27 de agosto de 2008

A Duma soviética e a Duma russa: um estudo de caso (III)

(Continuação da postagem anterior.)

A RÚSSIA PÓS-COMUNISTA

Com o fim da União Soviética em 1991, doze novos países surgiram no cenário internacional (devemos nos lembrar de que a Letônia, a Estônia e a Lituânia já eram independentes). Dentre esses novos países, o mais importante é a Rússia, que já ocupava lugar de destaque dentro da própria União Soviética, por ser a maior das repúblicas que formavam o antigo país. A Rússia era a maior não só em extensão territorial, mas também em recursos naturais, em população, em desenvolvimento industrial, em recursos tecnológicos e em materiais bélicos, dentre outros.

O PROGRAMA DE AJUSTAMENTO ECONÔMICO

Ao obter sua independência em 1991, com o fim da União Soviética, a Rússia se encontrava com sua economia arrasada, e o declínio continuou em 1992. Muito dessa queda foi ocasionada pela quebra do sistema produtivo soviético, pois a URSS possuía uma rede produtiva interligada em todo o seu território. Quando as repúblicas se separaram, essa rede também se separou, não podendo ser recriada em curto prazo. Além disso, o próprio sistema produtivo soviético já não funcionava, pois as empresas não seguiam mais as ordens recebidas do centro.

Outro fato que contribuiu para a crise de 1992 na Rússia foi a liberalização dos preços promovida por Ieltsin. Esta política estava de acordo com a “terapia de choque” promovida pela equipe do governo, explicitada no “Programa Radical de Construção da Economia de Mercado e de Estabilização Econômica” (Pomeranz 2000, p. 34), que objetivava inserir o capitalismo o mais rápido possível na Rússia para se evitar “dores prolongadas”, mesmo que ocorressem falhas e irregularidades durante este processo. A receptividade da população à liberação dos preços foi negativa, pois houve aumento de preços (em média, o preço dos produtos aumentou de 3 a 5 vezes, com produtos aumentando até 30 vezes) (Segrillo 2000b, p. 74). Além disso, não houve uma melhoria na oferta de produtos conforme o previsto, o que também frustrou a população. Até mesmo membros do governo foram contra esta política, como o presidente do Soviete Supremo da Rússia, Ruslan Khasbulatov, e o próprio vice-presidente russo, Aleksandr Rutskoi.

O programa de estabilização fora criado por Yegor Gaidar, Ministro das Finanças de Ieltsin. A reação contrária ao plano apenas aumentou a convicção de Gaidar de que o governo estava no caminho certo: se os produtos não chegavam às lojas, era porque as indústrias que os fabricavam eram monopolizadas pelo Estado. Isto não deveria ocorrer, e Gaidar propôs que tais empresas fossem privatizadas o mais rápido possível, para incentivar a concorrência. Gaidar tornou-se Primeiro-Ministro em junho de 1992, como forma de mostrar ao Ocidente qual o caminho que a Rússia iria seguir.

No balanço da adoção desses programas, coloca-se o elevado custo social da estratégia adotada – revelado por meio do empobrecimento da população – e a continuidade da crítica situação econômica da Rússia durante todo o período desde o início formal do processo de transformação, expressa no declínio consecutivo do PIB até 1999.

O AMBIENTE POLÍTICO DE 1992 A 1994

O início da privatização deu-se ainda sob o governo de Mikhail Gorbachev, com a introdução de leis sobre o funcionamento das cooperativas urbanas, sobre o trabalho individual e sobre o arrendamento, além de leis sobre joint ventures e sobre a propriedade estatal. Essas leis permitiram não apenas o surgimento de pequenas empresas no setor de serviços, como favoreceram também uma ampla descentralização e desestatização da propriedade, permitindo a apropriação de uma boa parcela da propriedade por parte dos membros da nomenklatura – ou, como são comumente chamados, os diretores vermelhos.

Já durante o governo russo, após o fim da União Soviética, a primeira parte da privatização foi a chamada “privatização por cupons”, onde cada russo receberia, gratuitamente, cupons – ou, oficialmente, “certificados populares de privatização” – no valor de dez mil rublos. Esses cupons poderiam ser trocados por ações das empresas estatais que estavam sendo privatizadas. O objetivo era dar uma “aura” de democracia no processo, fazendo com que as pessoas “comuns” pudessem ter participação nas empresas, evitando-se a concentração nas mãos de poucos. Além disso, objetivava-se também legitimar o processo de privatização com o apoio da população, evitando-se assim reações em contrário. As “privatizações por cupons” ocorreram de agosto de 1992 a julho de 1994, quando as negociações das ações das empresas ocorreriam por compra e venda simples.

Apesar de terem sido privatizadas 60 mil das 200 mil empresas estatais até junho de 1993 (Segrillo 2000b, p. 77), o processo de privatização passou por grandes problemas. O primeiro deles referia-se aos próprios cupons. Com a grande inflação do período, os cupons rapidamente perderam o seu valor. Isto fez com que algumas pessoas mais endinheiradas comprassem esses cupons pelos mesmos dez mil rublos, só que desvalorizados. Posteriormente, esses cupons – acumulados nas mãos de poucos – foram utilizados para comprar as estatais pelos seus valores nominais. Ou seja, cupons desvalorizados de dez mil rublos foram usados como se realmente valessem este valor. Além disso, as poucas pessoas “comuns” que utilizaram seus cupons e compraram ações não tinham nenhum poder de influência dentro das empresas privatizadas.

Outro grande problema nas privatizações russas é que os diretores das empresas estatais tinham prioridade na compra de suas ações. Além disso, quem comprava as ações de determinada empresa com os cupons só poderia vender tais ações com o consentimento da diretoria, que ainda mantinha os preços das ações artificialmente baixos. Assim, os próprios diretores compravam as ações das pessoas “comuns” a preços baixos – determinados por estes próprios diretores –, pois possuíam preferência para comprá-las. As diretorias cuidavam das respectivas empresas como se fossem donas das mesmas – e, muitas vezes, chegavam a sê-lo.

Este processo de privatização, com os dirigentes disputando entre si a posse das empresas mais rentáveis, resultou no surgimento de dois “grupos” na sociedade russa: as máfias – que tinham inclusive a função de proteção daqueles que estavam envolvidos nos processos de privatização – e principalmente as oligarquias – que eram grupos que, com o poder adquirido pelas privatizações, passaram a dominar a economia e a influenciar o governo.

Para a população, a política da “terapia de choque” apenas trouxe uma grande queda do nível de vida – uma inflação anual de 2.580% somada ao crescimento econômico negativo de 19%, em 1992 (Segrillo 2000b, p. 45). Ao mesmo tempo, com a abertura econômica, o mercado interno era invadido com mercadorias importadas, o que levou as indústrias russas a praticamente pararem de produzir. Para tentar solucionar este problema, Ieltsin demitiu Gaidar e propôs o nome de Viktor Chernomyrdin para Primeiro-Ministro. Chernomyrdin era um dos chamados diretores vermelhos, ou seja, “antigos dirigentes das indústrias da URSS que, com a privatização, passariam também a controlar as novas empresas nascentes” (Segrillo 2000b, p. 81). Não podemos confundi-los com os oligarcas, que eram donos de indústrias totalmente privatizadas e que funcionavam baseando-se no capital financeiro-especulativo. Esses diretores vermelhos, que anteriormente eram os diretores das antigas empresas estatais russas, se tornariam, em breve, membros da oligarquia russa.

(Continua na próxima postagem.)

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