração da classe operária que se tinha convencido da insuficiência das revoluções unicamente políticas e proclamara a necessidade de uma transformação geral da sociedade se dizia comunista. Era um tipo de comunismo grosseiro, apenas esboçado, puramente instintivo; visava, todavia, ao essencial e teve força suficiente entre a classe operária para dar origem ao comunismo utópico, ao de Cabet na França e ao de Weitling na Alemanha. Portanto, em 1847, o Socialismo era um movimento burguês, o comunismo um movimento da classe operária".

Afastada, com o fracasso da revolução de 1848, a possibilidade de pôr em prática os programas socialistas, na segunda metade do século XIX, a contraposição de significados entre "Socialismo" e "comunismo" perdeu importância: o problema principal era o de constituir organizações operárias autônomas e de obter para elas o reconhecimento dos direitos elementares de associação e de imprensa, a ampliação do direito de voto para além dos limites consistórios dos ordenamentos liberais, o direito à greve e à contratação sindical. "Associação Internacional dos Trabalhadores" chamou-se a Primeira Internacional, fundada em 1864, e partidos "operários", "socialistas", "social-democráticos", "laboristas", as organizações políticas dos trabalhadores que surgiram, em bases nacionais, a partir dos anos de 1870 e se coligaram por meio da Segunda Internacional, nascida em 1889.

Com a desintegração da frente socialista na Primeira Guerra Mundial e a revolução de 1917 na Rússia, o contraste entre "Socialismo" e "comunismo" foi reatualizado pelo leninismo: o partido bolchevique assumiu a denominação de Partido Comunista (bolchevique) em 1918, invocando polemicamente o conteúdo revolucionário original do Manifesto e o rompimento com as posições reformistas majoritárias nos partidos socialistas europeus.

(Continua na próxima postagem.)

19 de junho de 2008

Diferenças conceituais (IV)

(Continuação da postagem anterior.)

VI. O comunismo marxista. Também a concepção comunista de Marx (1818-1883) e de Engels (1820-1895) é estritamente conexa e tem como fundamento essencial a organização industrial do mundo moderno. De fato, uma das características básicas da concepção marxista é que ela não faz nenhuma condenação moralista da burguesia, antes, pelo contrário, celebra e exalta em tons ditirâmbicos sua função histórica. Isso é bem evidente no Manifesto do partido comunista (1848), no qual se afirma que há uma diferença fundamental entre a burguesia e as classes préburguesas que dominaram nos séculos passados: enquanto a condição de existência das classes pré-burguesas era a imutável conservação do antigo modo de produção, a burguesia, ao contrário, não pode existir sem revolucionar continuamente os instrumentos de produção; e por conseqüência as relações de produção e, também, todo o conjunto de relações sociais. Essa ação incessante dissolve quer as estáveis e enferrujadas condições de vida quer as opiniões e idéias tradicionais, enquanto as novas envelhecem antes de terem conseguido formar os ossos.

Além disso, a burguesia mostrou, pela primeira vez, do que é capaz a atividade humana; criou maravilhas superiores às das pirâmides do Egito, dos aquedutos romanos e das catedrais góticas; realizou expedições maiores do que as migrações dos povos e as Cruzadas. Ela modificou a face da Terra numa medida que não tem precedentes na história humana. Realizou pela primeira vez uma verdadeira unificação do gênero humano e criou um mundo à própria imagem e semelhança. A necessidade de mercados cada vez mais amplos para os seus produtos a levou para todo o globo terrestre.

Aperfeiçoando rapidamente todos os instrumentos da produção, tornando infinitamente mais rápidas as comunicações, impeliu para a civilização também as nações mais bárbaras. Os módicos preços de suas mercadorias foram a artilharia pesada com que ela derrubou todas as muralhas chinesas.

Com a criação do mercado mundial, a burguesia tornou cosmopolitas a produção e o consumo de todos os países; aniquilou as antigas indústrias nacionais e as suplantou com novas indústrias, que não transformam mais matérias-primas indígenas, mas matérias-primas provenientes das regiões mais remotas, e cujos produtos não se consomem mais somente num país mas em todos os países do mundo. Cessa, dessa forma, qualquer isolamento local e nacional e é substituído por um comércio universal, e por uma dependência universal das nações umas às outras.

Mas a burguesia, que suscitou como que por encanto tão potentes meios de produção e de intercâmbio, assemelha-se ao feiticeiro, que não consegue mais dominar as potências subterrâneas por ele evocadas. As modernas forças produtivas revoltam-se contra as modernas relações de produção, aquelas relações de propriedade que são as condições de existência da burguesia e de seu domínio as quais condenam a grande maioria da população a uma extrema indigência e a uma progressiva exclusão dos benefícios da enorme riqueza material produzida. Esse contraste se manifesta nas crises comerciais, que em seus ciclos periódicos colocam em perigo, de forma cada vez mais ameaçadora, a existência de toda a sociedade burguesa. Nas crises explode uma epidemia social, que em qualquer outra época teria parecido um contra-senso: é a epidemia da superprodução. As forças produtivas tornaram-se potentes demais e as relações burguesas demasiado estreitas para consumir as riquezas produzidas.

A burguesia supera as crises, de um lado, destruindo à força uma grande quantidade de forças produtivas e, por outro lado, conquistando novos mercados e explorando mais intensamente os mercados já existentes.

Dessa maneira, porém, ela prepara crises mais extensas e mais violentas e reduz os meios para prevenir as crises futuras. As armas com que ela derrubou o feudalismo agora estão voltadas contra ela e a levam inexoravelmente para a decadência e a morte.

Essa é, em grandes linhas, a parábola traçada no Manifesto, a propósito da evolução histórica da burguesia. A sentença, que é pronunciada contra essa classe, de fato não tem nada de moralista, não está absolutamente baseada sobre uma opção de tipo ético, sobre um "ter que ser", mas é vista como o resultado inevitável de um processo objetivo, material-social, em tudo e por tudo semelhante a um processo de história natural.

A análise marxista da evolução burguesa ficaria, porém, muito incompleta se não se tivesse presente o esquema dicotômico (isto é, baseado somente em duas classes sociais), que constitui um de seus elementos mais essenciais. Segundo Marx, o capitalismo, na sua ascensão, aniquila progressivamente as classes intermediárias e as proletariza: o número dos operários está, assim, destinado a aumentar constantemente e, no estádio mais alto do desenvolvimento capitalista, defrontamse somente duas classes: burguesia e proletariado.

É esse um ponto nevrálgico da teoria marxista: se de fato, como Marx dá por demonstrado, a classe burguesa se distingue de todas as precedentes classes dominantes, porque não está em condições de assegurar a seus escravos nem a existência dentro dos limites da escravidão, já que é obrigada a deixá-los cair em condições tais de modo a ter de alimentá-los em vez de ser por eles alimentada; e se é igualmente verdade que a classe operária é destinada a se tornar, por causa da proletarização das classes intermediárias, a grande maioria da população, então a desapropriação dos desapropriadores será um fato absolutamente necessário e inevitável. "Todos os movimentos que se verificaram até agora -- lê-se no Manifesto -- foram movimentos de minoria -- ou no interesse de minorias. O movimento proletário é o movimento independente da enorme maioria no interesse da enorme maioria".

Esse caráter largamente majoritário do movimento proletário assegura, segundo Marx, que a revolução socialista e a fase da "ditadura do proletariado", que a ela se seguirá, embora caracterizadas por medidas violentas e coercitivas (em primeiro lugar da destruição da máquina estatal burguesa, instrumento da ditadura da burguesia: (v. Marxismo) serão sustentadas pela grande maioria da população; e as próprias medidas coercitivas terão uma área de aplicação, restrita em termos gerais, e serão, portanto, temporárias. Por isso, Marx foi sempre um crítico firme e resoluto das concepções jacobino-blanquistas: para ele, a revolução proletária pode realizar uma transformação comunista da sociedade somente quando a evolução capitalista tiver atingido seu cume; qualquer tentativa de apressar arbitrariamente os tempos da revolução levaria somente ao insucesso ou à adoção de medidas terroristas, que descaracterizariam a própria revolução.

Mas o desenvolvimento capitalista plenamente generalizado constitui o pressuposto essencial da concepção marxista também sob outro aspecto: segundo Marx, de fato, somente a grande indústria realiza aquele enorme aumento de riqueza social que pode tornar possível a aplicação da regra -- de cada um segundo suas capacidades e a cada um segundo as necessidades.

É preciso ter presente, a esse propósito, que Marx considera uma característica negativa da literatura socialista e comunista que o antecedeu o fato de ela propugnar "um ascetismo universal e uma rudimentar tendência a igualar tudo". Esse tema, já desenvolvido nos Manuscritos econômico-filosóficos de 1844, percorre todas as obras de Marx até a Crítica do programa de Gotha: o direito igualitário burguês é abstratamente nivelador, porque aplica a todos os homens uma medida igual, sem ter em conta suas diferenças físicas, familiares, intelectuais, etc. Na sociedade comunista, o augusto direito burguês será superado e cada um dará segundo as próprias capacidades e receberá segundo suas necessidades. Para atingir esse objetivo é, porém, necessário que as forças produtivas atinjam o máximo desenvolvimento e as fontes da riqueza social produzam com toda sua plenitude.

VII. Kautsky e a polêmica com os bolcheviques. A crítica lançada por Kautsky contra Lenin e os bolcheviques que "forçaram" o processo histórico, apressando arbitrariamente suas etapas e encaminhando o processo revolucionário num país atrasado, é, portanto, uma crítica fiel à inspiração mais profunda do marxismo. Segundo Kautsky, quanto mais capitalista é um Estado e quanto mais democrático tanto mais ele se encontra próximo ao socialismo: quer porque uma indústria capitalista altamente desenvolvida significa alta produtividade, trabalho socializado, proletariado numeroso, quer porque quanto mais um Estado é democrático tanto melhor organizado e treinado é o seu proletariado.

Os bolcheviques, ao contrário, têm segundo Kautsky uma concepção essencialmente jacobino-blanquista da ditadura do proletariado, concepção que se manifesta no fato de eles basearem seu pro jeto revolucionário não sobre um adequado desenvolvimento econômico-industrial e político, mas sobre um voluntarismo abstrato. O domínio dos bolcheviques se configura, assim, necessariamente, como uma ditadura de minoria, e seu êxito será inevitavelmente um regime fundado nos meios de controle democráticos e policiais.

Para Kautsky, ao contrário, a ditadura proletária deve ser o poder do proletariado conseguido por meio da conquista da maioria parlamentar: essa maioria não deve suprimir nem limitar as liberdades civis e políticas, deve verificar periodicamente as bases do próprio consenso por meio de livres eleições e pode recorrer a meios coercitivos só e exclusivamente contra aqueles movimentos e grupos minoritários que eventualmente se oponham com a violência ao Governo legal da maioria socialista. Dessa forma, Kautsky retorna e aprofunda a inspiração antijacobina e antiblanquista (v. Blanquismo) do pensamento de Marx, embora o inove num ponto essencial: enquanto Marx sempre achou necessária a superação da democracia representativa ou delegada, e a sua substituição por uma democracia direta, Kautsky acha, por sua vez, que a democracia representativa seja um instrumento fundamental a ser fortalecido, mas não substituído por elementos de democracia direta ou participativa.

Asperamente combatida por Lenin e pelos bolcheviques, como também pelos partidos baseados no leninismo, a concepção do "renegado" Kautsky conseguirá uma revanche histórica vários decênios mais tarde, quando alguns partidos comunistas da Europa ocidental se afastarão do leninismo e da URSS e indicarão, no rigoroso respeito às liberdades civis e políticas, no livre confronto parlamentar e nas regras de uma sociedade pluralista, o quadro essencial e insubstituível interno de onde encaminhar e concluir um processo de transformação socialista e comunista da sociedade.

Mas, para a evolução do movimento comunista a partir da revolução russa e da Terceira Internacional até os nossos dias, vejam-se os verbetes: leninismo, stalinismo, trotskismo, maoísmo, eurocomunismo.

(Continua na próxima postagem.)

18 de junho de 2008

Diferenças conceituais (III)

(Continuação da postagem anterior.)

V. Fourier, Owen, Cabet e os sansimonistas. As escolas socialistas e comunistas, que floresceram no período entre o fim da Revolução Francesa e o ano de 1848, distinguem-se claramente do programa babuvista pela diversa maneira de conceber a passagem da velha para a nova sociedade: uma passagem não violenta mas pacífica, isto é, baseada essencialmente na força da convicção e do exemplo de novas comunidades harmoniosas, fundadas na cooperação e na fraterna união de seus componentes.

Charles Fourier (1772-1837) teoriza os famosos falanstérios: pequenas comunidades não mais dilaceradas pela concorrência e pelo conflito dos interesses; nelas, os indivíduos levam vida comunitária e executam todo o trabalho juntos. No interior dessas comunidades substancialmente autárquicas (o comércio exterior deve ser reduzido ao mínimo), os trabalhadores evitam também a escravidão da divisão do trabalho, passando periodicamente de uma para outra ocupação, e isso não por imposição superior, mas por livre opção. O trabalho perde, assim, todo o caráter construtivo e se torna gratificante, como o jogo das crianças.

A concepção de Robert Owen (1771-1858) apresenta algumas analogias com a de Fourier. Também Owen, de fato, planeja as comunas, isto é, vilas fundadas na cooperação, constituídas de desempregados, aos quais serão dados lotes de terra para cultivar. Tais comunas são, portanto, fundamentalmente, agrícolas, ainda que Owen não exclua determinadas atividades industriais. Além disso, as comunas trocam os produtos em excedência, e isso permitirá superar a economia de mercado. (Owen tentou efetivamente realizar os projetos próprios e, em 1825, fundou, nos Estados Unidos, a colônia de New Harmony; outras foram fundadas pelos seus seguidores. Mas, em poucos anos, tais experimentos faliram.)

Se Fourier e Owen baseiam seus projetos de regeneração da sociedade sobre pequenas comunidades, Etienne Cabet (1788-1856) projeta, em vez disso, uma organização em escala nacional. Além disso, ele é rigorosamente comunista, porque a diferença de Fourier e de Owen exclui qualquer forma, também mínima, de propriedade pessoal. Na sua imaginária Icária, Cabet prevê não somente a supressão de todas as diferenças sociais mas até das diferenças no modo de vestir. Os meios de produção devem ser de propriedade comum da coletividade, a qual elege os funcionários encarregados de elaborar os planos de produção anuais. Cada cidadão dá à coletividade uma quantidade igual de trabalho e recebe de um armazém público o necessário para a própria vida.

Também Cabet, enfim, não obstante a sua atitude de fundo muito severa e rígida (ele considera a imprensa como suspeita e não admite os partidos políticos), tem, como Fourier e Owen, uma concepção essencialmente evolucionista: a nova sociedade deve ser realizada não pela revolução, mas pela educação, convicção e exemplo.

No que diz respeito a esses autores, a escola sansimonista realiza um passo à frente essencial: conjuga estritamente os ideais socialistas e comunistas com a organização industrial do mundo moderno. Falamos de "escola sansimonista", porque na obra de Saint-Simon não existem traços de antagonismos entre operários e empresários, tanto que ele os indica indiferentemente com uma só palavra: les industriels. Cabe a alguns seguidores de Saint-Simon (especialmente a Bazard e Leroux) a tarefa de retomar algumas das formulações fundamentais do mestre, colocando-as, porém, dentro de um esquema sociopolítico claramente classista. Acentua-se, dessa forma, o contraste entre a propriedade privada e o funcionamento perfeito do sistema industrial: porque, enquanto a grande indústria está em condições de produzir uma quantidade enorme de riquezas, a organização social fundada sobre a propriedade privada dos meios de produção faz com que as vantagens da indústria venham sendo usufruídas somente por poucos. Daí a firme condenação, por parte dos mais radicais dos sansimonistas, da "exploração do homem pelo homem" (uma formulação que será retomada, ipsis literis, por Marx e Engels). Afirma Bazard: "Se o gênero humano está se movendo para uma condição em que todos os indivíduos serão avaliados segundo suas capacidades e remunerados segundo seu trabalho, é evidente que o direito de propriedade, como é atualmente, deve ser abolido, porque, dando a uma certa classe de indivíduos a possibilidade de viver do trabalho dos outros e em completa passividade, isso perpetua a exploração da parte mais útil da população, aquela que trabalha e produz, em favor daqueles que somente consomem". Trata-se, portanto, de transferir ao Estado, transformando em associação de trabalhadores, aquele direito de herança que constitui o fundamento da propriedade privada, de modo que terra e capital se tornem verdadeiramente instrumentos de trabalho e dos produtores.

(Continua na próxima postagem.)

17 de junho de 2008

Diferenças conceituais (II)

(Continuação da postagem anterior.)

III. Ideais comunistas na Revolução Inglesa. Na Idade Moderna, os ideais comunistas não são propugnados somente por personalidades eminentes e por pensadores de profissão, mas emergem também do íntimo de grandes movimentos revolucionários populares. É esse o caso dos "verdadeiros niveladores", que constituem a ala esquerda dos "niveladores", isto é, do movimento radicaldemocrático surgido de 1647 a 1650 nas fileiras do exército de Cromwell. De acordo com as palavras de Sabine, pode-se dizer que enquanto os niveladores são um primeiro exemplo de democracia burguesa radical com objetivos essencialmente políticos (soberania popular manifestada pelo sufrágio universal masculino, parlamento, república, tolerância religiosa, etc.), os verdadeiros niveladores ou cavadores podem ser considerados, antes, os primeiros representantes do comunismo "utópico", pelo fato de considerarem todas essas formas políticas como superficiais, porque não corrigem as desigualdades do sistema econômico.

Enquanto os niveladores são expressão especialmente da pequena burguesia, os cavadores pertencem a classes e a grupos reduzidos à miséria total. Ambos partem mais ou menos das mesmas premissas ou princípios ideais (os direitos naturais), mas deles tiram conseqüências muito diferentes.

Os cavadores aparecem pela primeira vez em 1649, quando um grupo deles entrou a cultivar terreno público (de onde, exatamente, o nome de cavadores) para distribuir seu produto aos pobres. O experimento durou apenas um ano, porque seus promotores foram dispersos. A doutrina do movimento pode ser reconstruída por meio dos opúsculos de seu principal expoente, Gerard Winstanley. Enquanto os niveladores acham que a lei de natureza se expressa numa série de direitos naturais, de que o direito de propriedade é um dos mais importantes, os cavadores, ao contrário, entendem a lei da natureza como a afirmação de um direito comum aos meios de subsistência. Portanto, eles propugnam a abolição da propriedade privada -- fonte de todas as injustiças e de todos os males -- e especialmente da propriedade fundiária, sua expressão mais significativa. A terra, dada por Deus a todos os homens em comum, deve ser cultivada em comum, de modo que cada um possa conseguir produtos dela de acordo com suas necessidades.

IV. Revolução Francesa e babuvismo. Influência de Rousseau e Morelly. Os ideais comunistas emergem também no seio da grande Revolução Francesa e encontram no movimento babuvista uma expressão, não somente teórica e literária, mas também concretamente política.

A formação de François-Noêl Babeuf (1760-1797) foi influenciada profundamente pela leitura de Rousseau e de Morelly. É verdade que Rousseau, diferentemente de Morelly, não tinha pregado o comunismo dos bens (embora no Projeto de constituição para a Córsega tivesse previsto uma ampla socialização de propriedade, em contraste com a preferência, expressada nas suas outras obras, pela pequena propriedade independente: "Longe de desejar que o Estado seja pobre, prefiro, ao contrário, que ele seja o dono de tudo e os indivíduos repartam em comum a riqueza somente em proporção com o seu trabalho"), todavia, no Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens, Rousseau tinha visto na instituição da propriedade privada o ponto culminante de um fatal processo de degeneração, que tinha afastado os homens do estado de natureza e tinha lançado as premissas para aquele iníquo contrato social, verdadeiro ardil arquitetado pelos ricos, do qual surgiram as sociedades civis modernas.

Também Morelly tinha considerado a propriedade privada como a origem de todos os males ("tirem a propriedade cega e o interesse cruel que a acompanha... não haverá mais paixões furiosas, nem ações ferozes, nem noções ou idéias de mal moral") e, mais radical do que Rousseau, tinha proclamado a sua supressão. A sociedade perfeita se configura, então, aos olhos de Morelly, como uma sociedade integralmente planificada, na qual todos os cidadãos teriam levado os próprios produtos aos armazéns públicos, que seriam distribuídos de acordo com as necessidades.

Análoga planificação Morelly previa para a esfera intelectual e espiritual. A comunidade estabeleceria o número daqueles que se dedicassem às ciências e às artes e não se teria ensinado outra filosofia moral a não ser aquela que constitui a base das leis. "Haverá uma espécie de código público de todas as ciências, ao qual, no que concerne à metafísica e à ética, nunca será acrescentado nada além dos limites prescritos pelas leis: serão acrescentadas somente as descobertas físicas, matemáticas e mecânicas confirmadas pela experiência e pela razão".

Essas idéias encontram-se no babuvista Manifeste des plébéiens (1975), no qual se proclama: já que a propriedade privada introduz a desigualdade e de outro lado a "lei agrária" -- isto é, a divisão da propriedade fundiária em partes iguais --, não poderia "durar mais que um dia" ("já imediatamente após sua instituição voltaria a surgir a desigualdade"); fica só uma via a percorrer: "instaurar a administração comum; suprimir a propriedade privada; destinar cada um de acordo com suas aptidões e a profissão que conhece; obrigá-lo a depositar o fruto in natura no armazém comum e criar uma administração de subsistência que, registrando todos os indivíduos e todas as coisas, fará dividir estas últimas dentro da mais escrupulosa igualdade".

Conforme frisou G. Lefebvre, o programa babuvista é essencialmente um comunismo distributivo, embora Babeuf advirta, às vezes, sobre a necessidade de uma organização coletiva no trabalho da terra. Além disso, como ressaltou Saboul, as condições da época, a saber, o fraco grau da concentração capitalista e a ausência de qualquer produção de massa, fazem com que o programa babuvista esteja baseado essencialmente nas formas econômicas artesanais, mais do que nas industriais, e insista mais na fraqueza e estagnação das forças produtivas, do que na expansão e desenvolvimento destas últimas.

É, todavia, evidente a grande importância do programa de Babeuf e de seus companheiros (Antonelle, Buonarroti, Darthé, Félix Lepeletier, Sylvain Maréchal): ele não se reduz a uma expressão doutrinária, mas com a "Conjuração dos iguais" entra na história política. Além disso, ele introduz na tradição comunista duas idéias muito importantes, destinadas a um desenvolvimento de grande relevância: a instauração da democracia direta e o domínio da minoria iluminada. Na concepção de Babeuf e de Buonarroti, de fato, o corpo legislativo deve ser submetido ao mais rigoroso controle por parte do povo e ao seu direito de veto; na prática, o legislativo, embora eleito pelo povo, tem somente o direito de propor as leis, enquanto a decisão definitiva cabe só e exclusivamente ao próprio povo. De outro lado, segundo Babeuf e Buonarroti, a grande maioria do povo é dissuadida do caminho do bem e da virtude, é obcecada pelos interesses particulares e enganada pelas astúcias dos reacionários e dos intrigantes. Daí a tarefa insubstituível de uma minoria iluminada que leve a revolução a seu fim: "Esta difícil tarefa pode caber somente a alguns cidadãos sábios e corajosos, que, profundamente imbuídos de amor pelo país e pela humanidade, sondaram já longamente as causas dos males públicos, libertaram-se dos preconceitos e dos vícios comuns de sua idade, e superaram a mentalidade dos contemporâneos"... A propósito do papel e das funções dessa minoria iluminada, Babeuf fala de "ditadura da insurreição", para a qual quer dar o significado de que os revolucionários não devem hesitar em adotar medidas políticas extremas para garantir o sucesso da própria obra. Está aqui o primeiro germe de uma idéia que terá tanta importância na concepção de Marx e Engels.

(Continua na próxima postagem.)

16 de junho de 2008

Diferenças conceituais (I)

COMUNISMO

I. As origens do ideal comunista: Platão e o comunismo evangélico. Costuma-se fazer remontar a Platão a primeira formulação orgânica de um ideal político comunista. Na República, de fato, na qual traça o modelo da cidade ideal, ele prevê a supressão da propriedade privada, a fim de que desapareça qualquer conflito entre o interesse privado e o Estado, e a supressão da família, a fim de que os afetos não diminuam a devoção para o bem público. O acasalamento dos sexos deve ser temporário e os filhos devem ficar desconhecidos aos pais: o Estado proverá a sua educação e criação.

Lembre-se, porém, que Platão, ao traçar esse modelo, não se refere à totalidade do povo, mas somente às classes superiores ou aos dirigentes do Estado: os guerreiros e os guardiães. Para as classes inferiores, em vez disso, ou seja, para aqueles que são destinados à agricultura, aos serviços manuais e ao comércio, ele prevê a organização econômica e familiar tradicional. Como frisa Gomperz, na República, a emancipação dessas classes não se questiona; a elas não somente incumbe a obrigação de fornecer às classes superiores os meios de subsistência, mas são colocadas perante estas últimas numa relação de rigorosa dependência.

É no âmbito da civilização cristã que florescem os primeiros ideais comunistas, dirigidos não a cada grupo ou a cada classe da população, mas a todos os homens. Nos Evangelhos não faltam passagens nas quais a riqueza é considerada má em si (Mateus, VI, 19-21) e os pobres são proclamados os únicos que poderão entrar no reino de Deus (Lucas, VI, 20); analogamente, em Marcos (X, 21,25) afirma-se que é preciso despojar-se de tudo aquilo que se possui e dá-lo aos pobres, porque "é mais fácil um camelo passar pelo fundo de uma agulha do que um rico entrar no reino de Deus".

É verdade que, na formulação paulina, esses motivos de crítica social próprios do cristianismo primitivo são notavelmente alternados e temperados: "cada um fique na condição que o senhor lhe fixou" -- lê-se na I Coríntios, VII, 20-24 -- e o escravo não tente mudar o próprio estado, porque "perante o Messias todo escravo é um liberto e todo homem livre é um escravo"; e em Efésios, VI, 5-8, proclama-se: "Escravos, obedecei a vossos patrões com devoção e temor e servi-os com cuidado, como se se tratasse do próprio Senhor e não de homens". Apesar dessas colocações, o ideal de vida em comum, vivida na pobreza e na caridade, e do conseqüente desapego dos bens terrenos, operará potentemente no cristianismo dos primeiros séculos, encontrando concreta manifestação nas ordens monásticas e em formulações doutrinais do tipo daquela de Santo Ambrósio: "a natureza colocou tudo em comum para uso de todos; ela criou o direito comum; a usurpação criou o direito privado". Ideais e posições que, com o mundanizar-se da Igreja e com o seu progressivo identificar-se com as instituições sociais e políticas dominantes, são assumidos pela espiritualidade popular e pelos movimentos heréticos: assim, os Cátaros (séculos XII-XIII) exaltam a pobreza e a castidade, proclamam a necessidade de pôr tudo em comum e de viver do próprio trabalho; do mesmo modo os Valdenses repudiam a propriedade privada, etc. Também na pregação de Joaquim de Fiore (século XII) e na sua profecia de um iminente advento do reino do Espírito Santo, estão presentes ideais de pobreza e de castidade, de fraternidade e de comunhão universais, sem mais lutas para o meu e o teu. Influências fiorianas atuaram sobre os franciscanos intransigentes, que proclamavam a proibição de possuir, e sobre o movimento comunista de frei Dolcino (1304-1307).

Mas a conexão entre espiritualidade cristã e reivindicações sociais em perspectiva comunista não percorre somente toda a Idade Média, mas chega até a época moderna: basta pensar no papel desempenhado pelos anabatistas na guerra dos camponeses (1524-1525) e na pregação de Thomas Münzer para um retorno à comunhão e à igualdade do cristianismo das origens.

II. Utopias comunistas da idade moderna: More e Campanella. Não é por acaso que as primeiras grandes utopias comunistas, formuladas por eminentes pensadores, apareçam nos séculos XVI e XVII, isto é, numa época que assiste à progressiva decadência dos modos de produção e de vida pré-burgueses e ao afirmar-se das classes burguesas. E também não é por acaso que a primeira grande utopia dos tempos modernos -- que deu nome a todas as sucessivas -- seja obra de um inglês, Thomas More (1478-1535). Na Inglaterra, de fato, já no século XV, verifica-se uma profunda transformação econômico-social: inteiras comunidades rurais são expulsas dos campos que cultivavam há tempo imemorável, transformados em pastagens para as ovelhas, a fim de fornecer lã para as manufaturas têxteis. Parte desses camponeses expulsos dos campos entram a trabalhar como assalariados, em condições terríveis nas novas manufaturas; parte constitui bandos de vagabundos famintos, entregues à rapina e às pilhagens: uma gravíssima calamidade social que as autoridades sociais enfrentam com energia e dureza inflexível.

É nesse quadro que tem de ser analisada a Utopia (1516) de More, a qual contém essa clara afirmação: "Parece-me que em todo lugar em que vigora a propriedade privada, onde o dinheiro é a medida de todas as coisas, seja bem difícil que se consiga concretizar um regime político baseado na justiça e na prosperidade"... De fato, na ilha da Utopia, a propriedade privada e o dinheiro são abolidos e todos os bens imóveis (terras, matérias-primas, oficinas, etc.) pertencem ao Estado. Os cidadãos são igualmente laboriosos e felizes: cada um deles não trabalha mais do que seis horas por dia e isso é suficiente para satisfazer as necessidades de todos, porque na Utopia não há ociosos que devem ser sustentados pelos outros. Cada família é livre de retirar do fundo comum os bens necessários; isso não aumentará o consumo, porque na Utopia não existem gêneros de luxo e ninguém tem interesse em acumular bens em excedência, porque todos sabem que o necessário não vai faltar nunca.

Além disso, More prevê para a Utopia uma organização política e administrativa de tipo abertamente democrático, em que todas as magistraturas responsáveis de superintender a aplicação das leis são eletivas, enquanto os negócios econômicos e sociais (duração do trabalho e sua distribuição, quantidade e qualidade de produção, etc.) são geridos por uma assembléia eleita por todos os utopistas. Na Utopia, porém, não é abolida a escravidão: aos escravos -- constituídos por cidadãos responsáveis por algum crime punido com um período de escravidão, por prisioneiros de guerra, etc. -- são destinados os trabalhos mais humildes e repugnantes.

A convicção de que se regula racionalmente o trabalho e se produz não para o lucro e o enriquecimento dos indivíduos mas, imediatamente, para as necessidades da comunidade, essa terá bens em abundância, volta a estar presente também na obra do monge Tommaso Campanella (1568-1639). Na Cidade do Sol (publicada postumamente em 1643), o autor descreve uma ilha organizada em forma comunista, onde não existem ociosos, tanto que quatro horas de trabalho por habitante são mais do que suficientes para as exigências da comunidade, e onde a produção e a distribuição dos bens são administrados pelas autoridades estatais. Além disso, Campanella prevê a abolição da família, porque ele acha que somente assim é possível abolir também a propriedade privada. Analogamente ao que acontece na República de Platão, os acasalamentos entre os sexos são planificados pelas autoridades estatais, que cuidarão também da educação das crianças. O chefe do Estado é eleito pelo sufrágio universal e ele, em seguida, nomeia os próprios colaboradores ou ministros.

(Continua na próxima postagem.)

13 de junho de 2008

Da circulação simples à essência do sistema (II)

(Continuação da postagem anterior.)

2. Capital: uma forma social

De um modo geral, a economia política conceitua capital como sendo: 1) ora uma soma de valores de troca e 2) ora simplesmente trabalho acumulado.

Qualquer uma dessas duas definições que se tome é insuficiente para expressar o verdadeiro conceito de capital. Marx explica por quê. "Toda soma de valores é um valor de troca e todo valor de troca é uma soma de valores. Por adição simples não se pode passar do valor de troca do capital. Na mera acumulação do dinheiro ainda não se inclui a relação de autovalorização."

A outra definição -- capital é trabalho acumulado -- se bem expressa que capital é trabalho objetivado que serve como meio para nova produção, faz do capital uma necessidade eterna que rege por igual toda forma social de produção. Marx argumenta que quando se toma em consideração a simples matéria do capital, se prescinde da determinação formal que faz dessa matéria capital. A outra determinação da definição citada acima é que se abstrai totalmente a substância material dos produtos e se considera o trabalho passado com seu único conteúdo.

Partir diretamente do trabalho acumulado seria considerar que o capital regeu por igual todas as formas de sociedade. Como próprio Marx diz: "é tão impossível passar diretamente do trabalho ao capital, como passar diretamente das diversas raças humanas ao banqueiro ou da natureza a maquina a vapor". Sendo assim, no conceito de capital deve-se acentuar sua determinação formal. O ponto de partida deve ser o trabalho acumulado, mas não simplesmente qualquer tipo de trabalho, e sim trabalho historicamente determinado: trabalho abstrato. Trabalho, portanto, dissociado de todos os meios e objetos de trabalho, e que, por isso, é considerado como único meio de criar riqueza.

Mas é preciso esclarecer que trabalho acumulado, aqui, é trabalho criador de valor que busca se valorizar. Valor que cria mais valor. Portanto, o conceito de capital não pode ser derivado diretamente do trabalho, e sim do valor, visto que este é a forma assumida pelo trabalho na sociedade capitalista.

3. O Capital: uma relação privada consigo mesmo

3.1. A auto-conservação do capital na e por meio da circulação

Marx diz que, para se chegar à categoria capital, deve-se partir do valor, concretamente do valor de troca já desenvolvido, isto é, do dinheiro. Mas, na circulação simples, o dinheiro, é um mero meio de troca, é um instrumento passivo, ou melhor, não é um movimento que se autodetermina.

E na circulação que o dinheiro recebe suas várias determinidades. Quanto a isso, Marx não deixa nenhuma dúvida, quando diz que "...as distintas determinidades formais que o dinheiro adquire no processo de circulação não são nada mais do que a cristalização das alterações de formas das próprias mercadorias, alterações de formas estas que, por sua vez, não são outra coisa do que a expressão objetiva das relações sociais em movimento, pelos quais os possuidores de mercadorias realizam seu metabolismo."

Na sua função de meio de troca, o dinheiro descreve o ciclo M -- D -- M. Como valor de troca absolutizado, seu ciclo é D -- M -- D. É dessa última função que se deve derivar o conceito de capital. Porque nesse ultimo ciclo tem-se apenas a forma econômica, a determinação formal da riqueza, e esse é o aspecto que se deve acentuar no conceito de capital. Que o primeiro ciclo, M -- D -- M,, não pode ser o ponto de partida para se chegar ao conceito de capital é claro. Esse ciclo tem como finalidade o valor de uso, portanto, um conteúdo material e não formal.

Na forma inversa, D -- M -- D, o comprador gasta dinheiro para como vendedor receber dinheiro. Com a compra ele lança dinheiro na circulação, para retirá-lo dela novamente pela venda da mesma mercadoria. Ele, o capitalista, libera o dinheiro com a intenção de apoderar-se dele novamente. Ele é portanto apenas adiantado. O dinheiro só se transforma em capital, e assim se conserva, precisamente pelo movimento através do qual a mercadoria nega o dinheiro e o dinheiro nega a mercadoria.

3.2. O processo de reprodução do capital

A passagem do momento da conservação para o da reprodução do capital é um sério problema para a econômica política, que acredita que tal passagem, senão impossível, resulta em difícil solução. Como então o capital no seu movimento de conservação pode incluir o momento da sua reprodução? Imaginado, como faz Marx, que os capitalistas comprem suas mercadorias mais baratas para venderem mais caras, o que daí se pode esperar é que ninguém ganha nem perde adotando tal procedimento. Marx explica: "admita-se agora que seja permitido aos vendedores, por um privilégio inexplicável, vender a mercadoria acima de seu valor, a 110 quando ela vale 100, portanto com um aumento nominal de preço de 10%. O vendedor cobra uma mais-valia de 10. Mas depois de ter sido vendedor, ele se torna comprador. Um terceiro possuidor de mercadorias encontra-o agora como vendedor e goza por sua vez do privilégio de vender a mercadoria 10% mais cara. Nosso homem ganhou 10 como vendedor para perder 10 como comprador.O todo acaba redundante no fato de que todos os possuidores de mercadorias vendem reciprocamente as suas mercadorias 10% acima de seu valor, o que é inteiramente o mesmo que venderem suas mercadorias por seus valores".

12 de junho de 2008

Da circulação simples à essência do sistema (I)

Da Circulação Simples à Essência do Sistema

1. Transformação do dinheiro em capital: a porta de entrada ao mundo não (imediatamente) visível da produção capitalista.

"Transformação do dinheiro em capital" -- assim Marx intitula a seção II de O Capital. Esta seção é o que se pode chamar de "ante-sala" que nos prepara para abandonar a esfera ruidosa da circulação de mercadorias, imediatamente visível e acessível a todos os olhos, e ingressar no mundo oculto da produção capitalista, para ai desvendar o segredo da produção da mais-valia.

Quando Marx convida-nos a abandonar com ele, juntamente com o possuidor do dinheiro e o possuidor da força (lê-se capacidade) de trabalho, a esfera da circulação simples, ele está convidando esses personagens a conhecerem o lado oculto de um único e mesmo mundo: o modo capitalista de produção. Pertencentes a uma única e mesma realidade historicamente determinada, o mundo da experiência vivida e seu lado não visível, isto é, não observável e imediatamente experimentado, guardam entre si uma relação dialética que é tematizada por Marx como uma relação entre aparência e essência, ou, se preferirmos, uma relação entre a circulação simples (esfera do intercâmbio de mercadorias) e a esfera da produção.

De fato, quem se propõe a observar a sociedade capitalista, percebe que ela é fundada em relações comerciais entre os indivíduos, cujos interesses privados, particulares é o que os une e os leva a se relacionarem entre si. É no mundo das mercadorias, no mundo do mercado, e por meio dele que se tecem as relações entre os homens. Fora desse mundo as pessoas são reduzidas à mera condição de indivíduos.

Mas se todas as pessoas só são consideradas enquanto tais se proprietárias de mercadorias -- e por assim ser, somente estariam dispostas a abrir mão de suas coisas em troca de outras de igual valor, ou seja, trocando equivalente por equivalente -- cabe uma pergunta: por que certos indivíduos têm maior riqueza do que outros? No nível da consciência comum a riqueza como decorrente do fato de que certos indivíduos trabalham mais do que outros e assim puderam acumular maior riqueza. No nível de formalização científica, a resposta que se encontra na economia política não está muito distante daquela pensada pelo senso comum.

Adam Smith, por exemplo, ao explicar a formação da propriedade privada recorre a uma pretensa acumulação primitiva pessoal que ocorreu em tempos que remontam ao surgimento das sociedades agrícolas e comerciais.

Marx não contrapõem simplesmente uma teoria diferente para explicar a origem da propriedade capitalista e suas leis inerentes de apropriação e distribuição do produto. Ele parte mesmo desse solo comum que o mundo da experiência vivida e a teoria econômica partilham para explicar as diferenças de riqueza entre os indivíduos. Faz isso, obrigando a econômica política e o senso comum a refletirem sobre suas próprias categorias, que pensam a propriedade privada como resultado de uma acumulação primitiva fundada no trabalho pessoal. Parte da idéia de que o direito de propriedade apareceu originalmente fundado sobre o trabalho próprio.

Observando a dialética interna da troca de mercadorias. Essa dialética revela que cada ato de troca é um ato isolado, um ato que ocorre entre indivíduos, quer sejam eles capitalistas, trabalhadores ou simplesmente indivíduos possuidores de mercadorias. Em cada ato desse é obedecida à lei do intercambio de equivalentes para os participantes da troca, pois se assim não fossem ninguém estaria disposto a abrir mão de suas mercadorias, a não ser que o mercado não passasse de um lugar onde reinaria o roubo sistemático de todos contra todos, e ai não se poderia nem mais se falar de troca.

Não se compra e se vende só uma única vez. Com efeito, o capitalista só pode se afirmar como tal se lançar constantemente dinheiro na circulação e dela retirar mercadorias para relançá-las novamente no mercado e recuperar o que antes adiantou como dinheiro. Se ele interrompe esse movimento, seu dinheiro se estaciona e não se valoriza, e ele será engolido por aqueles que mantiveram seu dinheiro em constante movimento. Do lado do trabalhador, este precisa vender recorrentemente sua capacidade de trabalho, pois se por algum motivo ele cessa de vendê-la, não poderá ter acesso aos bens necessários à sua sobrevivência.

Essa mudança leva Marx a passar do nível da analise da troca entre indivíduos para situá-la no nível da troca entre classes sociais. Quando se passa a esse nível se descobre que a troca de equivalentes se converte numa troca de não-equivalentes. A passagem do mundo da experiência vivida pelos indivíduos para o nível em que se situam as relações entre as classes sociais significa passar da circulação simples, para a esfera da produção, ou, se preferir, passagem da aparência para a essência do sistema.

Se o capital é dinheiro e mercadoria, ele é passagem de uma forma para outra, sem se perder em nenhuma delas. A categoria capital exige uma nova categoria -- a capacidade de trabalho -- como mercadoria especial, cujo consumo, pelo capitalista, restitui o valor por ele adiantado para comprá-la acrescido de uma soma adicional de valor. Daí surge à categoria mais-valia, de onde brota a valorização do valor ou do capital adiantado pelo capitalista. Mas o valor que o capitalista adianta não se resume apenas em capacidade de trabalho: parte dele é despendido em mercadorias tais como maquinas, matérias-primas e outros meios de trabalho.

Marx passa a pensar o capital como um movimento cíclico que mostra como ele se origina da mais-valia e é, ao mesmo tempo, fonte de mais-valia. Só aí, então, fica claro como o dinheiro é transformado em capital, como por meio do capital é produzida a mais-valia e como da mais-valia é produzido capital.

(Continua na próxima postagem.)