29 de agosto de 2008

A Duma soviética e a Duma russa: um estudo de caso (IV)

(Continuação da postagem anterior.)

Chernomyrdin assumiu dizendo que protegeria as empresas russas, mas continuaria com o processo de privatização – só que de forma mais lenta e gradual. Na prática, pouca coisa mudou para a população, enquanto que as oligarquias se beneficiaram mais ainda com o novo Primeiro-Ministro. Diferentemente de seu antecessor, que tinha fortes ligações com o capital ocidental, Chernomyrdin defendeu o interesse das oligarquias russas, ao criar obstáculos ao capital estrangeiro, de forma que os oligarcas puderam adquirir cada vez mais empresas russas, aumentando seu poder de influenciar a economia e o governo. O Primeiro-Ministro também implantou um plano de estabilização da economia russa, obtendo sucesso no que diz respeito ao controle da inflação. Entretanto, o setor industrial russo não conseguiu retomar o crescimento, devido à competição com produtos estrangeiros e às altas taxas de juros (Segrillo 2000b, p. 83), o que levou a crescimentos negativos da economia russa. Chernomyrdin conseguiu, ao menos, deixar o processo de privatização relativamente concluído, ao deixar o cargo em 1998: “mais de 2/3 da produção e do emprego na Rússia eram realizados no setor privado (incluindo aqui empresas de capital misto)” (Segrillo 2000b, p. 84).

No campo político, houve tantos problemas nos três primeiros anos pós-URSS quanto no campo econômico. As políticas econômicas desastrosas de Ieltsin colocaram o Parlamento contra ele. Os deputados estavam insatisfeitos com a queda do nível de vida da população, e muitos não concordavam com a forma como as privatizações estavam acontecendo. Ieltsin, por sua vez, não queria ser criticado por ninguém, muito menos pelo Parlamento russo, e enxergava o Parlamento como um obstáculo no caminho para suas reformas. Assim, “Ieltsin (...) passou a se queixar de que aquele Congresso dos Deputados do Povo tinha sido eleito na época soviética e, portanto, era pouco representativo da nova realidade social do país” (Segrillo 2000b, p. 84). A principal disputa política referia-se aos poderes extraordinários que Ieltsin recebera, para que ele pudesse passar da economia planificada para a economia de mercado, entre 1991 e 1992. O Parlamento queria restringir estes poderes, enquanto Ieltsin, obviamente, queria mantê-los.

A disputa entre Executivo e Legislativo continuou até que Ieltsin declarasse, em março de 1993, o Regime Especial de Administração do País, algo como um estado de emergência, ampliando, portanto, seus próprios poderes. Membros do próprio governo de Ieltsin, como o vice-presidente Rutskoi, foram à televisão e disseram que o decreto presidencial era inconstitucional, agravando a crise e a disputa política. O Congresso fracassou em sua tentativa de impeachment do presidente, e marcou para maio um referendo popular sobre a política de Ieltsin. Para satisfação do presidente, 58% dos votantes expressaram confiança em sua pessoa e em sua política.

Com as denúncias de corrupção sobre Rutskoi, Ieltsin decidiu pelo afastamento temporário do vice-presidente, enquanto durassem as investigações. O Parlamento se posicionou contra a demissão do vice-presidente, declarando a medida inconstitucional e confirmando Rutskoi no cargo. Aumentando a “provocação”, em 21 de setembro de 1993 Ieltsin assinou o decreto “Sobre a reforma constitucional gradual”. Este decreto extinguia o Congresso dos Deputados do Povo e marcava novas eleições, onde os eleitos ocupariam a nova Assembléia Federal. Em 23 de setembro, o Parlamento aprovou o impeachment de Ieltsin, substituindo-o pelo vice Rutskoi, com o apoio do Tribunal Constitucional.

A solução encontrada para a solução da disputa entre presidente e Parlamento foi a utilização da força. Em 4 de outubro, Ieltsin ordenou que os tanques estacionados ao redor da Casa Branca bombardeassem o edifício, ocupando-o com soldados e obrigando os deputados a se renderem. O vice-presidente e o presidente do Parlamento russo, principais opositores de Ieltsin, foram presos.

Neste ponto, é importante fazermos uma análise de como os acontecimentos econômicos e políticos se “encaixam”. Ieltsin herdara um país que se encontrava em uma situação economicamente fraca e debilitada. Ele, porém, encontrava-se politicamente forte, ao ser retratado como o “defensor da democracia” ao se opor ao golpe de Estado de agosto de 1991, e como aquele que poderia colocar a Rússia “nos trilhos” novamente, ao mostrar os erros que Gorbachev cometera.

Devido a este clima favorável à sua pessoa, Ieltsin pôde iniciar seu governo da forma mais radical possível – através da “terapia de choque” –, tentando alavancar a Rússia rapidamente em direção ao capitalismo. Porém, após 70 anos de forte ideologia comunista, foi difícil para a população aceitar e até mesmo entender suas políticas – por mais que elas estivessem desiludidas com o comunismo, não poderiam entender e assimilar uma mudança tão radical como a liberalização dos preços, com o conseqüente aumento dos mesmos, por exemplo. Desta forma, o descontentamento popular ecoou no Parlamento russo, onde havia deputados que também não se sentiam à vontade com a rápida “ocidentalização” do país, com a introdução do capitalismo na Rússia.

O resultado dessa diferença de objetivos por parte dos dois poderes, o Executivo e o Legislativo, só poderia ser o confronto. Ieltsin, por um lado, queria realizar as reformas o mais rápido possível, talvez até mesmo para dirimir as dúvidas internacionais a respeito de uma volta ao comunismo, além de querer beneficiar aqueles que o apoiavam. O Parlamento, por outro lado, também ansiava por reformas que reconduzissem a Rússia ao caminho certo, mas não gostava da forma que Ieltsin escolhera – praticamente “escancarando” a Rússia para a entrada de idéias e conceitos ocidentais.

Como as diferenças de objetivo, associadas à busca pelo poder das duas partes envolvidas, não podiam ser conciliadas, ocorreu o confronto. Em um primeiro momento, este confronto se dava, por exemplo, com a nomeação para postos-chave, por parte de Ieltsin, de pessoas que desagradavam ao Parlamento. Este respondia declarando inconstitucionais os atos de Ieltsin, tentando dificultar suas ações. Por fim, a opção escolhida por Ieltsin para pôr fim às disputas e à paralisia política foi a força, bombardeando o mesmo prédio que ele ajudara a defender contra os golpistas dois anos antes.

Após o ataque ao Parlamento, Ieltsin assinou decretos proibindo o funcionamento das organizações que apoiaram o Parlamento, além de dissolver o Tribunal Constitucional. Convocou eleições para a nova Assembléia Federal e submeteu a referendo popular uma nova Constituição, de caráter eminentemente presidencialista, com um poder Executivo muito forte em relação ao Legislativo. Nestas eleições, o partido de Ieltsin ficou em segundo lugar, atrás de um partido de extrema direita e à frente de um partido de esquerda. Este “aprisionamento” do partido de Ieltsin deu certa margem de manobra à Duma – a nova Assembléia Federal – que, se por um lado não podia agir ostensivamente contra Ieltsin, por outro podia opor certa resistência, como por exemplo dando anistia a vários presos políticos em fevereiro de 1994, dentre eles o ex-vice-presidente Rutskoi.

(Continua na próxima postagem.)

27 de agosto de 2008

A Duma soviética e a Duma russa: um estudo de caso (III)

(Continuação da postagem anterior.)

A RÚSSIA PÓS-COMUNISTA

Com o fim da União Soviética em 1991, doze novos países surgiram no cenário internacional (devemos nos lembrar de que a Letônia, a Estônia e a Lituânia já eram independentes). Dentre esses novos países, o mais importante é a Rússia, que já ocupava lugar de destaque dentro da própria União Soviética, por ser a maior das repúblicas que formavam o antigo país. A Rússia era a maior não só em extensão territorial, mas também em recursos naturais, em população, em desenvolvimento industrial, em recursos tecnológicos e em materiais bélicos, dentre outros.

O PROGRAMA DE AJUSTAMENTO ECONÔMICO

Ao obter sua independência em 1991, com o fim da União Soviética, a Rússia se encontrava com sua economia arrasada, e o declínio continuou em 1992. Muito dessa queda foi ocasionada pela quebra do sistema produtivo soviético, pois a URSS possuía uma rede produtiva interligada em todo o seu território. Quando as repúblicas se separaram, essa rede também se separou, não podendo ser recriada em curto prazo. Além disso, o próprio sistema produtivo soviético já não funcionava, pois as empresas não seguiam mais as ordens recebidas do centro.

Outro fato que contribuiu para a crise de 1992 na Rússia foi a liberalização dos preços promovida por Ieltsin. Esta política estava de acordo com a “terapia de choque” promovida pela equipe do governo, explicitada no “Programa Radical de Construção da Economia de Mercado e de Estabilização Econômica” (Pomeranz 2000, p. 34), que objetivava inserir o capitalismo o mais rápido possível na Rússia para se evitar “dores prolongadas”, mesmo que ocorressem falhas e irregularidades durante este processo. A receptividade da população à liberação dos preços foi negativa, pois houve aumento de preços (em média, o preço dos produtos aumentou de 3 a 5 vezes, com produtos aumentando até 30 vezes) (Segrillo 2000b, p. 74). Além disso, não houve uma melhoria na oferta de produtos conforme o previsto, o que também frustrou a população. Até mesmo membros do governo foram contra esta política, como o presidente do Soviete Supremo da Rússia, Ruslan Khasbulatov, e o próprio vice-presidente russo, Aleksandr Rutskoi.

O programa de estabilização fora criado por Yegor Gaidar, Ministro das Finanças de Ieltsin. A reação contrária ao plano apenas aumentou a convicção de Gaidar de que o governo estava no caminho certo: se os produtos não chegavam às lojas, era porque as indústrias que os fabricavam eram monopolizadas pelo Estado. Isto não deveria ocorrer, e Gaidar propôs que tais empresas fossem privatizadas o mais rápido possível, para incentivar a concorrência. Gaidar tornou-se Primeiro-Ministro em junho de 1992, como forma de mostrar ao Ocidente qual o caminho que a Rússia iria seguir.

No balanço da adoção desses programas, coloca-se o elevado custo social da estratégia adotada – revelado por meio do empobrecimento da população – e a continuidade da crítica situação econômica da Rússia durante todo o período desde o início formal do processo de transformação, expressa no declínio consecutivo do PIB até 1999.

O AMBIENTE POLÍTICO DE 1992 A 1994

O início da privatização deu-se ainda sob o governo de Mikhail Gorbachev, com a introdução de leis sobre o funcionamento das cooperativas urbanas, sobre o trabalho individual e sobre o arrendamento, além de leis sobre joint ventures e sobre a propriedade estatal. Essas leis permitiram não apenas o surgimento de pequenas empresas no setor de serviços, como favoreceram também uma ampla descentralização e desestatização da propriedade, permitindo a apropriação de uma boa parcela da propriedade por parte dos membros da nomenklatura – ou, como são comumente chamados, os diretores vermelhos.

Já durante o governo russo, após o fim da União Soviética, a primeira parte da privatização foi a chamada “privatização por cupons”, onde cada russo receberia, gratuitamente, cupons – ou, oficialmente, “certificados populares de privatização” – no valor de dez mil rublos. Esses cupons poderiam ser trocados por ações das empresas estatais que estavam sendo privatizadas. O objetivo era dar uma “aura” de democracia no processo, fazendo com que as pessoas “comuns” pudessem ter participação nas empresas, evitando-se a concentração nas mãos de poucos. Além disso, objetivava-se também legitimar o processo de privatização com o apoio da população, evitando-se assim reações em contrário. As “privatizações por cupons” ocorreram de agosto de 1992 a julho de 1994, quando as negociações das ações das empresas ocorreriam por compra e venda simples.

Apesar de terem sido privatizadas 60 mil das 200 mil empresas estatais até junho de 1993 (Segrillo 2000b, p. 77), o processo de privatização passou por grandes problemas. O primeiro deles referia-se aos próprios cupons. Com a grande inflação do período, os cupons rapidamente perderam o seu valor. Isto fez com que algumas pessoas mais endinheiradas comprassem esses cupons pelos mesmos dez mil rublos, só que desvalorizados. Posteriormente, esses cupons – acumulados nas mãos de poucos – foram utilizados para comprar as estatais pelos seus valores nominais. Ou seja, cupons desvalorizados de dez mil rublos foram usados como se realmente valessem este valor. Além disso, as poucas pessoas “comuns” que utilizaram seus cupons e compraram ações não tinham nenhum poder de influência dentro das empresas privatizadas.

Outro grande problema nas privatizações russas é que os diretores das empresas estatais tinham prioridade na compra de suas ações. Além disso, quem comprava as ações de determinada empresa com os cupons só poderia vender tais ações com o consentimento da diretoria, que ainda mantinha os preços das ações artificialmente baixos. Assim, os próprios diretores compravam as ações das pessoas “comuns” a preços baixos – determinados por estes próprios diretores –, pois possuíam preferência para comprá-las. As diretorias cuidavam das respectivas empresas como se fossem donas das mesmas – e, muitas vezes, chegavam a sê-lo.

Este processo de privatização, com os dirigentes disputando entre si a posse das empresas mais rentáveis, resultou no surgimento de dois “grupos” na sociedade russa: as máfias – que tinham inclusive a função de proteção daqueles que estavam envolvidos nos processos de privatização – e principalmente as oligarquias – que eram grupos que, com o poder adquirido pelas privatizações, passaram a dominar a economia e a influenciar o governo.

Para a população, a política da “terapia de choque” apenas trouxe uma grande queda do nível de vida – uma inflação anual de 2.580% somada ao crescimento econômico negativo de 19%, em 1992 (Segrillo 2000b, p. 45). Ao mesmo tempo, com a abertura econômica, o mercado interno era invadido com mercadorias importadas, o que levou as indústrias russas a praticamente pararem de produzir. Para tentar solucionar este problema, Ieltsin demitiu Gaidar e propôs o nome de Viktor Chernomyrdin para Primeiro-Ministro. Chernomyrdin era um dos chamados diretores vermelhos, ou seja, “antigos dirigentes das indústrias da URSS que, com a privatização, passariam também a controlar as novas empresas nascentes” (Segrillo 2000b, p. 81). Não podemos confundi-los com os oligarcas, que eram donos de indústrias totalmente privatizadas e que funcionavam baseando-se no capital financeiro-especulativo. Esses diretores vermelhos, que anteriormente eram os diretores das antigas empresas estatais russas, se tornariam, em breve, membros da oligarquia russa.

(Continua na próxima postagem.)

25 de agosto de 2008

A Duma soviética e a Duma russa: um estudo de caso (II)

(Continuação da postagem anterior.)

A segunda fase da Perestroika inicia-se no final de 1987 e início de 1988. Dividimos a reestruturação em duas fases por acharmos que, na primeira fase, havia uma verdadeira união de todas as forças em torno de uma coesão política, enquanto que na segunda fase começam a se delinear principalmente dois grupos: os democratas, ou reformadores, e a linha-dura, ou extrema direita. É nessa fase que ocorrem as rupturas políticas mais graves que levaram ao colapso da União Soviética em 1991.

O primeiro sintoma da ruptura dentro do Partido Comunista deu-se quando Boris Ieltsin criticou todo o sistema político soviético e afirmou que as pessoas estavam começando a desacreditar a Perestroika, após dois ou três anos de promessas sem resultados objetivos (Dobbs 1998, p. 237). O problema dessa ação não foi a ação em si própria, mas sim o fato de as críticas terem surgido durante as comemorações do 70º aniversário da Revolução de Outubro. Em ocasiões como essa, a exibição de unidade do partido era exigida, e o fato de um próprio reformador criticar a Perestroika poderia trazer problemas para o programa como um todo.

Na visão de alguns membros do Partido Comunista, Gorbachev estava seguindo outros rumos políticos que não os abertos pela Perestroika (Dobbs 1998, p. 244). Um desses membros era Yegor Ligachev, que era o secretário da ideologia do partido. Para ele, a glasnost estava tomando um rumo inesperado, e o partido estava começando a perder o poder de controlar os acontecimentos. Mostrar em jornais e revistas os crimes cometidos por Stalin, tendo-se assim uma visão revisionista e negativa da história soviética, significava “a perda dos valores comunistas tradicionais” (Dobbs 1998, p. 245). Além disso, os métodos soviéticos tradicionais de controle já não funcionavam como antes. Ao mesmo tempo em que visava dar informações à população como forma de incluí-las no debate político, a glasnost fazia com que as revistas e os jornais publicassem qualquer coisa, muitas das quais eram contrárias à ideologia soviética.

A divisão entre democratas e linha dura começou a ficar cada vez mais visível, apesar de não ser oficial. Gorbachev consentia que qualquer membro do partido expressasse suas opiniões, mesmo que estas fossem contra a Perestroika e contra a glasnost, mas não aceitava que essas críticas fossem tomadas como orientação partidária. Ao mesmo tempo, Gorbachev se beneficiava das regras de disciplina partidária ainda em vigor, e, principalmente, dos hábitos enraizados de obediência, pois nenhum membro do partido gostaria de ser visto como dissidente ou destruidor da unidade partidária (Dobbs 1998, p. 258). Com isso, mesmo os conservadores endossavam a política da Perestroika – pelo menos por enquanto.

Ainda em 1988, alguns acontecimentos nos Estados bálticos trouxeram mais instabilidade para a política soviética. Manifestações populares nessas repúblicas criaram um novo embate entre reformadores e conservadores. Os primeiros afirmavam que essas manifestações estavam de acordo com os objetivos da Perestroika, pois “chamava a atenção para injustiças econômicas e sociais que vinham se agravando década após década” (Dobbs 1998, p. 266-267). Os conservadores, por sua vez, afirmavam que o Estado soviético começara a se desintegrar, e que apenas a força militar seria capaz de manter a ordem e a unidade do país. Gorbachev, por sua vez, jamais abandonaria a Perestroika, independentemente dos acontecimentos. Ele não podia ser contraditório, defendendo a abertura política e reprimindo manifestações sociais em outros locais.

A situação interna da URSS deteriorava-se cada vez mais, não só nos aspectos políticos, com conseqüências negativas para Gorbachev, mas também nos aspectos econômico e social. As ordens dadas pelo governo deixavam de ser seguidas em várias partes do território soviético, como conseqüência da democratização e do sistema de autogestão implantado nas empresas. No campo econômico, o planejamento e as metas dos planos qüinqüenais eram ignorados, devido à crise econômica. “A economia planificada, com suas quotas e seus prazos rigidamente formulados, tinha efetivamente dado lugar a um sistema rudimentar de trocas. Na ausência de um mercado livre, a regra era cada um por si” (Dobbs 1998, p. 340-341). Os subordinados não mais seguiam as ordens de seus chefes.

Em maio de 1990, Boris Ieltsin foi eleito presidente da Rússia. Apesar de oficialmente Ieltsin fazer parte da “oposição democrática” a Gorbachev, o problema entre os dois líderes vinha de longa data, quando o secretário-geral humilhou Ieltsin no Parlamento, três anos antes, por este ter feito críticas à Perestroika quando da comemoração do 70º aniversário da Revolução de Outubro. A rivalidade entre os dois líderes marcaria a política soviética até a desintegração da URSS.

Em agosto de 1991, ocorreria um fato que levaria, irremediavelmente, ao fim da União Soviética: o golpe de Estado patrocinado pela linha-dura soviética. O golpe já estava sendo armado desde o ano anterior, e aguardava-se apenas o momento propício para colocá-lo em ação.

O golpe foi a oportunidade ideal para Ieltsin. O presidente russo, ao tomar conhecimento do golpe, começou a preparar um documento, juntamente com o presidente do Parlamento russo e com o primeiro-ministro russo, conclamando as pessoas a não negociarem com os golpistas e não aceitarem suas exigências e imposições. Ressaltou a inconstitucionalidade do golpe e classificou os golpistas como “reacionários”. Após a divulgação do comunicado, Ieltsin e os outros líderes russos encaminharam-se para a Casa Branca, sede do governo e do parlamento russo, onde já havia alguns jornalistas russos e estrangeiros, deputados russos e uma pequena multidão que se opôs ao golpe. Subiu em um tanque, leu o documento preparado em sua casa e conclamou a todos que não aceitassem a “tirania e ilegalidade” dos golpistas. Assinou um decreto onde se nomeava comandante-em-chefe das tropas soviéticas em território russo e expeliu mandados de prisão contra os líderes do golpe (Dobbs 1998, p. 471-487).

A partir desse acontecimento, o centro perdeu mais ainda seu poder e influência. Gorbachev, ao regressar a Moscou da Criméia, reafirmou sua confiança no Partido Comunista. Contudo, o presidente soviético não sabia que a população havia associado os golpistas ao próprio partido, e este não era mais visto pelo povo como confiável. Para exemplificar o desprezo da população para com o partido, a multidão que se encontrava na frente da sede do PCUS vibrou quando foi anunciada a suspensão das atividades do Comitê Central do Partido Comunista, ordenada pelo próprio Gorbachev após a leitura de documentos que comprovavam a participação de membros do próprio governo de Gorbachev no golpe. Este fato também “coroava” Ieltsin, que foi associado à democracia e à resistência ao golpe, enquanto Gorbachev era associado ao PCUS. Finalmente, no dia 24 de agosto de 1991, extinguia-se o Partido Comunista da União Soviética (Dobbs 1998, p. 509-516).

Em dezembro de 1991 foi dado o golpe fatal que acabaria definitivamente com a União Soviética. Em uma casa de campo na floresta de Byelovejesky, próximo à fronteira da Bielo-Rússia com a Polônia, encontraram-se os presidentes da Rússia, Ucrânia e Bielo-Rússia. O objetivo do encontro era preparar um documento que colocaria um fim à URSS, devido à falta de poder do governo central para implementar suas políticas.

(Continua na próxima postagem.)

22 de agosto de 2008

A Duma soviética e a Duma russa: um estudo de caso (I)

Desde o início desta semana, dei início a uma nova série contendo como tema central a Rússia. O objetivo é apresentar algumas visões sobre o país que, geralmente, não estão presentes na grande mídia. Além disso, a grande mídia apresenta suas análises baseando-se em conceitos ocidentais, o que acaba trazendo um viés no momento de se realizar uma análise política sobre o país.

A partir de hoje, em uma série de postagens, serão apresentados alguns trabalhos realizados por este autor durante sua graduação e que mostram um lado que geralmente é desconhecido dos pesquisadores ocidentais. Ainda que alguns desses trabalhos sejam datados (posto que foram concretizados entre os anos 2000 e 2003), acreditamos que os mesmos possam dar uma contribuição acadêmica àqueles que tenham interesse em conhecer um pouco mais sobre tal país.

O primeiro trabalho, de análise política, se refere a uma comparação entre o Parlamento soviético de 1989 e o Parlamento russo de 1995.

INTRODUÇÃO

O objetivo deste trabalho é realizar levantamento e análise de dados que explique as diferenças existentes entre o parlamento soviético formado em 1989, ainda durante o período socialista, e o parlamento russo eleito em 1995, após o fim do socialismo.

Os tópicos a serem estudados serão os seguintes: composição do parlamento; atribuições dos parlamentares; forças políticas existentes no parlamento; representatividade; a fiscalização e o controle do Poder Executivo por parte do Poder Legislativo; e as relações entre os Poderes Executivos e Legislativos.

O trabalho será estruturado em quatro partes principais:

1) Primeira parte: Contextualização histórica
Nesta primeira parte, descreveremos os principais acontecimentos políticos, econômicos e sociais que influíram na formação dos dois parlamentos em estudo, iniciando-se a contextualização em 1987 e terminando em 1995.

2) Segunda parte: O Parlamento soviético de 1989
Este tópico tem por objetivo descrever a formação, composição e atuação do Parlamento de 1989, eleito ainda no período de existência da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas no mandato de Mikhail Gorbachev.

3) Terceira parte: O Parlamento russo de 1995
Este tópico objetiva descrever a composição do Parlamento russo após as eleições legislativas de 1995, quando já existiam vários partidos políticos na Rússia, sob o governo do presidente Boris Ieltsin.

4) Quarta parte: A Duma Soviética e a Duma Russa
A última parte do trabalho terá por objetivo analisar e comparar os itens descritos nas duas partes anteriores, levando-se em conta as características dos dois Poderes Legislativos analisados.

PRIMEIRA PARTE: CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA

A Perestroika e o fim da União Soviética

Tendo-se em mente todos os problemas pelos quais passava a União Soviética desde o final da década de 60, alguma coisa precisava ser feita para se evitar o declínio constante da economia do país. O programa político chamado Perestroika, que foi apresentado no início de 1985, na reunião plenária do Partido Comunista da União Soviética (PCUS), tinha como principal objetivo “melhorar a situação econômica, estancando e invertendo as tendências desfavoráveis naquele campo. A prioridade mais imediata dizia respeito a colocar um pouco de ordem na economia” (Gorbachev 1987, p. 27). A Perestroika pode ser entendida como “uma política de aceleração do progresso social e econômico do país e de renovação de todas as esferas da vida” (Gorbachev 1987, p. 9). Mikhail Gorbachev, que havia sido escolhido para ocupar o cargo de secretário-geral do PCUS, sabia que era necessário acelerar o processo de implantação dos progressos científicos e tecnológicos decorrentes da Terceira Revolução Industrial em seu país, bem como alterar os processos organizacionais soviéticos. Precisava-se “passar para uma economia intensiva, para um novo tipo de crescimento econômico” (Gorbachev 1987, p. 28).

As propostas apresentadas no início de 1985 não foram criadas de uma hora para outra. Foram o resultado de análises que vinham sendo realizadas desde o início da década de 80 por membros do Partido Comunista, entre eles Gorbachev. O resultado dessas análises foi apresentado de forma sistemática, juntamente com um cronograma de ações para implementá-las.

O primeiro ponto do programa referia-se à economia. O objetivo era recuperar o atraso tecnológico por meio do aumento da organização das empresas e da partilha de responsabilidades com seus administradores. Era necessária a implantação de novas tecnologias, a mudança na forma como os investimentos estatais eram realizados, bem como reformar o modelo administrativo das empresas soviéticas. “Tudo isso somado significa uma coisa apenas: a aceleração do progresso científico e tecnológico” (Gorbachev 1987, p. 27).

O segundo ponto importante do programa referia-se a uma mudança nos padrões ideológicos da sociedade soviética. Os princípios do socialismo estavam sendo deturpados. A máquina administrativa do Estado, por exemplo, estava sendo usada para se obter benefícios pessoais, o que era um absurdo em uma sociedade que se guiava por princípios socialistas.

O terceiro ponto importante do programa era a “ampla democratização de todos os aspectos da sociedade” (Gorbachev 1987, p. 32). Era essa democratização que iria garantir o funcionamento do socialismo, pois seria a intensa participação dos indivíduos nos processos de sua própria sociedade que garantiria a sustentação do socialismo. É um “círculo vicioso”: a sociedade teria a oportunidade de participar mais e contribuir, com sua criatividade, para o processo produtivo. Isso ocorreria por meio da democratização. Com essa participação, aumentaria a responsabilidade do indivíduo frente aos resultados de sua empresa, por exemplo, que por sua vez é financiada por um sistema socialista. Sendo responsável pelo futuro da empresa, o operário iria trabalhar mais e melhor, para garantir o sucesso de sua empresa. Por outro lado, para poder trabalhar melhor, o indivíduo precisaria da liberdade, exercida por processos democráticos. E assim o círculo se fecha.

Além da abertura política e econômica proporcionada pela glasnost e pela Perestroika, também outro fator de importância fundamental foi modificado: a administração empresarial. A idéia era se passar de um modelo fortemente centralizado, que “convidava à corrupção”, para um sistema que combinava centralismo democrático e autogestão. Assim, as empresas teriam de encontrar os melhores meios para obter lucros e continuar funcionando. Os lucros passariam a ser diretamente proporcionais à eficiência da empresa. A administração deixou de ser exercida diretamente pelo centro, ainda que fosse realizada por alguém de confiança do partido. Evitava-se, com isso, a proliferação da burocracia, que dificultava a consecução dos projetos administrativos e que levava à corrupção.

A primeira fase da Perestroika inicia-se em 1985, quando Gorbachev assume o poder como secretário-geral do Partido Comunista, e vai até o final de 1987. Neste período, Gorbachev conseguiu atingir os objetivos que ele próprio havia proposto, e os propósitos da Perestroika foram sendo atingidos, pouco a pouco. Assim, a participação cada vez mais efetiva dos operários em suas fábricas, a liberdade de expressão da população, por meio de jornais e/ou revistas, a implantação dos resultados da Terceira Revolução Industrial e as mudanças na orientação da política externa soviética foram os resultados mais tangíveis dessa nova forma de governar a superpotência.

(Continua na próxima postagem.)

20 de agosto de 2008

Liberalização e inclusividade na Rússia

Matheus Passos Silva
Doutorando em História Política e Cultural

Em seu livro Poliarchy, Robert A. Dahl define todos os regimes políticos do mundo como não completamente democráticos. O autor acredita que mesmo aqueles países onde o sistema democrático já esteja consolidado, o que existe não é democracia – coisa que o autor acha impossível de acontecer em qualquer lugar do mundo. Partindo desse princípio, Dahl define o seu conceito de poliarquia:

Podemos conceber que a democracia está situada no canto superior direito [do gráfico criado por Dahl para exemplificar os regimes políticos definidos por ele]. Mas como a democracia pode envolver mais dimensões do que as duas da figura 1.2 [contestação pública e participação política], e como (em meu ponto de vista) nenhum dos grandes sistemas do mundo é totalmente democratizado, eu prefiro chamar os sistemas reais do mundo que estão mais próximos ao canto superior direito de poliarquias. Qualquer mudança em um regime que se move para cima e para a direita, por exemplo, pelo caminho III, pode-se dizer que representa algum grau de democratização. Poliarquias, portanto, podem ser pensadas como regimes relativamente – porém incompletamente – democratizados, ou, para colocar de outra forma, poliarquias são regimes que foram substancialmente popularizados e liberalizados, ou seja, altamente inclusivos e extensivamente abertos à contestação pública (Dahl, 8).

Assim, os dois eixos que Dahl define em seu texto são os seguintes: o da liberalização (ou contestação pública) e o da inclusividade (ou o grau de participação da sociedade no governo). Quanto maiores forem os graus de liberalização e de inclusividade, mais próximo da “poliarquia perfeita” determinado regime estará.

Tendo-se em mente tais eixos, é possível afirmar que a Rússia ampliou, após o fim da União Soviética, a sua taxa de participação política da população, por meio de eleições livres e regulares, e também ampliou o grau de contestação pública ao regime, permitindo manifestações populares e o surgimento de uma verdadeira oposição a ambos os regimes.

O principal resultado da reforma política na Rússia desde o início da Perestroika foi a participação popular. Os cidadãos saíram de um estágio de total “alienação” em relação à escolha dos seus governantes e atingiram um estágio onde a democracia foi instaurada e consolidada – pelo menos a democracia formal, onde a ênfase é dada à possibilidade de voto às pessoas. O processo eleitoral na Rússia nunca deixou de acontecer, desde o fim da União Soviética. As eleições parlamentares e presidenciais ocorreram sempre nas datas previstas, sendo que nenhuma delas foi suspensa – mesmo quando esta possibilidade existiu. A partir das eleições de 1995, podemos perceber que a contestação pública ao sistema passa a ser não apenas oficial, mas principalmente efetiva. Com a pluralidade de partidos políticos, cada qual com sua respectiva ideologia, a população pôde escolher dentre as diversas opções disponíveis, dando a maioria na Duma ao Partido Comunista da Federação da Rússia.

Outro ponto importante na reforma política russa, e que também está relacionado à questão das eleições, foi a possibilidade de abertura de novos partidos políticos e da desconcentração do poder político, que antes estava nas mãos apenas do Partido Comunista. A pluralidade partidária, refletida na Assembléia Federal, foi uma das grandes e importantes conquistas do povo russo, com o fim do monopartidarismo comunista.

Um terceiro ponto importante na reforma política russa foi a criação de um sistema político-administrativo nos moldes ocidentais, com três poderes independentes entre si. O poder Judiciário, que existia mas era inoperante na União Soviética, passou a ter grande importância – e influência – no andamento dos processos políticos da Rússia, como por exemplo na denúncia de medidas inconstitucionais executadas por parte do poder Executivo. Desta forma, o sistema ocidental de pesos e contrapesos passou a existir também na Rússia, de forma que o poder não ficasse concentrado apenas nas mãos do poder Executivo. Obviamente que, para não ser “engolido”, o poder Judiciário se aliou diversas vezes ao poder Legislativo, objetivando formar um peso de oposição ao poder Executivo e suas medidas arbitrárias impetradas por Boris Ieltsin – presidente da Rússia de 1992 a 2000. Da mesma forma, também o poder Legislativo conseguiu sua independência – ainda que relativa – em relação ao poder Executivo, podendo os parlamentares, que foram escolhidos pela população, efetivamente irem contra as políticas neoliberais do poder Executivo.

As reformas política e econômica ocorridas na Rússia durante a década de 90 criaram uma conjuntura onde foi possível a passagem de um sistema centralizado e autoritário para um sistema aonde, pelo menos, as pessoas podem votar e onde o Parlamento pode, e muitas vezes consegue, contrabalançar as medidas tomadas pelo poder Executivo. Deste ponto de vista, é possível afirmar que existe, pelo menos em termos formais, uma grande participação política e também uma grande contestação pública aos atos do governo. É importante também realçar que essa participação da população na vida política do país começou ainda no período soviético, e vem evoluindo em um crescendo contínuo, o mesmo ocorrendo com a contestação da população aos atos do governo.

A inclusão de mais e mais camadas da população no processo eleitoral caracteriza a participação política da população. No caso da Rússia, enquanto ainda no período da União Soviética, tal participação era inexistente: só veio acontecer pela primeira vez em 1989, com as primeiras eleições diretas para o Congresso dos Deputados do Povo. Já a contestação pública ao sistema começou a ser realizada um pouco antes, por volta de 1987, com o aprofundamento e com a consolidação da liberdade de imprensa e com a possibilidade de manifestações políticas contra o próprio sistema, possibilitado pelo ambiente político da Perestroika.

Após o fim da União Soviética, a tendência foi a total consolidação da participação política da sociedade. Ocorreram três eleições parlamentares na década de 90 na Rússia (em 1993, 1995 e 1999) e duas eleições presidenciais no mesmo período (em 1996 e em 2000), além das eleições parlamentares de 2003 e 2007 e das eleições presidenciais de 2004 e 2008. A participação da população aumentou gradativamente em cada uma dessas eleições, caracterizando a participação da população no governo. Ao mesmo tempo, o voto dos cidadãos russos foi dado majoritariamente para candidatos de oposição (no caso das eleições parlamentares), o que também caracteriza a contestação pública ao sistema político vigente. Também em relação à contestação pública, houve um aumento significativo na possibilidade de manifestações abertas contra o governo, incluindo passeatas que pressionaram o Parlamento a tomar atitudes contra o poder Executivo.

Desta forma, vemos que a democracia formal já está implantada e consolidada na Rússia, com eleições regulares e com a participação de grande parte da população. Também a contestação pública começa a se consolidar, não apenas com passeatas e manifestações populares nas ruas, mas também com a criação e o funcionamento de instituições que permitem caracterizar a contestação pública. A escolha de parlamentares que fazem oposição ao governo é uma conseqüência do processo de consolidação da contestação pública e da participação política da população. Vale lembrar que a contestação pública continuou em 1999, quando, mais uma vez, o Partido Comunista da Federação da Rússia obteve maioria – ainda que não absoluta – na Duma, após as eleições parlamentares.

Assim, podemos afirmar que as reformas políticas e econômicas realizadas na Rússia efetivamente contribuíram para aumentar a participação da sociedade na definição dos rumos do país, além de possibilitar que esta sociedade se manifestasse contra o governo.

Contudo, é válido que façamos uma ressalva: a participação política e a contestação pública definidas por Dahl referem-se à chamada “democracia formal”, e não à “democracia substantiva”. A democracia formal é aquela considerada como uma “democracia de procedimentos”, ou seja, o que importa são os meios e os procedimentos utilizados no processo democrático. Assim, para essa “vertente”, os países são considerados democráticos se possuírem o sufrágio universal, se houver um sistema partidário organizado, se forem realizadas eleições regulares e se os mandatos dos eleitos forem fixos. A ênfase recai sobre aspectos institucionais: se estes garantirem a expressão política das pessoas, a democracia está garantida. Já a vertente da democracia substantiva argumenta que não basta apenas a existência de mecanismos eleitorais para a manutenção da democracia: aspectos econômicos e sociais influem no resultado dos votos das pessoas. Assim, de acordo com esta vertente, o voto de um empresário valeria mais do que o voto de um mendigo, já que o empresário tem acesso a muito mais informações e oportunidades do que um mendigo. As condições sócio-econômicas, por influírem no resultado das eleições, também devem ser consideradas ao se definir as democracias. As desigualdades sociais se refletem em desigualdades políticas.

Podemos estender este argumento também para a Rússia: conforme já afirmado, a democracia formal, com eleições periódicas e justas, já está instaurada e, pode-se dizer, consolidada. Mas é necessário mais do que isso para garantirmos a verdadeira participação qualitativa da população, e não apenas quantitativa. É necessário que a reforma do Estado na Rússia amplie a noção de democracia, fortalecendo a garantia aos direitos políticos e civis, bem como garantindo a possibilidade de concretização de valores sociais e de interesses não econômicos. É necessário, também, ter a visão de que o indivíduo não é um mero “cliente” dos serviços produzidos pelo Estado e/ou pela iniciativa privada: o indivíduo deve ser visto como um cidadão, onde as noções de coletividade, de bem comum e de subjetividade de cada um são tão importantes quanto a mera concretização de interesses econômicos por parte daqueles que controlam o mercado.

Referências bibliográficas:

DAHL, Robert A. Poliarchy. New Haven e Londres: Yale University Press, s/d.

18 de agosto de 2008

Por trás da miniguerra no Cáucaso, o xadrez geopolítico

Parece que os Estados Unidos se enganaram redondamente quando imaginaram ter alguma espécie de privilégio de superpotência em sua partida contra a Rússia
IMMANUEL WALLERSTEIN

O mundo testemunhou nesta semana uma miniguerra no Cáucaso, e a retórica tem sido intensa, embora em grande medida irrelevante. A geopolítica é uma série de gigantescas partidas de xadrez disputadas entre dois jogadores, nas quais estes buscam posições de vantagem. Nessas partidas, é crucial conhecer as regras vigentes que regem os lances. Os cavalos não podem andar na diagonal. Entre 1945 e 1989, a partida principal de xadrez era disputada entre os Estados Unidos e a União Soviética. Ela se chamava a Guerra Fria, e as regras básicas do jogo eram conhecidas metaforicamente como "Yalta". A regra mais importante dizia respeito a uma linha que dividia a Europa em duas zonas de influência. Essa linha foi chamada por Winston Churchill de "Cortina de Ferro" e se estendia de Stettin a Trieste. A regra dizia que, não importasse quanta turbulência fosse instigada na Europa pelos peões, não haveria guerra de fato entre os Estados Unidos e a União Soviética. Ao final de cada instância de turbulência, as peças voltariam a suas posições originais. Essa regra foi respeitada cuidadosamente até a queda dos comunismos, em 1989, marcada mais notadamente pela destruição do Muro de Berlim. É inteiramente verdade, como todos observaram na época, que as regras de Yalta foram anuladas em 1989 e que a partida disputada entre os Estados Unidos e (desde 1991) a Rússia mudou de maneira radical. O maior problema desde então é que os Estados Unidos não compreenderam direito as novas regras do jogo. Eles se proclamaram, e foram proclamados por muitos outros, a única superpotência mundial. Em termos de regras de xadrez, isso foi interpretado como significando que os Estados Unidos tinham liberdade para movimentar-se pelo tabuleiro de xadrez como bem entendessem e, especialmente, para transferir antigos peões soviéticos para sua esfera de influência. Sob Clinton, e mais notadamente ainda sob George W. Bush, os Estados Unidos passaram a jogar a partida dessa maneira. Só havia um problema nisso: os Estados Unidos não eram a única superpotência mundial -nem sequer eram uma superpotência.

Mais jogadores
O fim da Guerra Fria significou que os Estados Unidos foram rebaixados. De uma das duas superpotências, passaram a ser um Estado forte em meio a uma distribuição realmente multilateral do poder real em um sistema inter-Estados. Muitos países grandes passaram a poder disputar suas próprias partidas de xadrez sem precisarem informar as duas antigas superpotências de seus lances. E começaram a fazê-lo. Duas decisões geopolíticas de importância maior foram tomadas nos anos Clinton. Primeiro, os Estados Unidos fizeram pressão grande e mais ou menos bem-sucedida para que os antigos satélites soviéticos ingressassem na Otan [a aliança militar ocidental]. Esses países estavam ansiosos por entrar, apesar de os países-chave da Europa Ocidental -Alemanha e França- relutarem um pouco em seguir esse caminho. Eles viam a manobra dos EUA como tendo o objetivo, em parte, de limitar sua recém-adquirida liberdade de ação geopolítica. A segunda decisão-chave dos Estados Unidos foi tornar-se jogador ativo nos realinhamentos de fronteiras dentro da antiga República Federal da Iugoslávia. Isso culminou na decisão de autorizar a secessão de facto de Kosovo da Sérvia e implementá-la com suas tropas. A Rússia, mesmo sob Boris Ieltsin, ficou bastante insatisfeita com essas duas ações dos Estados Unidos. Mas a desorganização política e econômica da Rússia durante os anos Ieltsin era tão grande que o máximo que ela pôde fazer foi queixar-se, em voz bastante fraca, é mister acrescentar. A chegada ao poder de George W. Bush e Vladimir Putin foi mais ou menos simultânea. Bush decidiu levar a tática da superpotência única (ou seja, os Estados Unidos podem movimentar suas peças da maneira como decidem por conta própria) muito mais longe do que fizera Clinton.

Regras próprias
Para começar, em 2001 Bush retirou o país do Tratado de Mísseis Antibalísticos firmado por EUA e União Soviética em 1972. Em seguida, anunciou que os Estados Unidos não ratificariam dois tratados novos assinados durante o governo Clinton: o Tratado de Proibição Total de Testes, de 1996, e as modificações acordadas no tratado de desarmamento nuclear SALT 2. Então Bush anunciou que os Estados Unidos iriam adiante com seu Sistema Nacional de Defesa Antimísseis. E, em 2003, Bush invadiu o Iraque. Como parte dessa iniciativa, os Estados Unidos buscaram e obtiveram o direito de construir bases militares e o direito de sobrevoar repúblicas centro-asiáticas que antes faziam parte da União Soviética. Além disso, os EUA promoveram a construção de dutos para o escoamento do petróleo e gás natural da Ásia Central e do Cáucaso, passando ao largo da Rússia. E, finalmente, os Estados Unidos fecharam um acordo com a Polônia e a República Tcheca para instalar uma defesa antimísseis, ostensivamente para proteção contra mísseis iranianos. A Rússia, porém, viu essas instalações como sendo voltadas contra ela. Putin decidiu reagir com muito mais eficácia que Ieltsin. Sendo um jogador prudente, porém, ele primeiro se movimentou para fortalecer sua base doméstica, restaurando a força da autoridade central e revigorando as Forças Armadas russas. Nesse momento, as marés da economia mundial mudaram, e, de uma hora para outra, a Rússia tornou-se a rica e poderosa controladora não apenas da produção petrolífera, mas também do gás natural tão necessário aos países da Europa Ocidental.

Adversário fortalecido
Então Putin começou a agir. Ele criou relacionamentos com a China, selados em tratados. Manteve relações estreitas com o Irã. Começou a expulsar os Estados Unidos de suas bases na Ásia Central. E assumiu uma atitude firme contra a ampliação da Otan para duas zonas-chave: a Ucrânia e a Geórgia. A fragmentação da União Soviética levara ao surgimento de movimentos secessionistas étnicos em muitas antigas repúblicas, incluindo a Geórgia. Quando, em 1990, a Geórgia procurou pôr fim ao status autônomo de suas zonas étnicas não-georgianas, estas imediatamente se declararam Estados independentes. Não foram reconhecidas por nenhum país, mas a Rússia garantiu sua autonomia de fato. Os fatores mais imediatos a incentivar o desencadeamento da miniguerra atual foram dois. Em fevereiro, Kosovo formalmente converteu sua autonomia de fato em independência de direito. Sua iniciativa foi apoiada e reconhecida pelos Estados Unidos e muitos países da Europa ocidental. A Rússia avisou, na época, que a lógica dessa iniciativa se aplicaria igualmente a secessões de fato ocorridas nas antigas repúblicas soviéticas. Na Geórgia, a Rússia imediatamente e pela primeira vez reconheceu a independência de direito da Ossétia do Sul, em resposta direta à de Kosovo. E, na reunião da Otan de abril deste ano, os Estados Unidos propuseram que Geórgia e Ucrânia fossem recebidas num chamado Plano de Ação para Ingresso (na Otan). A Alemanha, a França e o Reino Unido se opuseram, dizendo que isso provocaria a Rússia.

Jogada desesperada
O presidente neoliberal e fortemente pró-americano da Geórgia, Mikhail Saakashvili, se desesperou. Ele via a reafirmação da autoridade georgiana na Ossétia do Sul (e também na Abkházia) como perspectiva cada vez mais distante, de maneira permanente. Assim, escolheu um momento de desatenção da Rússia (Putin estava nas Olimpíadas, o presidente Dmitri Medvedev, de férias) para invadir a Ossétia do Sul. As insignificantes forças militares da Ossétia do Sul desabaram completamente, é claro. Saakashvili imaginava que forçaria os Estados Unidos (e também a Alemanha e a França) a sair em seu apoio. Em vez disso, houve uma reação militar russa imediata, superando o pequeno Exército georgiano de forma avassaladora. O que Saakashvili recebeu de George W. Bush foi retórica. Afinal, o que Bush podia fazer? Os Estados Unidos não são uma superpotência. Suas Forças Armadas estão inteiramente tomadas por duas guerras que estão perdendo no Oriente Médio. E, o mais importante de tudo, os Estados Unidos precisam da Rússia muito mais do que a Rússia precisa deles. O chanceler russo, Sergei Lavrov, em artigo no "Financial Times", fez questão de observar que a Rússia é "parceira do Ocidente com relação ao Oriente Médio, Irã e Coréia do Norte". Quanto à Europa ocidental, a Rússia, essencialmente, controla seu suprimento de gás. Não foi por acaso que foi o presidente Nicolas Sarkozy, da França, e não Condoleezza Rice, quem negociou a trégua entre Geórgia e Rússia. A trégua contém duas concessões essenciais da Geórgia. Esta se comprometeu a não mais recorrer à força na Ossétia do Sul. E o acordo não faz referência à integridade territorial georgiana. Assim, a Rússia emergiu muito mais forte que antes. Saakashvili apostou tudo o que tinha e agora esta geopoliticamente falido. E, como nota de rodapé irônica, a Geórgia, uma das últimas aliadas nos EUA na coalizão no Iraque, retirou seus 2.000 soldados desse país. Esses soldados vinham exercendo um papel crucial nas áreas xiitas e agora terão que ser substituídos por soldados dos EUA, que, para isso, terão que ser retirados de outras áreas. Quando se joga xadrez geopolítico, é aconselhável conhecer as regras, para não ser derrubado pela jogada do rival.

IMMANUEL WALLERSTEIN, pesquisador sênior na Universidade Yale, é autor de "O Declínio do Poder Americano".

Casos de corrupção no país têm estruturas parecidas

(Original aqui.)

Diversos casos de corrupção no Brasil envolvendo recursos do orçamento da União têm contornos parecidos. Muitas vezes, os escândalos fraudulentos até parecem um déjà vu, expressão francesa que significa “já ter visto”. Alguns exemplos claros, com estruturas semelhantes, foram os episódios dos “sanguessugas”, com a venda dolosa de ambulâncias; da construtora Gautama, apontada como a principal beneficiada do esquema de fraude em licitações públicas, e, ainda, do suposto desvio de recursos em obras de 114 municípios, algumas delas do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), descoberto pela operação João de Barro.

Nos três casos ocorreu o seguinte: parlamentares apresentando emendas ao orçamento, funcionários do Executivo auxiliando ou se omitindo quanto à fiscalização na liberação dessas emendas, prefeituras e empresas privadas beneficiadas com a situação. Para fechar o ciclo, diversas empresas envolvidas financiavam campanhas eleitorais de forma a eleger parlamentares. A prática deu certo, ao menos até o momento em que a Polícia Federal, com ajuda do Ministério Público, entrou em cena para desbaratar os esquemas.

Segundo o ministro da Controladoria-Geral da União (CGU), Jorge Hage, há características comuns nos casos apresentados, no entanto, para ele, cada um tem suas particularidades. “Nem sempre há funcionários do Executivo envolvidos para ajudar na liberação de emendas. Muitas vezes, os recursos são liberados normalmente em blocos, não existindo a necessidade de ajuda nessa etapa”, destaca.

De acordo com Jorge Hage, nos casos de parlamentares honestos, o problema começa quando o dinheiro das emendas chega às prefeituras. “Aí é que começa a corrupção, envolvendo apenas pessoas da prefeitura, de empresas fornecedoras, empreiteiras, etc.”, frisa. “Há também casos em que as empresas entram em conluio sem a participação de gestores (mesmo os prefeitos)”, pondera o ministro.

Para o cientista político Leonardo Barreto, existe uma relação promíscua e antiga que envolve empresários, parlamentares e o Poder Executivo. “Os empresários ‘compram’ emendas, os parlamentares as apresentam na comissão de orçamento e o Executivo privilegia a liberação de verba para a sua implantação. Todo o processo é absolutamente viciado”, constata.

O cientista político e professor de Teoria da Corrupção da Universidade de Brasília (UnB) Ricardo Caldas afirma que uma reforma política precisa ser discutida. Segundo ele, as emendas parlamentares, por exemplo, viabilizam candidaturas de deputados e senadores, pois as empresas beneficiadas pela verba prevista apóiam os candidatos. “Grande parte dos políticos que estão no poder hoje são os sobreviventes desse sistema. Eles aprenderam a viver com esse mecanismo. Por isso, não há interesse da classe na mudança desses pontos. O orçamento também não pode ser muito flexível, pois em finais de ano, os recursos são liberados de tudo quanto é jeito”, argumenta.

Caldas acredita que o problema da corrupção no Brasil é endêmico e tem raízes culturais. Segundo ele, a formação do Brasil por meio do estado lusitano é marcado pelo patrimonialismo, situação onde não se consegue separar o bem público do privado. “Entre outros pontos, o ambiente no Brasil ainda é propício a corrupção. Não há um sistema forte para combater o problema. O sistema político também é frouxo, flexível, aceita a corrupção. Faz parte da nossa cultura o ‘rouba mas faz’ ou o pensamento de que ‘já tem alguém fazendo, por que eu vou fazer?’. Ainda há questão da alta impunidade”, relata Caldas.

Nos casos dos “sanguessugas”, da Gautama e da Operação João de Barro, tanto houve recursos de emendas já direcionadas desde a origem para a corrupção, com envolvimento de parlamentares, funcionário do Executivo, prefeito ou pessoa próxima e empresa que ganharia a licitação, como houve também situações em que a corrupção esteve limitada ao nível local, ou seja, prefeitura-empresa.

Como evitar

Para combater o surgimento de novos episódios, a CGU, órgão de fiscalização interna do Executivo, destaca o uso de ferramentas de tecnologia da informação que automatizam os processos. Outras medidas são o incremento da transparência pública e o estímulo à participação e ao controle social como, por exemplo, o Portal da Transparência e o Portal dos Convênios, previsto para ser implementado no começo de setembro. O novo site publicará todos os processos de celebração e execução dos convênios firmados pela União, inclusive, licitações realizadas por estados e municípios para aplicar os recursos recebidos.

Já na área de repressão, as principais medidas adotadas pela CGU são o envio de todos os relatórios de auditoria da Controladoria ao Ministério Público Federal e ao Tribunal de Contas da União, a instauração de processos administrativos disciplinares e as sindicâncias para apurar responsabilidades e aplicar sanções, além da instauração de processos para declarar inidôneas as empresas apanhadas nesses esquemas. A CGU já declarou inidôneas para firmar contratos com a administração pública a Construtora Gautama e todas as empresas do clã Vedoin (Planam, Klass, Sta Maria e Enir Rodrigues EPP).

Para Leonardo Barreto, o caso dos anões do orçamento, ocorrido em 1993, serve de jurisprudência para a análise dos crimes relacionados – envolvendo parlamentares por meio de emendas, funcionários do Executivo, prefeitos e empresas. “Desde esse episódio, mudou-se a forma como se organiza a comissão de orçamento do Congresso e modificou-se a legislação. Hoje, possuímos um sistema muito mais transparente e eficiente do que tínhamos naquele período”, ressalta.

O esquema dos anões do orçamento consistiu em parlamentares responsáveis pela elaboração do Orçamento Geral da União (OGU) utilizando-se de emendas para enriquecimento ilícito. Faziam parte da quadrilha governadores, ministros, senadores e deputados. Os envolvidos recebiam comissões gordas para favorecer empreiteiras e desviavam recursos para entidades de assistência social fantasmas. A maior parte dos integrantes era formada por parlamentares de pequena estrutura. Por isso, o título de anões do orçamento.

Leonardo Barreto sustenta ainda que o maior problema nos casos de corrupção é a impunidade, sobretudo, das autoridades envolvidas. “A sociedade deve estar absolutamente mobilizada para combater essa verdadeira chaga, exigindo, inicialmente, a realização de reformas que possibilitem o rápido julgamento e o cumprimento das penas. O sentimento de impunidade duplica a percepção da sociedade sobre a corrupção, prejudicando o funcionamento de todo o sistema político”, conclui.

Ainda há esperança

A população brasileira ainda acredita que a corrupção pode ser combatida. Pesquisa publicada no final do ano passado pela Universidade de Brasília (UnB) apontou que 84,9% da população confiam na redução da criminalidade. No entanto, o autor do estudo, Ricardo Caldas, acredita que a sociedade brasileira não é participativa e atuante. “No Brasil, as pessoas só tomam alguma atitude quando há interesse privado, como votação de aumento de seu próprio salário, 13º, etc. Não houve nenhum movimento, por exemplo, contra a corrupção, mesmo diante das últimas crises”, afirma.

De acordo com o estudo, o brasileiro também desconfia das punições impostas pela Justiça. Quase a metade dos entrevistados não confia nos juízes e 91% dos entrevistados acreditam que a Justiça não pune com rigor os políticos. Quase 80% dos cidadãos discordam do foro privilegiado a políticos e magistrados e defendem ainda que um candidato “ficha-suja” não pode concorrer à eleição.

O estudo aponta também que 75,5% da população brasileira confiam na Polícia Federal (PF), 52,7% no Supremo Tribunal Federal (STF) e metade não acredita no Poder Judiciário. A pesquisa, realizada com mais de duas mil pessoas de todo o país, foi realizada em agosto de 2007 e teve como principal objetivo avaliar a opinião dos brasileiros em relação às instituições de governo e a imagem do Poder Judiciário.

(Continua aqui.)

Enfim, uma eleição municipal de verdade

(Original aqui.)

Enfim, uma eleição municipal de verdade
Ricardo Amaral

Começa nesta semana a propaganda eleitoral de uma campanha que promete ser o que o nome diz: municipal. Cerca de 15 mil candidatos a prefeito devem falar muito ao eleitor sobre suas cidades e relativamente pouco sobre temas “nacionais”. Parece óbvio, mas não é comum em nossa democracia. No passado, eleições para vereador foram engolidas pela polarização política originada em Brasília. Isso não deve ocorrer agora – e é uma boa notícia para as eleições e para o futuro das cidades.

Por motivos distintos, nem o Planalto nem a oposição quiseram transformar as eleições municipais num plebiscito ou numa prévia da sucessão presidencial. Ao governo não interessa antecipar o debate de 2010 antes de consolidar o nome do candidato oficial – ou da candidata, como parece ser o caso – e correr o risco de desarrumar, na disputa pelas cidades, a complicada coalizão partidária que o sustenta no Congresso. A oposição nada tem a ganhar nacionalizando o debate eleitoral, num momento em que o presidente Lula desfruta índices recordes de aprovação. Por isso, são raros na paisagem de 2008 os candidatos “de protesto”, assim como as chapas formadas na intenção de esticar até as prefeituras o longo braço do governo federal.

Em 2004, o PT tentou fazer das eleições municipais a plataforma de um ambicioso projeto de poder nacional. Além de errar no objetivo, o comando petista comprometeu-se com a estratégia de comprar aliados entre os partidos médios. O primeiro resultado foi um redondo fracasso político – resumido na vitória, em São Paulo, do tucano José Serra, o adversário batido por Lula na eleição presidencial de 2002. A segunda conseqüência da megalomania petista foi o escândalo do mensalão, que apareceu no estouro da contabilidade clandestina do partido com os parceiros PTB, PL e PP.

Escaldado no desastre de 2004, o presidente Lula barrou as pretensões exclusivistas do PT e obrigou seu partido a aceitar a disputa democrática com os aliados, nas cidades onde os acordos não puderam ser feitos naturalmente. Por isso, há uma dispersão de candidatos de partidos governistas, de norte a sul, e apenas uma vaga expectativa de unidade no segundo turno. No outro extremo, os principais partidos de oposição, PSDB e DEM, apresentaram-se descasados na maioria das grandes cidades, incluindo São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte.

Em São Paulo, a candidatura do prefeito Gilberto Kassab (DEM) à reeleição expõe também uma divisão local do PSDB, entre o governador Serra e o candidato do partido, Geraldo Alckmin. No Rio, o PSDB entregou-se em aliança ao candidato do PV, Fernando Gabeira, contra a candidata do DEM, Solange Amaral, apoiada pelo prefeito Cesar Maia. Em Belo Horizonte, o governador tucano Aécio Neves aliou-se ao prefeito petista Fernando Pimentel, ambos apoiando um candidato terceirizado: Marcio Lacerda, do PSB. Ali, o DEM ficou isolado e apresentou um candidato sem chances.

Evidentemente, o mapa político resultante das eleições de outubro vai orientar a corrida presidencial. Mas esse impacto será menos visível que os efeitos sobre as disputas regionais. Geraldo Alckmin é candidato para garantir sua presença na política, provavelmente para tentar voltar ao governo do Estado, embora amigos de Serra vejam aí um obstáculo no caminho do governador rumo ao Planalto. A união de Aécio a Pimentel em Minas favorece as pretensões nacionais do tucano. Mas quem arrisca o próprio futuro é o prefeito petista, que depende da vitória para disputar o governo do Estado em 2010. No Rio, a eleição é uma batalha de Cesar Maia, pela sobrevivência, e do governador Sérgio Cabral (PMDB), pela consolidação de sua força política regional.

Houve momentos em que o debate de problemas gerais, como inflação e desemprego, se impôs e contaminou eleições municipais. Felizmente, é a exceção, não a regra. Por isso, o eleitor tem agora a oportunidade de exigir dos candidatos a prefeito e vereador um debate qualificado sobre as cidades que eles querem administrar nos próximos quatro anos.

15 de agosto de 2008

Deputados pedem ao TSE liberação da internet para campanha eleitoral

(Original aqui.)

Deputados pedem ao TSE liberação da internet para campanha eleitoral
da Folha Online

Deputados da Comissão de Ciência e Tecnologia da Câmara pediram ao TSE (Tribunal Superior Eleitoral), em audiência com o presidente do tribunal, ministro Carlos Ayres Britto, nesta quarta-feira, a liberação do uso da internet na campanha das eleições municipais.

"O artigo que trata da internet é muito restritivo, limita o seu uso exclusivamente aos sites oficiais de campanha, inibindo os candidatos a utilizarem ferramentas importantes e gratuitas para a divulgação de suas propostas", afirmou o deputado Julio Semeghini (PSDB-SP).

Segundo os parlamentares, o presidente do TSE foi receptivo à proposta, mas pediu uma solicitação por escrito, já que a proposta foi apresentada verbalmente.

O presidente da comissão, deputado Walter Pinheiro (PT-BA), defendeu o uso da internet como forma de "equalização" das condições de divulgação das propostas dos candidatos.

Para os parlamentares, o uso de links, vídeos, entre outras ferramentas comuns na internet, podem incentivar o debate e a transparência nas eleições.

Também participaram da audiência os deputados Jorge Bittar (PT-RJ) e Paulo Teixeira (PT-SP).

13 de agosto de 2008

Eleições limpas no Brasil?

(Original aqui.)

Maioria dos eleitores não acredita em eleições limpas no Brasil, diz Vox Populi
EDUARDO CUCOLO
da Folha Online, em Brasília

A maioria dos eleitores considera que os políticos não cumprem as promessas que fazem, usam a política em benefício próprio e também afirmam que as eleições no Brasil não são feitas de maneira limpa. Esse é o resultado de uma pesquisa feita pelo instituto Vox Populi a pedido da AMB (Associação dos Magistrados Brasileiros).

Para 82% dos eleitores, a maioria dos políticos eleitos não cumpre promessas feitas durante a campanha. Além disso, 85% consideram a política como uma atividade que só beneficia os próprios políticos, e não o povo.

Ainda segundo a pesquisa, 52% dizem que os resultados das eleições não são alcançados de "maneira limpa, sem fraudes" e com resultados confiáveis. Apenas 30% avaliam que as eleições são limpas e outros 18% não manifestaram opinião.

O presidente da AMB, Mozart Valadares Pires, disse acreditar que a questão das fraudes está relacionada a casos de uso da máquina administrativa para beneficiar candidatos e não a fraudes na votação, embora esse entendimento não esteja explicitado na pesquisa, feita por meio de questionários.

"Quando ele falou de fraude, falou no uso da máquina administrativa e do poder econômico durante o período eleitoral. São atos ilícitos para beneficiar determinados candidatos", afirmou.

Pires destaca que, apesar desse descrédito, 51% disseram que iriam votar e 11% afirmaram que provavelmente votariam mesmo que o voto não fosse obrigatório. Outros 30% afirmavam que não votariam se não fossem obrigados.

Corrupção

Apesar de considerar que o resultado das eleições não é muito confiável, a maioria dos eleitores afirmou desconhecer casos de corrupção.

A maioria dos entrevistados (69%) afirmou não conhecer casos de compras de votos. Se soubessem, 44% denunciariam com certeza e 16% "provavelmente denunciariam" o candidato.

Outros 22% disseram que não fariam a denúncia, enquanto 13% provavelmente não denunciariam.

Não houve perguntas sobre a questão da ficha suja de candidatos que respondem a processos, porque a pesquisa também foi feita em parceria com o TSE (Tribunal Superior Eleitoral).

Na semana passada, uma pesquisa apenas da AMB mostrou que 88% não votariam em candidatos que respondem a processos na Justiça.

Partido x pessoa

A pesquisa também mostra que o partido político tem pouco peso na escolha do eleitor. Apenas 10% dos eleitores afirmaram que escolherão os candidatos nas próximas eleições mais pelo partido, enquanto 76% levarão em conta "mais a pessoa".

Na escolha do candidato, o critério considerado mais importante foi a proposta de trabalho, seguido pelos benefícios para a sua comunidade e a experiência do político. Esses três critérios são considerados importantes ou muito importantes para cerca de 90% dos entrevistados.

Já o partido político tem importância apenas para 54% dos eleitores.

Responsabilidades

Em relação às obrigações dos políticos, um dado mostra uma tendência dos eleitores de quererem obter benefícios pessoais junto aos políticos eleitos.

Cerca de 95% dos entrevistados disseram considerar como obrigações dos vereadores discutir e aprovar leis e fiscalizar as contas das prefeituras.

Mais de 80% também listaram como obrigações, no entanto, ajudar a resolver problemas com órgão públicos e pagar despesas de hospital e enterro para pessoas necessitadas.

Em relação aos prefeitos, essas questões sobre assistencialismo são destacadas por cerca de 85% dos entrevistados.

O levantamento foi realizado entre os dias 27 de junho e 6 de julho, com 1.502 pessoas em todo o país. A margem de erro é de 2,5 pontos percentuais.

11 de agosto de 2008

Por que o eleitor deve mudar a forma de votar

(Original aqui.)

Não há personagem mais criticado na sociedade contemporânea que os políticos. De fato eles são muitas vezes responsáveis por diversas mazelas sociais. Mas duas coisas não devem ser esquecidas. Em primeiro lugar, são os cidadãos que elegem seus representantes, o que lhes dá o poder de premiar os melhores e punir os piores. Além disso, vários vícios políticos começam na relação que os eleitores estabelecem com seus candidatos na época da eleição. Sem mudar a maneira como as pessoas definem seu voto, a eterna ladainha contra os políticos vai permanecer estéril.

Dois tipos de escolha eleitoral alimentam a descrença na política. O primeiro vincula-se ao modelo paternalista-clientelista. São aqueles eleitores que votam à espera da defesa de seu interesse mais imediato. Numa versão mais benigna, o político será aprovado se garantir o posto de saúde ou a linha de ônibus para a sua clientela. Numa versão mais maligna, os representantes serão reeleitos se obtiverem alguma benesse mais palpável ao eleitor, como um emprego público.

Em ambos os casos, o mesmo cidadão que fica contente por ter sido beneficiado diretamente é aquele que poderá ser prejudicado em decisões que afetam o conjunto da coletividade. Em troca do voto, ele “ganha” uma casa próxima a uma região de manancial e anos depois o “presente” transforma-se em problema, quando o abastecimento de água é atingido, afetando toda a cidade, incluindo aí o seu lar. Num cenário pior, o eleitor fica feliz de dia com as migalhas recebidas de seu padrinho político e entristece à noite ao ver, no jornal da TV, a reportagem sobre as maracutaias cometidas por seu “protetor”.

Outro padrão eleitoral perverso é o “desinteressado pela política”. Sua visão é fatalista, baseada no discurso “meu voto não muda nada” ou no lema “os políticos são todos iguais”. Por isso, esse cidadão não procura se informar muito na época da eleição e define seu voto às vezes seguindo o conselho de um amigo. Outras vezes, orienta-se pelo marketing político ou opta pelo “candidato cacareco”, escolhendo o mais exótico para protestar contra o sistema. Esse comportamento torna a perspectiva fatalista uma realidade.

Esses dois tipos de eleitor são alimentados pela maneira como grande parte dos políticos atua. Muitos mantêm a prática tradicional das barganhas localistas e personalistas, principalmente na disputa para vereador. Para os cargos majoritários, como prefeito, predomina um marketing das “promessas sem fim”, recheadas por formas modernas de comunicação. Aliás, a modernização da linguagem de campanha poucas vezes é acompanhada pela transformação da prática dos políticos.

Uma parcela significativa dos cidadãos não se encaixa nas duas categorias aqui expostas, e mesmo os “paternalistas-clientelistas” e os “desinteressados” não são meramente engabelados pelos políticos. Estudos mostram como boa parte dos eleitores tem punido os maus políticos, os envolvidos ou suspeitos de corrupção – como revelou uma pesquisa de Carlos Pereira (Michigan State/FGV), Marcus Melo (UFPE) e Carlos Maurício (UFPE). Mas a punição não leva à escolha de candidatos melhores.

Neste sentido, vale citar alguns critérios importantes para a definição do voto. O primeiro é geral: informe-se sobre a eleição por várias vias, que abarquem versões diferentes da realidade. A pluralidade de opiniões favorece fugir das falácias do marketing político. Num plano mais específico, é preciso saber quanto seus candidatos conhecem os problemas de sua cidade e se apresentam propostas factíveis. Desconfie de planos mirabolantes e dê preferência aos que digam quanto custa cada promessa – afinal, “não há almoço grátis”.

As idéias são muito importantes, mas elas podem ser mais bem avaliadas se contrastadas com a biografia dos candidatos. Além do mais, não se oriente apenas por seus interesses mais imediatos. Quem não conseguir lutar pelo que é bom para todos certamente um dia o prejudicará. Talvez seja a miopia de eleitores e de políticos o que mais alimenta hoje a visão negativa sobre o mundo da política. Para consertar isso, adote critérios que dêem uma visão telescópica ao seu voto.