2 de julho de 2008

Diferenças conceituais (XIII)

(Continuação da postagem anterior.)

LENINISMO

I. Do populismo ao marxismo. O Leninismo é a interpretação teórico-prática do marxismo, em clave revolucionária, elaborada por Lenin num e para um país atrasado industrialmente, como a Rússia, onde os camponeses representavam a enorme maioria da população.

Baseada nessa realidade, havia surgido uma ideologia específica, o populismo, de cuja influência nem mesmo a ala da intelligentzia, que introduziu o marxismo na Rússia, conseguiu jamais libertar-se de todo. Tanto é assim que, como escreveu há pouco um historiador comunista, até o próprio Leninismo "se caracteriza pelo seu nexo de continuidade orgânica e criativa com a experiência intelectual, primeiro, e organizativa, depois, do popularismo russo" (Strada).

Daí que, para entender o Leninismo, seja necessário remontar às causas que, embora favorecessem a penetração do marxismo na Rússia, impediram, no entanto, que ele obtivesse uma vitória definitiva sobre o populismo.

O populismo russo caracterizou-se por três elementos: 1) uma devoção mística pelo povo do campo; 2) a rejeição da industrialização por causa do preço que, na forma privatístico-concorrencial do modelo inglês, cobra das classes rurais, com a conseqüente idéia de se chegar diretamente ao socialismo, partindo da estrutura comunitária tradicional própria do campo, alicerçada na comuna rural ou obscina, pulando a etapa do capitalismo; 3) e, por último, um elemento messiâniconacionalista, que recebeu da direita eslavófila e a ela o assimila, através do qual a percepção do enorme atraso do país, tão dolorosamente sentida pelos intelectuais russos, transforma-se num sentimento compensatório de superioridade, totalmente irreal, mas nem por isso menos poderoso e eficaz como estímulo para a ação.

Quando, após décadas de preparação teórica, no começo dos anos 70 do século passado, o movimento populista se tornou uma realidade no seu encontro com o povo, de quem acabaria tomando o nome, de imediato sobreveio a decepção e a crise. Os camponeses, com efeito, receberam pessimamente os idealistas entusiasmados que os procuravam, na esperança de despertar e desenvolver neles a maturidade civil e política, a fim de induzi-los a se levantarem contra a autocracia. Nem por isso, o populismo abandonou sua fé nas potencialidades de renovação do camponês russo; porém, tomou consciência da importância das instituições liberais para a realização de um contato fecundo entre intelectuais e povo, que sem este contato acabaria ficando subjugado pelo próprio atraso cultural e por uma desconfiança instintiva com relação ao novo. Nasceu assim a Narodnaja Volja, organização terrorista que tinha como objetivo atemorizar a autocracia através de atentados, a fim de levá-la a conceder uma Constituição de tipo ocidental. Essa organização secreta, que reunia sob uma disciplina rígida uma elite de origem burguesa e até nobre, se tornou o modelo do futuro partido leninista. Quando, em 1887, fracassou o atentado contra Alexandre III, após o sucesso ocorrido no atentado contra Alexandre II em 1881, que, todavia, não produziu os resultados políticos esperados, entre os conjurados que tombaram como vítimas da repressão estava Alexandre Uljanov. Vladimir Uljanov, mais tarde chamado Lenin, então com dezessete anos, começou, assim, seguindo as pegadas do irmão mais velho, sua carreira revolucionária como populista, tanto que nunca deixou de manifestar sua admiração pelo instrumento organizacional criado pelo populismo, embora a morte do irmão o tenha levado a questionar a estratégia populista, fundamentada exclusivamente em grupos sectários, bem como a prática dos atentados.

Nesse período, ainda antes do atentado contra Alexandre II, um pequeno núcleo de populistas, guiados por Plechanov (1856--1918), tinha rejeitado, como estéril, o caminho do terrorismo, transferindo suas esperanças da classe camponesa, que havia se revelado por assim dizer indigna dessas esperanças, para a classe operária, ainda nos primórdios na Rússia, cuja segura e objetiva vocação revolucionária era garantida pelo marxismo, importado do Ocidente.

II. O dilema do marxismo russo. A tarefa teórica do núcleo marxista foi, em primeiro lugar, demonstrar que um futuro próximo de cunho capitalista aguardava a Rússia, com a conseqüente formação de uma numerosa e combativa classe operária. Surgiu daí uma longa polêmica com os populistas, que se arrastou por décadas. Os populistas negavam a possibilidade de um desenvolvimento de moldes capitalistas no próprio país, tendo em vista a inexistência de um mercado interno por causa da extrema pobreza dos camponeses, isto é, de 90% da população, e a nãodisponibilidade de mercados externos, já totalmente ocupados pelas maiores
potências industriais.

Quando Lenin, levado pela necessidade de uma certeza quase mística da inevitabilidade da revolução, chegou ao marxismo, teve oportunidade de se fortalecer na sua posição, desfechando os últimos e definitivos golpes nesta polêmica. Em seus escritos juvenis, tendo como referencial teórico o segundo livro do Capital, pouco conhecido, enquanto os populistas se referiam mais ao primeiro, Lenin demonstrou, de maneira inquestionável, o caráter econômico e nãogeográfico do conceito de mercado, cuja amplitude não pode ser medida em quilômetros quadrados nem, em última análise, em milhões de habitantes, mas tem que ser vista em função da divisão social do trabalho, que, por sua vez, depende da evolução científica e tecnológica.

Na hora, Lenin não percebeu que, desta forma, tinha ido muito além do alvo, apresentando uma imagem da dinâmica capitalista isenta de insuperáveis contradições internas, capazes de provocar seu fatal colapso. Homem de ação, levado conseqüentemente a enfrentar as dificuldades só na medida em que as mesmas iam se manifestando, é fácil compreender que, diante do fator evidente da não-resposta da classe camponesa à missão revolucionária, que os populistas a ela queriam atribuir, Lenin não tivesse nenhuma dúvida teórica quanto à possibilidade de a classe operária não se revelar, também, à altura desta missão.

O transplante do marxismo para a Rússia levantou mais outra dificuldade, desta vez inerente ao conjunto dos postulados fundamentais da doutrina e, conseqüentemente, inevitável. Subordinando rigorosamente o advento do socialismo ao pleno desenvolvimento da fase capitalista-burguesa, principalmente após a polêmica que, na Europa dos anos 70, o tinha colocado em contraposição ao voluntarismo anarquista, o marxismo impunha aos socialistas russos o ônus de se baterem por uma revolução apenas burguesa, de abrirem caminho à plena evolução do sistema capitalista que, por definição, um socialista deveria combater sem trégua. A enorme disparidade entre a parte atrasada e a parte mais moderna da economia russa, além disso, afastava por algumas gerações a próxima revolução, justamente a socialista.

O marxismo, assim, mesmo dando a impressão de satisfazer a necessidade da certeza na revolução, trazia em si o sacrifício de um componente tanto ou mais indispensável na psicologia do autêntico revolucionário: a impaciência, isto é, o desejo de viver como protagonista o evento palingenético. Tal fato explica por que, apesar de ter visto suas teorias amplamente confirmadas pelo desenvolvimento capitalista ocorrido na Rússia no período que vai entre o fim e o começo dos séculos XIX e XX, o marxismo não conseguiu derrotar completamente o populismo. A impaciência mantinha nele uma parcela relevante das forças revolucionárias, que convergiram mais tarde no partido, que se chamou justamente socialista-revolucionário, destinado a desempenhar um papel não-secundário em 1917.

De qualquer forma, diante do dilema de, ou trair o espírito científico do marxismo, inserindo nele a antiga idéia populista do salto da fase capitalista, ou aceitar o marxismo até as últimas conseqüências, sacrificando a impaciência pela revolução socialista, Lenin não teve dúvidas, e foi marxista ortodoxo. As tarefas primordiais e indiscutíveis do partido social-democrático russo eram, para Lenin, o desenvolvimento do capitalismo ao nível das estruturas e o desenvolvimento da democracia parlamentar ao nível das superestruturas. Talvez seja possível notar, na obra conclusiva do primeiro período de sua militância marxista. O desenvolvimento do capitalismo na Rússia (1899), um certo esforço para provar que o país já era mais capitalista, e portanto mais próximo ao socialismo, do que era realmente.

III. O debate acerca do revisionismo e o nascimento do leninismo. Nos últimos anos do século, espalhou-se na Rússia o conhecimento do revisionismo bernsteiniano, logo assumido por diversos intelectuais russos. Foi neste momento que teve início, em Lenin, a crise que irá se concluir em 1902 com o Que fazer?, destinado a se tornar o texto-base de uma ideologia, justamente o Leninismo.

O Revisionismo (v.) questionava bem do interior do próprio marxismo, pela ação de Bernstein, um dos maiores colaboradores ainda vivos dos dois mestres, a vocação revolucionária da classe operária, fundamentando-se em, pelo menos, meio século de experiência ocidental, assim como os marxistas russos, nisto "revisionistas" do populismo, tinham anteriormente negado a vocação revolucionária da classe camponesa. A esta altura, estava comprometida também aquela certeza que o marxismo parecia ter assegurado. O gradualismo, em cujo nome os marxistas russos tinham subordinado a revolução socialista à burguesa, entrava desse jeito em crise. O advento da democracia política e o pleno desenvolvimento do capitalismo não se apresentavam mais como a garantia do inevitável acontecer da revolução socialista. Ao contrário, permitindo à classe operária usufruir das liberdades "burguesas" e alcançar melhoramentos constantes no próprio estilo de vida, eles teriam, assim como acontecera na Inglaterra, enfraquecido sua vontade de luta, transformando sua vocação revolucionária em práxis reformista. Como, por outro lado, não era ainda viável vislumbrar outra classe social à qual transferir novamente a missão palingenética, a aceitação da prioridade inquestionável da fase democrático-burguesa na Rússia implicava, a esta altura, renunciar definitivamente à revolução socialista. Que fazer, então?

(Continua na próxima postagem.)

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