3 de julho de 2008

Diferenças conceituais (XIV)

(Continuação da postagem anterior.)

Se foi Lenin que se colocou com lucidez a pergunta, tal ocorreu não apenas graças ao excepcional instinto político desse homem, mas também devido à sua peculiar formação marxista. Podemos afirmar, sem dúvida, que as premissas teóricas dos corolários operativos de Bernstein já haviam sido elaboradas por Lenin, e até com maior rigor, durante a polêmica com os populistas. Sua teoria do mercado equivalia à negação da existência de obstáculos de ordem econômica para o contínuo desenvolvimento do capitalismo e, portanto, para a contínua melhoria da condição operária dentro do sistema. "A história de todos os países prova que a classe operária -- escreve Lenin no Que fazer? -- contando unicamente com as suas forças, consegue chegar somente à elaboração de uma consciência trade-unionista, isto é, a consciência de que é necessário se unir em sindicatos, de que deve ser levada adiante a luta contra os patrões, de que é preciso exigir do Governo algumas leis necessárias aos operários,...". Como conseqüência, "a consciência política de classe pode chegar ao operário somente de fora, isto é, de fora da luta econômica". Tudo isso, em última análise, significa que à luta de classe corresponde uma consciência de classe que não é o socialismo: luta de classe e socialismo, além de não coincidirem, são até divergentes.

O revisionismo, para dizer a verdade, não tinha chegado a tanto. Continuou pensando que, a partir do somatório dos esforços e das lutas para elevar seu nível social e cultural, iria amadurecer na classe operária uma autoconsciência socialista, paralelamente ao processo que, através de reformas arrancadas ou impostas, provocaria a transformação da sociedade de capitalista em socialista. Esse tipo de socialismo não negava radicalmente a sociedade democrático-liberal e se apresentava, abandonada toda aspiração palingenética, como uma forma mais perfeita desta mesma sociedade. O marxismo chegava, assim, ele também, ao Reformismo (v.).

Lenin chega a admitir a natureza reformista da classe operária e a rejeitar implicitamente a teoria do desmoronamento espontâneo do capitalismo, que era onde os marxistas ortodoxos colocavam suas esperanças revolucionárias, justamente porque pretende salvar na prática, e não apenas na teoria, a perspectiva revolucionário-palingenética. A convergência objetiva entre Lenin e o revisionismo não ultrapassa, porém, a fase da diagnose. No que se refere à terapia, o Leninismo se caracteriza pelo esforço de colocar em ação um conjunto de instrumentos ideológico-organizacionais aptos para inverter radicalmente o desenrolar natural dos acontecimentos.

Visto que a evolução da classe operária, no regime democrático parlamentar, a afasta do caminho do socialismo, far-se-á necessário, antes de qualquer coisa, um guia que mantenha as massas no justo caminho. Eis, pois, encontrada a necessidade e a tarefa de um partido integrado por revolucionários profissionais de origem pequeno-burguesa, formado fora da classe operária e não passível de controle, nem de influência por parte dela. Partido que será o depositário da verdade, como intérprete da essência mais real da classe operária, a encarnação atual do socialismo, a única garantia de seu advento futuro.

Foi acerca do tipo de partido que deveria ser edificado que aconteceu, em 1903, a divisão da social-democracia russa em bolcheviques e mencheviques. A questão, que aparentemente era de ordem meramente organizacional, na realidade tinha como causa fundamental os diferentes juízos que eram feitos acerca das instituições democrático-liberais: os mencheviques, que como Lenin não concordavam com a tese dos revisionistas acerca da natureza reformista da classe operária, continuavam a considerar as instituições democráticas parlamentares como uma etapa necessária e útil ao mesmo tempo; por isso, postulavam a criação de um partido democrático das massas que pudesse usufruir plenamente dessas mesmas instituições; os bolcheviques de Lenin, ao contrário, mesmo não chegando a negar de vez a necessidade de uma etapa democrático-burguesa, temiam a capacidade de sedução desse tipo de sociedade sobre a classe operária e tencionavam oferecer-lhe, mediante o partido monolítico, o antídoto necessário que a salvasse mesmo contra a vontade.

Por isso, o que realmente esteve em jogo no Congresso da cisão foi o destino da Rússia: se esse devia se concretizar na europeização do país, como queriam os liberais e os mencheviques, ou na assimilação da técnica ocidental, mantendo-se, porém, o quadro das características originais da civilização russa, segundo o espírito do populismo, "que se revelou muito mais tenaz do que os primeiros socialdemocratas e os liberais tinham pensado", conseguindo deixar suas profundas marcas no Leninismo nascente, após ter sido dado por extinto (Strada).

A teoria do partido, de claras raízes populistas, não podia, contudo, ser suficiente por si mesma para dar ao Leninismo a capacidade de fixar, dentro do rumo desejado, o curso futuro da história russa. Qual a eficácia que poderá ter na realidade o partido monolítico, desde o momento em que a classe operária, admitida a fruir das instituições liberais, possa repelir sua função de guia ou menosprezá-la? A urgência dessa pergunta, nascida lógica e implacavelmente da pretensão de conciliar a revolução socialista com a desconfiança na vontade socialista da classe operária, impelirá o Leninismo a transformar-se, de partido monolítico, em Estado totalitário, que parecia o único instrumento capaz de permitir que o partido desempenhasse, cabalmente e a qualquer custo, "mesmo contra a classe operária", a função de guia para o socialismo. Só então, extinta com a classe operária também a sua tendência ao tradeunionismo, se extinguirão Estado e partido, dando lugar à liberdade universal dentro de uma total igualdade. Acrescente-se que, na Rússia, as instituições democrático-parlamentares eram ainda uma conquista a ser realizada. Além disso, a fraqueza e a indecisão da burguesia davam a impressão de que o partido social-democrático teria que assumir esta tarefa: enquanto os mencheviques ansiavam por assumir este papel e levá-lo a bom termo da melhor maneira possível, os bolcheviques, partindo das premissas já analisadas, sentiam-se tentados a instrumentalizar a batalha democrática para derrubar a autocracia, ficando únicos donos da situação, a fim de prevenir, mediante o esvaziamento e, se necessário, até mediante a pura e simples repressão das instituições liberais, o afastamento da classe operária do caminho do socialismo.

Voltava, desta forma, em Lenin, a velha idéia populista do salto da fase burguesa, porém com um enfoque totalmente novo, para oferecer uma resposta a preocupações inteiramente diferentes. Para os populistas, o móbil da ação era o sonho altruísta de poder oferecer às massas o bem-estar, poupando-as dos sofrimentos que seriam causados pelo processo de industrialização; para Lenin, que nisto permaneceu sempre (até em 1917) rigorosamente marxista, a fase da industrialização e, conseqüentemente, do capitalismo, era inevitável; sua preocupação era pular o aspecto liberal-democrático da era burguesa, a fim de impedir que a classe operária manifestasse sua tendência para o emburguesamento. O programa leninista se resumia, portanto, na conquista do poder a fim de promover um rápido desenvolvimento da industrialização, debaixo do controle de um Estado onipotente, em condições de sufocar toda e qualquer aspiração autônoma da sociedade civil, visando objetivos diversos dos do socialismo. Para usar as próprias palavras de Lenin: capitalismo de Estado mais ditadura do proletariado.

Deste modo, Lenin se harmonizava com a teoria da revolução permanente de Trotski, que inicialmente estigmatizara de anárquica. Por meio da teoria da revolução permanente, o marxismo revolucionário de Lenin e de Trotski se ligava ao "conjunto de teorias do desenvolvimento modernizador e acelerado que se chama populismo" e que jamais deixou de influenciar "toda a linha antimenchevique e antiliberal da social-democracia russa" (Strada).

No contexto internacional, um tal programa não deixava de manter a Rússia numa posição de atraso com relação aos países ocidentais que já estariam, de acordo com a ortodoxia marxista que Lenin nunca rejeitou explicitamente, amadurecidos para o socialismo. Daí a tentação de atribuir à Rússia a função demiúrgica de despertar para o socialismo as massas proletárias dos países mais evoluídos, inexplicavelmente adormecidas, sempre de acordo com o dogma marxista. Volta aqui um outro elemento do populismo: o nacionalismo messiânico.

IV. A função revolucionária da guerra e a teoria do imperialismo. Dois tipos de críticas começaram a ser levantados, por parte do movimento socialista internacional, contra esta estratégia. Em primeiro lugar, questionava-se se poderia ser chamado ainda de socialismo, isto é, de autogoverno da classe operária, o que na realidade se caracterizava como enquadramento da classe e de todo o povo sob a ditadura inquestionável do secretário do partido. Em segundo lugar, se seria possível que um conjunto de arranjos organizacionais conseguiria e, de fato, garantir a revolução, se efetivamente viria a desaparacer a vontade revolucionária na classe operária. Lenin mostrou-se insensível ao primeiro tipo de crítica, na certeza de encarnar, como todo o profeta, a verdadeira vontade do povo eleito; quanto ao segundo tipo, ao contrário, nunca deixou de ser um motivo de sofrido questionamento, até e para além do dia da vitória de outubro, definindo, desta maneira, as sucessivas evoluções de seu pensamento.

Para um Lenin radicalmente realista, a estratégia do Que fazer?, após uma consideração mais cuidadosa e após a lição dos acontecimentos, só poderia se revelar como algo fundamentado numa hipótese impregnada de idealismo. Não era concebível, do ponto de vista do realismo sociológico marxista, uma perspectiva política em que uma inteira classe social atuasse de acordo com uma consciência induzida exteriormente e não conforme seus próprios reflexos naturais, condicionados pelo meio social. Se não existem motivos para acreditar que a classe operária se sinta impulsionada a atacar o poder pela constante deterioração de suas condições de vida; se é também pouco provável que a classe desmorone pela própria incapacidade de enfrentar as contradições internas do sistema e o protesto operário delas decorrentes; então, outras motivações e outras causas, tanto ou mais fortes e realistas, se fazem necessárias, senão o partido, mesmo na perfeição de sua organização e na pureza de sua doutrina, correrá o risco de agir em vão.

Era justamente isso que estava ocorrendo na Rússia nos anos que viram, após a revolução de 1905, o czarismo firmar-se em estruturas levemente menos autocráticas, enquanto a classe operária estava recebendo, pela primeira vez, alguns benefícios em conseqüência do desenvolvimento capitalista, que tomava novo fôlego a ritmo acelerado. Em decorrência disso, estava se concretizando uma ruptura insanável no seio da inteligência revolucionária. Porém, os acontecimentos de 1904--1905 apresentavam também indicadores positivos que Lenin percebeu rapidamente: a derrota da Rússia na guerra contra o Japão provocara o ímpeto revolucionário das massas e a desorientação da classe dirigente, esperados inutilmente durante quase um século como frutos da dinâmica interna do sistema. Só faltava aguardar, a esta altura dos acontecimentos, uma guerra de dimensões ainda maiores e uma derrota ainda mais desastrosa, para ter fé na eclosão de uma revolução vitoriosa. Em janeiro de 1913, Lenin escrevia a Gorki: "Uma guerra da Áustria contra a Rússia seria de grande utilidade para a revolução (em toda a Europa oriental); é, todavia, bem pouco provável que Francisco José e Nicolauzinho nos proporcionem tamanho prazer".

A teoria do imperialismo, elaborada em 1916, após a eclosão da guerra, tem a tarefa de responsabilizar a dinâmica interna do sistema capitalista, restabelecendo assim, de maneira sumamente criadora, em nível teórico, a ortodoxia marxista, tão duramente posta à prova pelos acontecimentos de 1870--1914.

Cientificamente, a teoria que encara a guerra para a divisão dos mercados como o inevitável desfecho da objetiva impossibilidade que o capitalismo tem para elevar o nível de vida da massa operária, ampliando o próprio mercado interno até torná-lo capaz de absorver uma produção sempre crescente, não merece a excessiva consideração de que tem sido objeto. Trata-se, de fato, de uma repetição de temas populistas que encontram sua melhor refutação justamente nos escritos juvenis do próprio Lenin.

Difícil, todavia, é exagerar a importância que tem na história da ideologia marxista. Vimos como o marxismo se apresentou aos populistas, decepcionados com a classe camponesa, como a promessa do advento de uma outra classe "verdadeiramente revolucionária", e como, chegando a duvidar também dessa classe, Lenin deslocou para o partido a tarefa de vanguarda revolucionária. O fracasso do partido alemão, considerado por Lenin como um modelo, perante a guerra de 1914, obrigou-o a buscar garantias ainda mais eficazes. O partido tinha fracassado no Ocidente por ser corrupto; e era corrupto por ter-se identificado com a aristocracia operária que, engordada pelas migalhas do espólio colonial, tinha abdicado da sua missão. A insurreição dos povos colonizados, tornada inevitável pela crescente exploração levada a efeito pelos países capitalistas na vã tentativa de afastar o desmoronamento que ameaça suas estruturas econômicas, terá a conseqüência de tornar novamente explosivas as contradições do capitalismo, trazendo ao proletariado ocidental, aliás ao seu partido, o apoio das massas colonizadas e exploradas. Apesar das inumeráveis e complexas incongruências internas, a teoria consegue salvar o messianismo revolucionário, chegando a ampliar seu aspecto numa dimensão, pela primeira vez, verdadeiramente universal. E é justamente esse fato que vale politicamente.

Dos camponeses para os camponeses, visto as massas colonizadas do Terceiro Mundo serem constituídas unicamente de camponeses: a teoria do imperialismo é, portanto, a chave que abre ao marxismo a porta da orientalização e que torna possível o renascer, no seu seio, de antigos motivos populistas. Lenin, todavia, chegou apenas a enunciar as premissas de toda essa evolução. Pessoalmente ele permaneceu fiel ao núcleo do marxismo; foi, até o fim, eurocêntrico, isto é, convicto da primazia dos partidos comunistas sobre os países já industrializados, para os quais, através do imperialismo, procurava mais um suporte do que um substituto e também um estímulo para compensar suas deficiências, sem explicação em nível da teoria, porém realisticamente percebidas e sofridas por Lenin nos seus últimos anos.

(Continua na próxima postagem.)

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