30 de maio de 2008

A democracia na América (VIII)

(Continuação da postagem anterior.)

Livro I -- Parte II -- Capítulo VIII: Do que mitiga nos Estados Unidos a tirania da maioria.

Para evitar os possíveis problemas ocasionados com a tirania da maioria, como explicado no capítulo anterior, Tocqueville define a lei como contrapeso a esta tirania, que é decorrente da democracia. Assim, são os juristas -- incumbidos da tarefa de julgar as leis criadas pelo poder legislativo, local onde mais provavelmente ocorreria a tirania da maioria -- que têm a função de contrabalançar esta tendência legislativa de transformar-se em déspota.

O raciocínio de Tocqueville é o seguinte: os juristas têm ainda traços aristocráticos, pois se consideram superiores ao restante da população (aristocracia intelectual). Por ocuparem, sem contestação, uma posição elevada na sociedade, e ainda por serem um pouco aristocráticos, os juízes possuem um caráter mais conservador. Querendo-se manter com este status, os juristas irão barrar aquelas leis criadas pelo poder legislativo que possam acabar com a democracia -- leis que representariam a tirania da maioria e que, consequentemente, acabariam com seus privilégios. Ora, o povo não desconfia dos juristas, justamente por saber que eles servem à sua causa, e por saberem também que são pessoas mais sábias e teoricamente honestas. Forma-se assim um círculo vicioso, com os juristas beneficiando-se da sua posição social e, ao mesmo tempo, evitando que a tirania da maioria instale-se no poder.

Esta situação confere um grande poder político aos juristas, pois eles podem fazer o Estado seguir um caminho que represente apenas seus interesses, e não os da maioria -- no "bom sentido". "Armado do direito de declarar inconstitucionais as leis, o magistrado americano penetra incessantemente nos negócios políticos; não pode forçar o povo a fazer leis, mas pelo menos o constrange a nunca ser infiel às suas próprias leis e a permanecer de acordo consigo mesmo".

Caso o poder dos magistrados fosse diminuído, não apenas o poder judiciário seria atacado, mas também a própria república democrática. Ainda, por serem os juristas a única classe esclarecida na qual o povo confia, são eles os chamados a ocupar a maior parte das funções públicas.

Tocqueville define muito bem os juristas quando diz que estes "constituem, nos Estados Unidos, uma força que pouco se teme, que mal se percebe, que não tem qualquer bandeira própria, que se curva com flexibilidade às exigências do tempo e deixa-se ir sem resistência a todos os movimentos do corpo social; mas envolve a sociedade inteira, penetra em cada uma das classes que a compõem, trabalha-a em segredo, age sem cessar sobre ela, contra a sua vontade, e acaba por modelá-la conforme os seus desejos".

Finalmente, Tocqueville entra na questão do júri, definindo-o não só como uma instituição judiciária, mas também -- e principalmente -- como uma instituição política. Segundo ele, o júri, "se é verdade que exerce grande influência sobre o destino dos processos, também é certo que exerce um bem maior ainda sobre os próprios destinos da sociedade". Isso porque "a instituição do júri coloca o próprio povo, ou pelo menos uma classe de cidadãos, na cadeira do juiz. A instituição do júri, por isso mesmo, põe a direção da sociedade nas mãos do povo ou daquela classe".

O júri é benéfico porque dá aos cidadãos o hábito do juiz, ou seja, os cidadãos encarnariam a responsabilidade que um juiz possui, quando aqueles fossem participar de um júri. Este fato faria com que os cidadãos tornassem-se melhores, mais responsáveis, respeitando a coisa julgada e espalhando a idéia de direito. Ainda, o júri mostra a equidade aos homens, pois o cidadão vê que, ao julgar seu vizinho, poderá ser um dia julgado por este ou por outro vizinho qualquer. O júri faz o cidadão sentir que tem deveres a cumprir para com a sociedade, formando o discernimento e aumentando o esclarecimento do povo. Serve, portanto, para a educação do povo.

Segundo Tocqueville, o júri pode ainda influenciar o juiz que, na hora de decidir, lembra-se do júri que julgou o caso. É desta forma que se dá a influência política do júri, pois, influenciando o juiz, este irá julgar uma lei criada pelo legislativo de forma a seguir não apenas a sua própria vontade, mas também a vontade daqueles que fizeram parte do júri.

Referências Bibliográficas

TOCQUEVILLE, Alexis de. A democracia na América. Tradução, prefácio e notas de Neil Ribeiro da Silva. Ed. Belo Horizonte, Ed. Itatiaia: São Paulo; Ed. USP, 1977.

29 de maio de 2008

A democracia na América (VII)

(Continuação da postagem anterior.)

Livro I -- Parte II -- Capítulo VII: Da onipotência da maioria nos Estados Unidos e de seus efeitos.

Neste capítulo, Tocqueville faz uma crítica a idéias de "vontade geral" e do "bem comum", dizendo que o que ocorre nos Estados Unidos, na verdade, é a tirania da maioria.

Ele inicia o capítulo dizendo que é próprio das democracias que a maioria esteja continuamente no poder, ou seja, a "vontade geral", expressa através das eleições, deve ser respeitada; os interesses do maior número de pessoas devem ser preferidos aos do menor. Logicamente, é o poder legislativo o que obedece com mais disposição à maioria, por ser escolhido através da proporcionalidade da população de cada Estado.

Ao falar da instabilidade política, Tocqueville diz que a instabilidade legislativa é uma característica das democracias, pois elas sempre levam novos homens ao poder. Isso faz com que as leis durem muito pouco tempo, apenas durante o mandato do representante que a criou, o que causa instabilidade -- a cada mandato, leis existentes são revogadas e novas leis são criadas em seu lugar.

Estes dois aspectos -- "a onipotência da maioria e a maneira rápida e absoluta pela qual se executam as suas vontades nos Estados Unidos -- não torna apenas instável a lei, mas também exerce a mesma influência sobre a sua execução e sobre a ação da administração pública". Ora, a administração pública depende de leis para ser executada; variando-se constantemente estas leis, a administração pública torna-se instável, realizando movimentos em um sentido durante um tempo, e voltando atrás caso outro legislador mude a lei.

Tocqueville passa, então, a criticar enfaticamente o sistema americano, quando diz que o mesmo leva à tirania da maioria. "Que vem a ser uma maioria tomada coletivamente senão um indivíduo que tem opiniões e, mais freqüentemente, interesses contrários a outro indivíduo ao qual chamamos minoria? (...) Os homens, ao se reunirem, terão mudado de caráter? Ter-se-ão tornado mais pacientes nos obstáculos, ao se tornarem mais fortes? Para mim, não seria possível acreditar nisso; e o poder de tudo fazer, que recuso a um só de meus semelhantes, eu não o atribuiria nunca a vários deles".

Tocqueville diz que a liberdade está em perigo quando um poder social superior não tem nenhum obstáculo à sua frente. Segundo ele, quando o direito de fazer tudo é dado a alguém, seja na democracia, seja na aristocracia, seja em uma monarquia ou em uma república, surge o "germe" da tirania.

O problema surge quando um homem ou um partido sofre uma injustiça. "A quem esperar que ele se dirija? À opinião pública? Mas é ela que forma a maioria. Ao corpo legislativo? Ele representa a maioria e lhe obedece cegamente. Ao poder executivo? Ele é indicado pela maioria e serve-lhe de instrumento passivo. (...) Ao júri? O júri é a maioria revestida do direito de pronunciar arrestos; os próprios juizes, em certos Estados, são eleitos pela maioria". Desta forma, independentemente da ação tomada por aquele que se sentir injustiçado, ele esbarrará na maioria, e continuará sendo injustiçado -- pois a maioria assim quis.

Tocqueville, entretanto, não afirma "com isso que, na época atual, se faça na América um uso freqüente da tirania; afirmo que nenhuma garantia ali se descobre contra ela". Ele afirma que a maioria utiliza-se da dominação não só através de leis e costumes, mas também através do pensamento. Em outras palavras, aquele que transpuser o círculo criado pela maioria em volta do seu pensamento não será "queimado na fogueira", mas será ignorado pela sociedade. Ou se pensa como a maioria, ou se está fora do jogo. "O senhor não diz mais: Pensareis como eu ou morrereis. Diz apenas: Sois livres de não pensar como eu; vossa vida, vossos bens, tudo vos fica; mas, desde hoje, sois um estranho entre nós".

Tocqueville afirma ainda que "se a América não tem ainda grandes escritores, não devemos procurar noutra parte as razões disso: não existe gênio literário sem liberdade de espírito, e não há liberdade de espírito na América. A Inquisição jamais pôde impedir que circulassem na Espanha livros contrários à religião da maioria. O império da maioria fez mais que isso nos Estados Unidos: acabou até com a idéia de publicá-los".

(Continua na próxima postagem.)

28 de maio de 2008

A democracia na América (VI)

(Continuação da postagem anterior.)

Outros pontos que diferenciam o Senado da Câmara de Representantes são os seguintes: 1) sistema de eleição: os membros da Câmara de Representantes são escolhidos diretamente através de eleição popular, enquanto que os membros do Senado são escolhidos pela Câmara de Representantes estaduais; 2) duração do mandato: o mandato dos representantes dura dois anos, e o dos senadores dura seis anos; 3) atribuições: a Câmara de Representantes tem funções exclusivamente legislativas e não participa do judiciário, a não ser acusando funcionários públicos, enquanto que o Senado é, além de corpo legislativo, um corpo judiciário que julga os delitos políticos indicados pela Câmara de Representantes. O Senado participa, ainda, da assinatura dos tratados concluídos pelo presidente, bem como da escolha dos membros do poder judiciário.

Em relação ao poder executivo, Tocqueville diz que o presidente é eleito, com direito a reeleição, sendo vigiado pelo Senado no que diz respeito tanto à assinatura de tratados internacionais quanto na distribuição de empregos. O executivo tem como força principal o veto presidencial, mantendo assim sua liberdade frente ao legislativo.

Tocqueville lista algumas diferenças entre o presidente dos Estados Unidos e o rei da França. A primeira delas é referente ao poder do executivo, que nos Estados Unidos é limitada -- pois o presidente divide este poder com os governadores dos Estados --, enquanto que na França o poder está em uma só pessoa. Outra diferença é que o presidente não cria as leis, apenas executa-as, enquanto que o rei não só cria as leis como as põe em prática. Com isso, decorre o fato de que "o rei da França está, pois, em pé de igualdade com o legislativo, que não pode agir sem ele, como não poderia ele agir sem o legislativo. O presidente é situado ao lado do legislativo, como um poder inferior e dependente". Vale ainda lembrar que "o poder do presidente dos Estados Unidos só se exerce na esfera de uma soberania restrita, enquanto que o do rei, na França, age no círculo de uma soberania completa".

Um ponto que Tocqueville destaca para provar a independência e a força do poder executivo na América é o fato de que, mesmo com o presidente perdendo a maioria nas duas assembléias legislativas, ele não precisa deixar o poder. O autor diz que não é necessário haver uma "ligação" entre poderes executivo e legislativo, na América, para a criação das leis e a execução das mesmas, como ocorre na Europa. Lá, o rei participa da criação da lei, além de executá-la, e por isso, ao perder a maioria, o rei perde a capacidade para governar -- ocorrendo uma "paralisia política".

Tocqueville diz que o "espírito de comunidade" se dissolve ao se aproximar a época da eleição do presidente. É o que ele chama de "crise da eleição". Segundo ele, as facções aumentam sua atividade, objetivando eleger um presidente; a disputa por prevalência de uma idéia sobre outras é tão acirrada que faz com que as pessoas esqueçam-se dos outros assuntos, ocupando-se apenas da eleição. Além da própria eleição, Tocqueville fala da reeleição, período onde o próprio presidente não governaria mais levando-se em consideração os interesses do Estado, e sim no da sua própria reeleição; ao invés de resistir às paixões, o presidente aplica toda a sua administração em benefício próprio, e quanto mais próximo estamos da reeleição, mais o interesse individual sobrepuja o interesse geral. Isto torna a influência corruptora dos governos eletivos mais extensa e mais perigosa.

Tocqueville passa, então, para o poder judiciário. Segundo ele, "para fazer os cidadãos obedecerem às leis ou repelir as agressões de que seriam alvo, tinha pois a União particular necessidade dos tribunais". Obviamente, a União não poderia utilizar-se de um tribunal estadual, pois quando houvesse disputas entre a União e este Estado, o tribunal daria provavelmente ganho de causa ao Estado. É por este motivo que os americanos criaram a Suprema Corte, que aplicaria as leis da União e decidiria certas questões de interesse geral que fossem de antemão definidas. Conforme já foi dito, os membros dessa Suprema Corte seriam escolhidos pelo presidente, com concordância do Senado.

Segundo Tocqueville, "ao [se] criar o tribunal federal, desejara-se tirar aos tribunais dos Estados o direito de resolver, cada qual à sua maneira, questões de interesse nacional, e chegar assim a formar um corpo de jurisprudência uniforme para a interpretação das leis da União". A Suprema Corte é chamada para resolver litígios quando a disputa envolve dois Estados entre si, ou ainda quando os habitantes de um Estado entram em litígio com os habitantes de outro Estado, ou até mesmo contra outro próprio Estado. Também a própria União pode ser processada. Ainda, quando uma lei estadual for inconstitucional, será a Suprema Corte que a julgará. Vale lembrar que os tribunais federais agem sobre o indivíduo, e não sobre os Estados como instituições jurídicas.

Falando sobre a Constituição, Tocqueville levanta alguns aspectos do por quê a Constituição americana é melhor do que outras constituições. Entre os pontos principais, ele destaca o fato de que, em outras confederações, os membros poderiam obedecer ou não às leis impostas pelo governo federal, enquanto que na América os Estados consentiram com a criação de leis por parte do governo federal e com a aplicação destas leis pelo próprio governo federal. Outro ponto destacado é o fato de que a União governa os indivíduos, não os Estados. Os outros governos federais governavam povos, enquanto que a União americana governa indivíduos.

Ao explicar o por quê de o sistema federativo ter utilidade especial para a América, Tocqueville diz: "Cada cidadão dos Estados Unidos, transporta, por assim dizer, o interesse que lhe inspira sua pequena república ao amor da pátria comum. Defendendo a União, ele defende a prosperidade crescente do seu cantão, o direito de dirigir os seus negócios, a esperança de fazer prevalecer ali planos de melhoramentos que devem fazer com que ele próprio enriqueça: coisas, todas essas, que, de ordinário, tocam mais os homens que os interesses gerais do país e a glória da nação".

(Continua na próxima postagem.)

27 de maio de 2008

A democracia na América (V)

(Continuação da postagem anterior.)

Contudo, Tocqueville elogia a falta de centralização administrativa, pois é ela que faz com que os "esforços momentâneos" e os "impulsos súbitos" da população atinjam seus objetivos. A falta de centralização administrativa faz com que os indivíduos de determinada comuna ou condado trabalhem de forma livre para o seu próprio bem-estar. Assim, "não conheço mesmo um povo que tenha chegado a fundar escolas tão numerosas e tão eficazes; (...) estradas comunais mantidas em melhores condições. Por isso, não é nos Estados Unidos que iremos procurar a uniformidade e a permanência das estradas, o cuidado minucioso dos detalhes, a perfeição dos processos legislativos; o que ali encontramos é a imagem da força (...) cheia de poder". Segundo o autor, é preferível ter de trabalhar arduamente para ter liberdade do que esperar que um funcionário do Estado trabalhe para o cidadão, mas que seja dono de toda a sua liberdade.

Há ainda uma crítica às nações européias nas quais o cidadão fica parado esperando que o Estado forneça tudo a ele. Tocqueville diz que o indivíduo utiliza os bens públicos como que em usufruto, sem idéias para melhorá-los, como se estes bens pertencessem a alguém chamado Estado. Se ocorrer algum problema com o cidadão, ao invés dele lutar contra este problema, fica esperando que o Estado forneça a solução.

As leis deveriam reavivar o sentido da pátria nestes cidadãos, como ocorre nos Estados Unidos. Neste país, a pátria faz-se sentir por toda parte. Segundo Tocqueville, "[a pátria] é objeto de anseios desde a aldeia até a União inteira. O habitante liga-se a cada um dos interesses do seu país como aos seus próprios. Glorifica-se na glória da nação; no triunfo que ela obtém, julga reconhecer a sua própria obra e nela se eleva; rejubila-se com a prosperidade geral da qual tira proveito. (...) O europeu, não raro, apenas vê no funcionário público a força; o americano vê nele o direito. Por isso, se pode dizer que, na América, o homem jamais obedece ao homem, mas à justiça ou à lei".

Outro ponto destacado por Tocqueville em relação à descentralização administrativa é que os americanos confiam na sua própria força: se eles acham que são capazes de levar um negócio adiante, assim o fazem, sem dirigir-se à autoridade pública para obter autorização ou ajuda. Os cidadãos apenas propõem à autoridade o plano, colocam-se à disposição para realizá-lo e lutam sozinhos contra os obstáculos. É desta forma que o resultado da soma destas empresas individuais ultrapassa o que o governo poderia fazer.

Todas estas características configuram, para Tocqueville, o estado social americano como democrático. Por haver oportunidade para todos os cidadãos de fazerem o que quiserem -- dentro dos limites da lei --, a democracia americana traz benefícios que não existiam na Europa na mesma época. A liberdade provincial é o ponto-chave desta democracia.

Livro I -- Parte I -- Capítulo VIII: Da Constituição federal.

Apesar de terem a mesma língua, religião, costumes, leis, além de um inimigo em comum, cada uma das treze colônias tinha interesses particulares. Se em um primeiro momento elas se uniram, para combaterem a Inglaterra, depois de conquistada a independência cada Estado quis se separar dos outros, mantendo suas respectivas soberanias. Assim, a Confederação declarou sua impotência e apelou para a autoridade constituinte.

Foi então realizada a Convenção de Filadélfia, onde foi escrita a nova Constituição federal. Com a participação de 55 membros, após dois anos de discussões a Constituição foi promulgada, faltando ser ratificada nos treze Estados -- o que foi feito através de assembléias estaduais escolhidas exclusivamente para este assunto.

A principal dificuldade posta aos membros da Convenção de Filadélfia foi a divisão da soberania entre Estados e União. A União ficou com o direito exclusivo de fazer a paz e a guerra, de assinar tratados de comércio, de armar exércitos e equipar frotas. Além disso, "em mãos da União foi entregue o direito de regular tudo aquilo que tem relação com o valor do dinheiro; foi ela encarregada dos serviços postais; deu-se-lhe o direito de abrir as grandes comunicações que deveriam unir as diversas partes do território". A União poderia ainda intervir indiretamente nos Estados quando estes criassem leis retroativas, e ela tinha o direito ilimitado de cobrar impostos. Os governos dos Estados ficavam, basicamente, com o que não era de competência do governo federal, ou seja, as questões sociais eram da responsabilidade dos governos Estaduais.

O governo federal divide-se em três poderes: executivo, legislativo e judiciário. O poder legislativo, assim como na organização dos próprios Estados, é dividido em Senado e Câmara de Representantes. O objetivo era, em primeiro lugar, realizar uma divisão dos poderes, evitando-se assim a tirania da maioria; e, em segundo lugar, tinha-se como objetivo garantir a representação dos Estados através de um número igual de representantes estaduais no Senado, além de garantir a representação popular na Câmara de Representantes, com número de representantes proporcional à população.

(Continua na próxima postagem.)

26 de maio de 2008

A democracia na América (IV)

(Continuação da postagem anterior.)

Livro I -- Parte I -- Capítulo IV: Do princípio da soberania do povo na América.

A soberania popular nos Estados Unidos é um fator intrínseco à sua sociedade, e que surgiu desde quando eram ainda colônias inglesas. Obviamente, naquela época este princípio não podia aparecer ostensivamente, por ainda terem de obedecer à metrópole; ainda, enquanto colônias inglesas, imperou uma pequena influência aristocrática, no norte devido ao conhecimento, no sul devido a riquezas decorrentes da propriedade de terras. Este "espírito" de soberania popular ficou, então, restrito às assembléias provinciais.

Após a Revolução Americana, esta soberania popular atingiu todas as camadas da sociedade, bem como todas as esferas políticas. A democracia foi instalada em todos os Estados americanos. O povo compõe as leis, escolhe os legisladores, escolhe os representantes para o poder executivo: tudo emana do povo. A sociedade age sozinha e sobre ela própria.

Livro I -- Parte I -- Capítulo V: Necessidade de estudar o que se passa nos Estados, em particular, antes de falar do governo da União.

Antes de explicar o funcionamento da União, Tocqueville explica o funcionamento de cada Estado em particular. Ele inicia falando sobre o poder legislativo.

O poder legislativo estadual é composto de duas assembléias, o Senado e a Câmara de Representantes. O Senado é um corpo legislativo, mas às vezes torna-se um corpo administrativo, quando, por exemplo, auxilia na escolha dos funcionários do poder executivo, e participa do poder judiciário pronunciando-se sobre certos delitos políticos. A Câmara de Representantes é apenas um corpo legislativo, e só toma parte no poder judiciário quando acusa os funcionários públicos perante o Senado.

Os membros de ambas as assembléias são escolhidos pelos mesmos critérios de elegibilidade, além de serem escolhidos pelos mesmos cidadãos. A diferença é que o mandato dos senadores é mais longo do que o de um representante. O objetivo é que os senadores habituem-se aos assuntos senatoriais, além de auxiliarem aqueles que entrarem posteriormente.

O objetivo dos americanos ao criarem duas assembléias no poder legislativo foi o de conter o movimento das assembléias políticas -- em outras palavras, dividiu-se para evitar a formação de facções dentro do poder legislativo, facções estas que poderiam governar em benefício de uma minoria.

O poder executivo do Estado tem por representante o Governador. Este tem o veto suspensivo como um "aliado" contra os desejos de dominação por parte do poder legislativo. Executa as leis criadas por este poder, além de informá-lo sobre as maneiras que irá utilizar para pôr em prática a execução de tais leis.

O Governador é o chefe militar do Estado. Comanda as milícias e as forças armadas. Ele não pode intervir na administração das comunas e dos condados, e é escolhido através de eleições. Seu mandato, de um ou dois anos, faz com que ele dependa sempre da maioria que o elegeu. Dispõe do direito de veto, para manter sua liberdade em relação ao poder legislativo.

Tocqueville entra, então, no tópico referente à centralização. Define centralização governamental como a elaboração de leis gerais e as relações do povo com os estrangeiros, e centralização administrativa como a execução dos empreendimentos comunais. Tocqueville acha que a centralização governamental é essencial à prosperidade de um país, mas não o é a centralização administrativa.

Não há, segundo o autor, nenhuma centralização administrativa nos Estados Unidos; em compensação, a centralização governamental existe no mais elevado grau. Tocqueville justifica esta afirmação dizendo que, por não existirem assembléias nos distritos ou nos condados americanos, todo o poder fica concentrado nas mãos da assembléia legislativa estadual, não havendo, assim, nenhum poder capaz de lhe opor resistência. Não há como se fazer resistência à assembléia legislativa estadual também pelo fato de que ela representa a maioria, e, portanto a vontade do povo não pode ser contrariada. O poder executivo, que poderia fazer-lhe oposição, deve compelir os descontentes à obediência.

Mesmo com tal grau de centralização, há ainda algumas falhas que devem ser resolvidas. Por exemplo, Tocqueville cita o fato de que "o Estado serve-se, as mais das vezes, dos funcionários da comuna ou do condado para agir sobre os cidadãos. Assim, por exemplo, (...) é o assessor da comuna que aplica os impostos; o coletor da comuna os cobra; o tesoureiro da comuna faz chegar o seu produto ao tesouro público; e as reclamações que se fazem são submetidas aos tribunais ordinários". Tocqueville critica o fato de não haver um funcionário do Estado em cada comuna ou condado, executando as tarefas estatais e verificando se as leis, conforme foram criadas pelos Estados, estão ou não sendo cumpridas. As ações realizadas pelos Estados não chegam a resultado algum, ou nada produzem de durável, por não haver alguém que fique responsável pela sua execução; o poder estadual utiliza-se dos funcionários da própria comuna ou condado.

(Continua na próxima postagem.)

23 de maio de 2008

A democracia na América (III)

(Continuação da postagem anterior.)

Destaca-se, assim, dois aspectos principais que formam o caráter nos americanos: o espírito de religião e o espírito de liberdade. Por mais contraditórios que pareçam -- pois, conforme exposto, as leis eram rigidamente criadas baseando-se na religião, cerceando desta forma a liberdade --, estes dois conceitos "completam-se": o homem é livre para agir de acordo com os preceitos dispostos pela religião. Esta religião protege os "bons costumes", e é através destes "bons costumes" que o homem tem liberdade para agir.

Finalizando o capítulo, Tocqueville afirma que, por mais que o puritanismo tenha sido a base das leis criadas pela sociedade americana, deve-se ter em mente que foi a junção do puritanismo com características da sociedade inglesa que formou a sociedade americana. Os costumes e algumas leis inglesas foram absorvidos diretamente pelos americanos, por mais que tais leis e costumes prejudicassem certa parte da sociedade americana.

Livro I -- Parte I -- Capítulo III: Situação social dos anglo-americanos.

Segundo Tocqueville, "a situação social dos americanos é eminentemente democrática". Conforme explicado no capítulo anterior, reinava uma igualdade muito grande entre os habitantes da Nova Inglaterra. No sul, mesmo havendo proprietários de grandes extensões de terra, com diversos escravos, o princípio aristocrático não vingou, pois esta suposta aristocracia, que concentrava em seu meio a ação política, era sensível às paixões e interesses da massa do povo, adotando-as freqüentemente.

Além deste fato, o princípio aristocrático não vingou nas colônias do sul por causa da "lei de sucessões": a morte de um proprietário de terra fazia com que esta se fracionasse, sendo a grande extensão de terra dividida igualmente entre os filhos. Assim, sucessivamente, a terra foi sendo cada vez mais dividida, até um ponto onde não existiam mais grandes proprietários, ficando as porções de terra cada vez menores.

Segundo Tocqueville, "quando a lei de sucessões estabelece a partilha igual, destrói a ligação íntima que existia entre o espírito de família e a conservação da terra; a terra deixa de representar a família, pois, não podendo deixar de ser dividida ao fim de uma ou duas gerações, é evidente que deve diminuir ininterruptamente, acabando por desaparecer por completo. (...) Desde o momento em que tiramos aos proprietários rurais um grande interesse sentimental, (...) podemos ter certeza de que, cedo ou tarde, eles a venderão, pois têm um grande interesse pecuniário na sua venda, já que os capitais mobiliários produzem lucros maiores que os outros".

Por serem as pequenas propriedades de fácil manejo por parte do proprietário, este tira melhor rendimento de sua terra, não se interessando, assim, por aumentá-la de tamanho; ainda, quando o pequeno proprietário for vender a terra, por esta ser de grande rentabilidade, ele pode vendê-la mais caro.

Outro ponto importante em relação à lei de sucessões é que ela acaba com o "nome da família". Como as propriedades são diminuídas continuamente, o poder, que antes era decorrente da posse de uma grande extensão de terra, também diminui, fazendo com que as famílias dos antes grandes proprietários de terra achem-se quase todas absorvidas no seio da massa comum. Ora, o resultado disso é a igualdade de todos os homens: não há grandes propriedades de terra, não há poder concentrado na mão de poucos; os homens são iguais, pois todos possuem pequenas porções de terra.

Ainda, considerando-se a grande ênfase dada à educação, pelos motivos citados no capítulo anterior, os indivíduos podem ser considerados iguais também no nível educacional. A educação primária está ao alcance de todos, apesar de haver poucos com instrução superior. O fato de a maioria absoluta da população ter acesso à educação faz com que todos tenham condições, por exemplo, de participar de uma discussão sobre as leis em praça pública, fazendo com que todos tenham igualdade política.

Tocqueville mostra que os americanos têm mais apreço pela igualdade do que pela liberdade. Querem ser livres para fazerem o que bem entenderem, é claro, mas não admitem que uns sejam melhores que os outros. O pobre almeja ser rico, e trabalha para isso; ao mesmo tempo, tenta atrair o rico para a sua própria condição, para que se tornem iguais.

(Continua na próxima postagem.)

21 de maio de 2008

A democracia na América (II)

(Continuação da postagem anterior.)

Livro I -- Parte I -- Capítulo II: Da origem dos anglo-americanos e de sua importância para o seu futuro.

Neste capítulo, Tocqueville irá tratar da origem dos americanos, e como as suas características como população contribuíram para a formação da América.

Segundo Tocqueville, "se nos fosse possível retroceder até os elementos das sociedades e examinar os primeiros monumentos da sua história, não tenho dúvidas de que poderíamos descobrir neles a causa primeira dos preconceitos, dos hábitos, das paixões dominantes, de tudo o que compõe afinal aquilo a que chamamos caráter nacional".

Desta forma, Tocqueville afirma que o "espírito" atual dos americanos, que os fizeram criar instituições políticas exemplares para o resto do mundo, é decorrência da sua própria origem, qual seja, a Inglaterra. Foi baseando-se neste país, com instituições democráticas em relativo funcionamento -- por exemplo, com a existência de uma câmara de representação dos nobres e outra da população, além da existência de um governo comunal, um "embrião" das instituições livres -- que os americanos criaram o seu próprio modelo de governo. Além disso, no aspecto da sociedade americana, Tocqueville destaca a língua como fator primordial de união entre os novos colonos: "todos os imigrantes falavam a mesma língua; eram todos filhos de um mesmo povo".

Outro fator que levou os americanos a criarem instituições democráticas foi o fato de que os imigrantes, quando saíram de seus países -- e neste ponto Tocqueville não se restringe aos Estados Unidos, mas a todas as colônias da Europa na América -- não tinham qualquer idéia de superioridade uns sobre os outros. Sendo assim, como todos eram considerados iguais, as instituições políticas americanas absorveram este princípio, que foi refletido nessas próprias instituições políticas. Foi sendo criado, desta forma, o conceito de igualdade entre os homens.

Um terceiro aspecto destacado por Tocqueville, que está associado ao aspecto citado anteriormente, refere-se ao fato de que o próprio dono deveria trabalhar nas novas terras, sem a existência de escravos e/ou trabalho assalariado -- sem proprietários nem agricultores. Tocqueville diz que "grandes senhores transferiram-se para a América, em conseqüência de querelas políticas ou religiosas. Ali, fizeram-se leis destinadas a estabelecer uma graduação hierárquica, mas desde logo se percebeu que o solo americano repelia categoricamente a aristocracia territorial. Viu-se que, para desbravar aquela terra rebelde, eram essenciais nada menos que os esforços constantes e interessados do próprio dono". Por este motivo, a terra fragmentou-se em pequenos pedaços, que o próprio dono cultivava sozinho. Evitou-se, assim, a formação de uma aristocracia agrária, dona de grandes extensões de terra e, conseqüentemente, com grande poder na política americana.

Contudo, há de se notar o fato de que, mesmo com as semelhanças iniciais, como a língua e a origem, as colônias seguiram caminhos diferentes. Há dois "ramos" diferentes, um ao norte e outro ao sul. No sul, a mentalidade predominante era a européia, no sentido de que deveriam ser criados mecanismos que explorassem ao máximo as novas terras. Seguindo esta "ideologia", os colonos instauraram a escravidão o mais rapidamente possível, objetivando a rápida obtenção de lucros. Já no norte, segundo Tocqueville, foi aonde "se combinaram as duas ou três idéias principais que hoje constituem as bases da teoria social dos Estados Unidos".

Os imigrantes que se estabeleceram no norte, chamado Nova Inglaterra, eram pessoas que pertenciam às classes independentes da metrópole. Não havia grandes senhores nem povo, ou "pobres e ricos". Todos tinham um nível educacional razoável, além de manterem o núcleo familiar "intacto" -- no sentido de que os colonos da Nova Inglaterra iam desbravando as terras levando consigo esposas e filhos. Mas o que mais se destacava nestes colonos -- que se autodenominavam "peregrinos" -- era a ideologia que os impeliram a sair da Inglaterra.

Os peregrinos não deixaram seu país por necessidade. O objetivo principal deles era encontrar um novo local aonde pudessem pôr em prática livremente sua doutrina religiosa -- o puritanismo. Vale destacar que o puritanismo não era apenas uma doutrina religiosa, pois se confundia, em vários aspectos, com os princípios democráticos e republicanos mais absolutos. Por este motivo, os puritanos eram perseguidos na Inglaterra, e queriam um local aonde pudessem ser "esquecidos" e praticar sua religião em liberdade.

Os puritanos se consideravam um "grande povo" escolhido por Deus, e a Nova Inglaterra seria a sua "terra prometida". Por ser uma doutrina tanto política quanto religiosa, os puritanos esforçaram-se por se organizarem em sociedade logo após chegarem ao novo local. O governo inglês, por outro lado, sentia-se satisfeito em ver membros indesejáveis de sua sociedade saírem e irem para um local que deveria ser abandonado e deixado a cargo dos emigrantes. Desta forma, as colônias inglesas sempre tiveram uma maior liberdade e independência política do que qualquer outra colônia.

Por haver independência política, os habitantes da Nova Inglaterra "nomeiam seus magistrados, fazem a paz e a guerra, estabelecem regulamentos de polícia, criam leis para si mesmos" , tudo isso por conta própria. É curioso notar que as primeiras leis desses imigrantes eram baseadas na Bíblia, pois "os legisladores (...) têm a preocupação de manter a ordem moral e os bons costumes na sociedade; assim, penetram sem cessar no domínio da consciência, e quase não há pecados que não venham a submeter à censura do magistrado". Deve-se destacar, entretanto, um detalhe muito interessante: esta dura legislação, que castigava com a morte a blasfêmia, a bruxaria, o adultério e o estupro, bem como a simples ofensa cometida por um filho contra seus pais, não era imposta: as leis eram votadas por todos aqueles que se interessavam; além disso, os próprios costumes da sociedade americana da época eram ainda mais austeros e puritanos do que estas leis.

Toda esta organização política começou "de baixo para cima", ou seja, primeiro organizou-se a comuna, depois o condado, depois o Estado e, finalmente, a União. Assim, a população participava da criação e votação das leis na Nova Inglaterra, e seus próprios habitantes se consideravam moradores de uma democracia: o povo tinha o poder de fazer as leis e observar a sua execução. Não havia participação representativa: a participação é direta, com os cidadãos indo a praça pública, realizando assembléias gerais e decidindo os assuntos que dizem respeito ao interesse de todos.

Esta intensa participação política tinha mais um aspecto a seu favor, além dos já citados anteriormente: a educação. Nota-se, desde o princípio, uma preocupação muito grande com a educação pública: os pais podem até mesmo ser multados, caso não levem seus filhos à escola. Chega-se a ponto de retirar o filho da guarda dos pais, caso estes continuem negando-se a educar os filhos. Esta ênfase na educação é necessária para que todos tenham condições de ler as Escrituras Sagradas; obviamente, os efeitos secundários dessa educação é que as pessoas tornam-se mais conscientes e mais participativas no cenário político.

(Continua na próxima postagem.)

20 de maio de 2008

A democracia na América (I)

Sempre que mencionamos o nome de Alexis de Tocqueville, estaremos falando sobre a liberdade e a igualdade e, por decorrência, falando em democracia. Tocqueville, a partir do debate sobre a liberdade e a igualdade, procura explicar o desenvolvimento sócio-político das várias realidades sociais por ele estudadas. Seus estudos estão fundamentalmente voltados para a realidade européia e norte-americana; porém, para ele a democracia é uma realidade natural de qualquer sociedade.

Democracia: Um Processo Universal

Em seus estudos, Tocqueville abrange a análise e a descrição dos hábitos e costumes dos povos nos quais viveu, assim como a descrição da organização social a fim de explicar a estrutura de dominação que naquele povo existe bem como suas instituições políticas e as relações entre o Estado e a sociedade.

Em sua maior obra, A democracia na América (1835 e 1840), Tocqueville procura demonstrar sua visão de democracia a partir de suas análises em pesquisas durante quase um ano nos Estados Unidos. Tocqueville acredita que a democracia possui um caráter universal, ou seja, a democracia não é um fenômeno restrito aos Estados Unidos: é aplicável a todo o planeta, embora ele admita que as condições nesse país em grande parte colaboram para o desenvolvimento da democracia. Para ele a democracia é inevitável, pois ela provém de vontade divina: negar a democracia seria negar ao próprio Deus. Tocqueville faz questão de ressaltar que o processo democrático americano de forma alguma estava concluído quando lá o autor viveu, e seu progresso rumo a uma nação mais igualitária estava em constante desenvolvimento.

Os Perigosos Desvios da Igualdade

A igualdade na qual Tocqueville se refere não é por excelência a igualdade econômica e sim a igualdade social e política, que representa a verdadeira democracia, podendo ser esta liberal ou tirânica.

Tocqueville aponta dentro do processo democrático dois perigos que podem surgir: o primeiro seria o surgimento de uma sociedade de massa capaz de promover a tirania da maioria; e o segundo seria o surgimento de um Estado autoritário-despótico.

Tocqueville aponta em sua obra também o individualismo criado pelo desenvolvimento do industrialismo capitalista que leva os indivíduos a buscarem somente um maior lucro com a acumulação de riquezas. Tocqueville afirma que quanto mais um indivíduo se dedica aos afazeres de enriquecimento, menos ele se preocupa e se interessa pelas coisas públicas.

Ação Política e Instituições Políticas

O que faz com que ocorra uma centralização administrativa que traz como conseqüência uma concentração do poder nas mãos do Estado é a falta da participação popular no exercício da cidadania. Para evitar esse problema existem instituições que promovem a descentralização administrativa; no entanto, tais instituições obrigam a participação efetiva dos cidadão na prática política. A constituição de leis que garantem a liberdade ajuda a convivência do processo igualitário e de liberdade, e é na própria democracia que encontramos os defeitos da democracia:

É a própria igualdade que torna os homens independentes uns dos outros, que os faz contrair o hábito e o gosto de seguir apenas a sua vontade em suas ações particulares, e esta inteira independência de que gozam, em relação aos seus iguais, os predispõe a considerar com descontentamento toda autoridade e lhes sugere logo a idéia e o amor da liberdade política. (Tocqueville, A democracia na América)

A instituição da liberdade baseada em leis do direito não é suficiente para a garantia da liberdade, pois a liberdade sustenta-se na ação efetiva dos cidadãos na política e nos negócios públicos.

Um Manifesto Liberal

Tocqueville, como um constituinte eleito, procura estabelecer os temas que abrangem o equilíbrio entre o Estado e os direitos da cidadania: em seu mandato defende a educação como obrigatória, garantida pelo Estado, sendo o ensino livre, tendo cada educador a liberdade de escolher seu modo de educar.

Na realidade, Tocqueville, em toda a sua obra, reflete o pensamento de um manifesto liberal para o povo francês: para ele a Revolução Francesa não havia de forma alguma acabado, sendo um processo duradouro da democratização francesa, dependendo apenas do povo francês a luta por um Estado igualitário na liberdade ou na tirania.

(Continua na próxima postagem.)

19 de maio de 2008

Os artigos federalistas (IX)

(Continuação da postagem anterior.)

Número LXXXV

O último artigo de Os artigos federalistas irá, logicamente, realizar um fechamento geral do texto. Como o próprio Hamilton diz, os tópicos a serem discutidos "foram tão plenamente antecipados e esgotados ao longo do trabalho que dificilmente se poderia fazer alguma coisa além de repetir (...) o que foi dito até agora".

Hamilton volta ao assunto das seguranças adicionais do governo republicano, citando que a União: restringe facções locais e insurreições, além da ambição de indivíduos poderosos em seus Estados; reduz "oportunidades para a intriga estrangeira"; previne a criação de instituições militares muito amplas, ocasionando guerras entre os Estados; garante a forma republicana de governo para cada Estado; exclui os títulos de nobreza; reduz a exclusão dos fundamentos da propriedade e do crédito, que lançam "desconfiança mútua no seio de todas as classes de cidadãos e [geram] uma prostração quase universal da moral".

Hamilton fala ainda da questão das emendas constitucionais. Ele diz que as emendas têm de ser feitas subseqüentemente à adoção da Constituição. Ainda, diz que basta que dez dos treze Estados concordem com a proposta e a emenda estará aceita.

Hamilton destaca que a aprovação das emendas será feita pelo Congresso, o que significa dizer que não há maneira de haver abuso por parte das autoridades federais. Os legislativos estaduais, desta forma, não precisam se preocupar com possível perda de autonomia, pois as emendas que porventura o governo federal fizer deverá ser votado e aprovado por dez dos treze Estados.

Por fim, Hamilton se mostra confiante na aprovação da nova Constituição, pois já haviam sido feitos esforços em sete dos treze Estados, e para ele era irracional "após ter trilhado parte tão considerável do caminho, recomeçar a caminhada".

Bibliografia

Madison, James. Os artigos federalistas, 1787-1788: edição integral. James Madison, Alexander Hamilton, John Jay; apresentação Isaac Kramnick; tradução Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993.

Montesquieu. Do espírito das leis. São Paulo: Abril S.A., 1973.

16 de maio de 2008

Os artigos federalistas (VIII)

(Continuação da postagem anterior.)

Número LXIII

Neste artigo, Madison continua o assunto do artigo anterior, falando sobre o Senado, referindo-se à duração do mandato de seus membros, bem como da impossibilidade de o Senado vir a corromper-se.

Madison refere-se novamente à estabilidade do Senado como sendo necessária, principalmente, para os olhos das outras nações. Ele chega a dizer que, às vezes, o que as outras nações dizem sobre os Estados Unidos pode ser "o melhor guia a seguir".

Outro ponto para justificar um mandato maior para os senadores é o fato de que pode haver "falta (...) da devida responsabilidade do governo para com o povo, fruto da mesma freqüência de eleições que, em outros casos, gera tal responsabilidade". Com esta afirmação, Madison quer dizer que, caso o mandato seja muito curto, os senadores poderiam tentar beneficiar a si mesmos, ao invés de lutar por melhores condições para os seus Estados. Afinal de contas, como o mandato é curto, o senador poderia tentar retirar o máximo de vantagens para si, esquecendo-se do Estado de onde veio. Com um mandato maior, o senador pode ocupar-se na preparação de leis consistentes, pois terá mais tempo para estudar o assunto ao qual a lei se refere.

Madison faz uma comparação entre a república americana e as repúblicas antigas (Grécia, Roma e Cartago), afirmando que todas estas últimas possuíam Senado -- ou alguma outra forma de representação equivalente ao Senado. Madison ressalta, contudo, a diferença entre as repúblicas antigas e a república federativa americana, com um governo representativo.

Madison, então, ataca os contrários à idéia de os membros do Senado serem escolhidos pelos legislativos estaduais. Ele diz que, para se conseguir retirar a liberdade da população -- condição na qual o Senado estaria governando para uma minoria --, seria preciso, "em primeiro lugar, de se corromper a si mesmo; em seguida, teria de corromper os legislativos estaduais para depois corromper a Câmara dos Representantes e finalmente corromper o povo em geral". Todas estas dificuldades, aliadas ao fato de que os componentes do Senado seriam pessoas "boas", fariam com que o Senado não legislasse para uma minoria.

Madison conclui dizer que "o Senado federal jamais será capaz de se transformar, por usurpações graduais, em um corpo independente e aristocrático". Caso isso acontecesse, a Câmara dos Representantes seria capaz de restaurar a Constituição, em sua forma e princípios originais.

Número LXXVIII

Hamilton irá discutir, neste artigo, a questão do poder Judiciário, explicando como os juízes serão designados, quais as condições sob as quais irão permanecer em seus cargos e como será realizada a partilha da autoridade judiciária entre diferentes tribunais e suas relações mútuas.

Em relação à designação dos juízes, Hamilton diz que "o presidente deverá nomear, [juntamente] com o conselho e a aprovação do Senado, (...) juízes da Corte Suprema". É necessário que a nomeação e a aprovação sejam feitas juntamente com o Senado, para que, "quando um homem tivesse dado provas satisfatórias de sua adequação a qualquer cargo, um novo presidente seria impedido de tentar uma mudança em benefício de uma pessoa que lhe fosse mais agradável". Por outro lado, o ato de nomear deve ser de competência do Executivo, tendo em vista que este poder é relativamente fraco, se comparado com o poder Legislativo.

Em relação às condições sob as quais os juízes permanecerão em seus cargos, Hamilton levanta três itens principais: tempo de permanência no cargo, remuneração e precauções em relação à responsabilidade do cargo.

De acordo com o que foi definido na Convenção, os juízes ficarão no cargo enquanto exibirem bom comportamento. Segundo Hamilton, este critério "é o melhor recurso que se poderia conceber para assegurar uma administração das leis equilibrada, íntegra e imparcial".

Hamilton entra, então, na questão da fragilidade do poder Judiciário frente aos outros dois poderes. O poder Executivo, diz ele, é o que detém "a espada", ou seja, é aquele que realmente age; o poder Legislativo é aquele que detém "a bolsa", ou seja, é o poder que controla como as riquezas do país serão aplicadas, através das leis. Já o poder Judiciário não possui nenhuma iniciativa e, portanto, é o poder mais fraco de todos. Necessita-se, desta forma, de mecanismos que fortaleçam a sua ação.

Um destes mecanismos é o conceito de que "os tribunais foram concebidos para ser um intermediário entre o povo e o legislativo, de modo a, entre outras coisas, manter este último dentro dos limites atribuídos a seu poder". Isto significa dizer que os legisladores não podem aplicar a lei de acordo com a sua própria vontade; a decisão de como a lei criada pelo poder Legislativo deve ser aplicada ao povo é tomada pelo poder Judiciário. Afinal de contas, os legisladores não podem criar leis que vão contra os princípios constitucionais, ou seja, não podem criar leis que porventura os beneficiem, em detrimento do povo. "A interpretação das leis é o domínio próprio e particular dos tribunais", diz Hamilton. Os juízes devem definir o sentido fundamental da Constituição -- lei maior de uma nação -- e aplicá-lo sempre que for necessário -- caso o Legislativo crie uma lei que vá de encontro à Constituição, cabe ao poder Judiciário definir que a Constituição deve ser seguida, e não tal lei.

Este argumento pode levar a pensar que o judiciário seria um poder superior ao legislativo. Hamilton nega este pensamento, dizendo que "(...) o poder do povo é superior a ambos [legislativo e judiciário], e que, quando a vontade do legislativo, expressa em suas leis, entra em oposição com a do povo, expressa na Constituição, os juízes devem ser governados por esta última e não pelas primeiras".

Esta "dependência" do legislativo em relação ao judiciário traz mais um ponto positivo, que está implícito na argumentação: como os legisladores sabem que possíveis leis que beneficiariam uma minoria serão vetadas pelo judiciário, os próprios legisladores já iriam se imbuir de um "espírito popular", no sentido de que criariam leis corretas, em benefício do povo, leis estas que não seriam vetadas pelo judiciário.

Hamilton justifica o mandato vitalício para os juízes pelo fato de que estes devem ser adeptos inflexíveis e uniformes aos direitos da Constituição. Isto significa dizer que os juízes, por ficarem um grande período no seu cargo, iriam ganhando experiência, além de defenderem sempre os direitos do povo contidos na Constituição. Se a designação fosse periódica, o juiz poderia deixar-se levar por interesses pequenos e imediatos, ao invés de defender a lei maior. Além disso, pelas leis compreenderem um conjunto volumoso de informações, é necessário um "longo e laborioso estudo", o qual, obviamente, demanda também bastante tempo. Se o mandato do juiz fosse temporário, a administração da justiça seria deixada "em mãos menos capacitadas e menos qualificadas para conduzi-la com proveito e dignidade".

(Continua na próxima postagem.)

15 de maio de 2008

Os artigos federalistas (VII)

(Continuação da postagem anterior.)

Número LVII

Madison escreve este artigo tendo em vista a acusação de que a Câmara dos Representantes seria composta de pessoas que quisessem beneficiar uma minoria, ao invés de trabalhar em prol da maioria.

Madison diz que o objetivo de toda organização política é ter em seus quadros homens dotados de maior sabedoria para discernir o bem comum e da maior virtude para promovê-lo; ainda, tais homens devem manter estas virtudes enquanto no poder. A forma eletiva garante esta escolha do melhor, ao mesmo tempo em que faz com que os governantes tenham responsabilidades frente aos governados -- ou não serão reeleitos.

Ora, são eleitores tanto ricos quanto pobres, nobres quanto plebeus; os eleitores são os mesmos, tanto para o legislativo federal quanto para o estadual. Ainda, são possíveis representantes todos aqueles "cujo mérito possa recomendá-lo à estima e confiança de seu país". Sendo assim, não haveria por quê os eleitos beneficiarem uma determinada minoria, já que são homens virtuosos e foram escolhidos por pessoas das mais diversas facções existentes no país. Além disso, o representante tentará no mínimo manter sua base eleitoral, e porventura expandi-la. Assim, não há por quê ele beneficiar uma ou outra minoria em detrimento daqueles que o escolheram.

Um ponto importante a se destacar é o das eleições freqüentes. Elas mantêm em seus membros a "lembrança permanente de sua dependência para com o povo". Desta forma, apenas "o desempenho confiável de seu mandato" os farão credenciados à renovação do mesmo.

Outro aspecto que faz com que o representante não beneficie uma minoria é o fato de que as leis que ele criar irão valer para si próprio, não apenas para o resto da sociedade. Se, mesmo após este argumento, o representante tentasse fazer algo que o beneficiasse em detrimento de outrem, o "espírito vigilante e varonil que move o povo da América" demoveria o representante a tomar tal atitude.

Madison entra novamente no aspecto numérico da eleição, dizendo que um representante para a Câmara federal se elege com cinco ou seis mil votos, enquanto que um representante para a Câmara estadual se elege com cinco ou seis centenas de votos. Portanto, devido ao grande número de pessoas necessárias para escolher um representante federal, estas pessoas escolheriam os melhores dentre os candidatos disponíveis (com maior concorrência, os melhores são escolhidos). Madison compara ainda os Estados Unidos com a Inglaterra, aonde, para se votar, era necessária uma certa quantidade de dinheiro, e para ser eleito, mais dinheiro ainda.

Madison mostra o exemplo de vários Estados americanos, nos quais o número de pessoas necessárias para eleger um deputado estadual é quase o mesmo -- em alguns casos, chega a ser maior -- do que o número de pessoas necessárias para eleger um deputado federal. E nem por isso os legislativos estaduais beneficiam alguma minoria. Sendo assim, segundo Madison, qual o argumento que comprova que os deputados federais beneficiariam esta ou aquela minoria?

Número LXII

Neste artigo, Madison trata da organização do Senado, indo desde as qualificações dos senadores, passando pela designação dos mesmos pelos legislativos estaduais, a igualdade de representação no Senado, o número de senadores e o prazo pelo qual serão eleitos e, finalmente, os poderes conferidos ao Senado.

  1. As qualificações dos senadores: para Madison, os senadores têm de possuir uma idade maior que os representantes da Câmara, pois sua função exige maior amplitude de informação e estabilidade de caráter. Além do mais, vale lembrar que os senadores terão contato com representantes de nações estrangeiras, o que faz com que o tempo de habitação dentro de território americano também seja maior do que aquele exigido para os representantes na Câmara.
  2. A designação dos senadores pelos legislativos estaduais: segundo Madison, sendo os senadores escolhidos pelos legislativos estaduais, "recomenda-o a dupla vantagem de favorecer uma indicação selecionada e de, na formação do governo federal, dar aos governos estaduais um papel que deverá garantir sua autoridade, podendo construir o elo conveniente entre os sistemas estadual e federal"
  3. A igualdade de representação no Senado: "o voto igual concedido a todos os Estados é tanto um reconhecimento constitucional da parcela de soberania conservada por todos eles quanto um instrumento para preservá-la. Nessa medida, a igualdade deve ser tão aceitável para os Estados grandes quanto para pequenos, pois lhes interessa igualmente se proteger, por todos os expedientes possíveis, de uma consolidação indesejável dos Estados em uma república simples". Em outras palavras, a igual representação no Senado por parte dos Estados significa que estes, sejam grandes ou pequenos, terão o mesmo poder de decisão na arena política, além de garantirem a sua participação no governo federal.
  4. O número de senadores e o prazo pelo qual serão eleitos: antes de entrar nestes tópicos, Madison faz uma análise de diversos fatores que justificam a existência do Senado e, indiretamente, respondem à questão do número de senadores e do prazo do seu mandato.

  • Primeiro: O Senado funciona como um "guardião" das vontades dos Estados em relação ao governo federal. Assim, caso este resolvesse "se esquecer" dos seus compromissos assumidos para com a população, o Senado seria aquele "órgão" de controle sobre o governo. Ainda, seria muito mais difícil corromper duas instâncias do governo, quais sejam, o governo federal e o Senado.
  • Segundo: o Senado não deve ceder ao impulso de "paixões súbitas e violentas". Para evitar este problema, deve ser menos numeroso. Ainda, deve ser bastante sólido, com mandados de duração considerável.
  • Terceiro: O objetivo do Senado não é ficar revogando, explicando e emendando outras leis, e sim duas coisas: "primeiro, fidelidade ao objetivo do governo, que é a felicidade do povo; segundo, o conhecimento dos meios para melhor alcançar este objetivo". Isto significa dizer que os homens do Senado têm de ter tempo para poderem estudar as leis, ou seja, não devem dedicar-se a atividades de natureza privada. Além disso, seus mandatos têm de ter uma duração considerável, para que a pessoa possa se dedicar à função pública.
  • Quarto: Necessidade de uma instituição estável no governo. Como os mandatos da Câmara dos Representantes são curtos, o que significa haver uma grande rotatividade dos seus membros, é preciso que uma das casas do legislativo tenha longa duração, para que não haja uma constante mudança de opiniões, nem mudança de diretrizes.

Madison passa a citar, então, alguns "efeitos perniciosos" de um governo mutável. O primeiro deles é que um governo mutável "solapa o respeito e a confiança de outras nações e todas as vantagens associadas ao caráter nacional". Isto significa dizer que as outras nações não terão respeito em relação à nação que muda seu Senado constantemente, além de quererem tirar proveito da mesma sempre que possível.

Outro problema da mudança constante dos membros do Senado é interno. Com mudança constante, seriam criadas leis "demais", e as pessoas não saberiam, ou conseguiriam, viver com e nem mesmo compreender tantas leis.

Além disso, este grande número de leis pode beneficiar pessoas inescrupulosas, que têm conhecimento de alguma lei específica, em relação àquelas que não têm este conhecimento. Assim, poderia ser dito que tal lei foi feita para a minoria, em detrimento da maioria.

Também o comércio é prejudicado com esta instabilidade, pois um comerciante que queira implantar um novo negócio pode ter seu projeto totalmente desfeito caso uma nova lei, feita por um novo senador, atrapalhe a implantação do seu novo negócio. Como o próprio Madison diz, "nenhum grande avanço ou empreendimento meritório que exija os auspícios de um sistema estável de política nacional poderá ter prosseguimento".

O pior efeito da instabilidade, entretanto, é para Madison a "perda de lealdade e reverência que se produz nos corações das pessoas com relação a um sistema político que revela tantos sinais de enfermidade e desaponta tantas de suas agradáveis esperanças". Madison acha que "nenhum governo (...) será respeitado por muito tempo sem que seja realmente respeitável; nem será verdadeiramente respeitável sem possuir certa parcela de ordem e estabilidade".

(Continua na próxima postagem.)

14 de maio de 2008

Os artigos federalistas (VI)

(Continuação da postagem anterior.)

Número XV

Hamilton discute, neste artigo, a insuficiência da Confederação da época para a preservação da União. É sabido que, logo após a independência das treze colônias, estas se uniram em uma confederação, que tratava apenas de assuntos da área internacional -- tanto amigáveis (relações diplomáticas) quando não amigáveis (guerra). Hamilton irá, então, explicitar os principais erros desta confederação, de forma que se torne legítima a solicitação de uma federação no lugar da confederação.

O primeiro erro apontado por Hamilton é o fato de que a legislação da confederação foi feita tendo-se em vista os Estados ou governos em seu caráter de corporações, em contraposição à legislação para os indivíduos que os compõem. Isto significa dizer, por exemplo, que "os Estados Unidos têm direito ilimitado a requisitar homens e dinheiro, mas não têm autoridade para mobilizá-los por meio de normas que se estendam aos cidadãos individuais da América". Desta forma, apesar de serem leis constitucionais, na prática tais leis não passam de meras recomendações, que podem ou não ser acatadas e executadas pelos Estados.

Além disso, o fato de ser uma Confederação reduziria a "convivência" dos Estados "a uma simples aliança ofensiva e defensiva e nos poria em condições de sermos ciclicamente amigos e inimigos uns dos outros, ao sabor de nossas mútuas cobiças e rivalidades, alimentadas pelas intrigas de nações estrangeiras". Portanto, para se tornar verdadeiramente um governo nacional, diferenciando-se de uma simples liga, a autoridade da União deve ser ampliada às pessoas dos cidadãos -- "os únicos objetos próprios de governo".

Também deve ser levado em consideração o fato de que, para ser efetivamente uma lei, a mesma tem de possuir mecanismos reais de coerção, caso não seja seguida. Em outras palavras, uma penalidade ou punição por desobediência. Caso não haja esta punição, a lei não passa de recomendação. Esta coerção só pode ser realizada de duas formas: ou por meio dos tribunais, ou por meio da força militar. A coerção é necessária porque "o espírito faccioso (...) muitas vezes precipitará as pessoas que as compõem [as corporações humanas] a impropriedades e excessos de que elas [as pessoas] se envergonhariam individualmente".

Hamilton destaca também a tendência existente, nas esferas inferiores do governo, de fugir ao centro comum. Assim, há sempre a possibilidade de que os Estados se rebelem contra o governo federal, e este precisa de meios jurídicos e militares para evitar que estas insurreições sejam vitoriosas. Os Estados devem ter consciência de que não podem brigar por "interesses pessoais", ou seja, por interesses que beneficiem a si próprios e que, eventualmente, prejudiquem o resto da nação. Também os indivíduos devem ter este mesmo raciocínio em mente: se quiserem beneficiar-se a si próprios, os outros poderão sair prejudicados, o que prejudica o corpo -- a União -- como um todo.

Número LI

Cada um dos três poderes deveria determinar-se a si mesmo. Desta forma, seus respectivos membros deveriam ter a menor ingerência possível na designação dos membros dos outros poderes. Os membros dos poderes executivo e legislativo devem ser escolhidos pelo povo através de eleições. Já os membros do judiciário devem ser escolhidos por membros do executivo, por ser difícil elaborar um método de escolha confiável para estes membros -- pois os mesmos têm de possuir certas qualificações -- e por causa do caráter permanente dos cargos desse poder. É sobre esta divisão de poderes que Madison escreve neste artigo.

Madison adota aqui a idéia de Montesquieu, qual seja: o "monitoramento" de um poder por outro. Com o poder estando dividido, o poder contraria o poder, de forma que a ambição de um freie a ambição do outro, e vice-versa. Como diz Madison, "a grande dificuldade reside nisto: é preciso primeiro capacitar o governo a controlar os governados; e em seguida obrigá-lo a se controlar a si próprio".

Entretanto, mesmo com estes freios e contrapesos na distribuição do poder, Madison admite que, em um regime republicano, a autoridade legislativa é a predominante. Para evitar o abuso de seu poder, o legislativo também é dividido, assim como o poder central, em vários ramos, com diferentes modos de eleição e diferentes princípios de ação. Por outro lado, o poder executivo deve ser fortalecido, o que ocorre com a criação do veto presidencial sobre os atos do legislativo.

Madison lembra que a divisão dos poderes não é apenas horizontal, mas também vertical. Assim, "o poder concedido pelo povo é primeiro dividido entre dois governos distintos e depois a porção que coube a cada um é subdividida por braços independentes e separados. (...) Os diferentes governos vão se controlar um ao outro, ao mesmo tempo em que cada um será controlado por si mesmo". Temos, portanto, um quadro explicativo sobre a divisão dos poderes.

Nota-se, portanto, que há duas esferas de atuação de poder: o governo federal e o governo estadual -- primeira divisão de poderes, com um "monitorando" o outro. Logo após, há outra separação de poderes, esta sendo "interna" a cada braço do poder concedido pelo povo -- em poder executivo e legislativo, para ambos os "braços". Assim, dentro do campo de ação de cada "braço", também o poder é "vigiado", com o legislativo vigiando o executivo e vice-versa. Ainda, dentro do próprio poder legislativo, há mais uma divisão entre Senado e Câmara, novamente com um "monitorando" o outro.

(Continua na próxima postagem.)

13 de maio de 2008

Os artigos federalistas (V)

(Continuação da postagem anterior.)

Número X

Este artigo, escrito por Madison, irá continuar a defesa da União contra a violência e o facciosismo. Madison começa definindo o que é facção, que para ele é um "certo número de cidadãos, quer correspondam a uma maioria ou a uma minoria, unidos e movidos por algum impulso comum, de paixão ou de interesse, adverso aos direitos dos demais cidadãos ou aos interesses permanentes e coletivos da comunidade".

Ele cita dois métodos principais para remover as causas do facciosismo: o primeiro seria destruindo a liberdade, campo essencial ao facciosismo, e o segundo seria fazendo com que todos os cidadãos pensassem da mesma forma e tivessem as mesmas paixões e interesses.

Logicamente, Madison recusa o primeiro método, que é a supressão da liberdade, liberdade essa essencial à vida política. O segundo método é tão impraticável quanto o primeiro, pois a liberdade de pensamento está atrelada ao direito de propriedade. Como pode um governo, que tem como primeira finalidade a defesa do direito de propriedade, tentar suprimir a liberdade de pensamento, que resulta em diferentes opiniões?

O facciosismo está, portanto, enraizado na natureza do homem, e existe em toda parte: não apenas em aspectos políticos, mas também, por exemplo, na religião e em muitos outros pontos. Madison afirma que "a fonte mais comum e duradoura de facções, porém, tem sido a distribuição diversa e desigual da propriedade. Os que têm bens e os que carecem deles sempre formaram interesses distintos na sociedade. Credores e devedores recaem em uma distinção semelhante". Portanto, "a regulação desses interesses diversos e concorrentes constitui a principal tarefa da legislação moderna e introduz o espírito partidário nas operações necessárias e ordinárias do governo".

Surge, então, o "conceito" de justiça nos escritos federalistas. Chega-se à conclusão de que a justiça deve manter o equilíbrio entre as partes beligerantes. Madison, contudo, destaca que as partes beligerantes são elas mesmas os juízes e, sendo assim, a "vitória" será dada àquela parte mais numerosa, ou em outras palavras, à facção mais poderosa. O problema das facções continua existindo, ainda mais porque não é sempre que há estadistas esclarecidos no poder.

Sendo assim, Madison chega à conclusão que não há como acabar com as causas do facciosismo, e que devemos, portanto, controlar os seus efeitos. Assim, se "uma facção não consegue ser maioria, o princípio republicano torna a maioria capaz de destruir, pelo voto regular, suas ameaçadoras pretensões. [Esta facção] será incapaz (...) de pôr em prática sua violência e mascará-la sob a Constituição". Entretanto, se uma facção conseguir controlar a maioria, tanto o bem público quanto os direitos dos demais cidadãos podem ser sacrificados em nome de sua própria vontade. Deve-se, portanto, buscar uma "fórmula" que concilie a garantia do bem público e dos direitos privados com o espírito e a forma do governo popular.

Segundo Madison, "uma democracia pura, (...) uma sociedade formada um pequeno número de cidadãos que se unem e administram pessoalmente o governo, não dispõe de nenhum remédio contra os malefícios da facção". Já a república, onde há representação política, fornece a solução a este problema.

Há dois grandes pontos de diferença entre uma democracia e uma república: primeiro, na república o que ocorre é a delegação do governo a um pequeno número de cidadãos eleitos pelos demais, e não o governo do próprio povo, como na democracia; em segundo lugar, há um número maior de cidadãos e a extensão territorial também é maior.

Em relação ao primeiro ponto, Madison argumenta que os cidadãos eleitos teriam uma maior sabedoria para discernir interesses pessoais dos interesses do país, além de um alto "patriotismo e amor à justiça". Madison, entretanto, ressalta que pode haver pessoas escolhidas através do voto e que pertençam a alguma facção, e que utilizem o poder legitimamente dado pelo povo para beneficiar a facção da qual pertencem. Para solucionar este problema, Madison sugere que quanto maior a extensão territorial, melhor -- pois assim há um maior número de possíveis eleitos, o que aumenta as chances de uma escolha adequada. Além disso, devemos lembrar que, devido ao maior número de eleitores, ficaria difícil para um candidato inescrupuloso "enganar" um número suficiente de pessoas que votassem no mesmo. Um terceiro ponto a favor da grande extensão territorial é que existiriam vários partidos e vários interesses, os quais não conseguiriam se coordenar a ponto de atingir um objetivo em comum, para a formação de uma facção que atingisse a maioria. Ainda, o representante não é muito familiarizado com as circunstâncias locais e os interesses menores destes mesmos locais. Argumentando neste sentido, Madison resolve dois problemas de uma só vez: primeiro, ele evita que os representantes tornem-se apegados a uma determinada região, beneficiando-a mais do que a outras; segundo, ele justifica a necessidade de duas esferas governamentais, a federal e a estadual. Na primeira, o legislativo nacional cuidaria dos interesses da União como um todo, e na segunda o legislativo estadual cuidaria dos interesses locais de cada região.

Baseando seu argumento ainda na vantagem da extensão territorial, Madison afirma que "a influência dos líderes facciosos pode atiçar uma chama em seus Estados particulares, mas será incapaz de disseminar uma conflagração pelos outros Estados". Assim, caso houvesse iniciativas de algum projeto "impróprio ou perverso", estas iniciativas ficariam restritas a um Estado apenas, não se alastrando pelo resto do corpo federado. A república federativa seria, portanto, "um remédio republicano para as doenças que mais afligem o governo republicano".

(Continua na próxima postagem.)

12 de maio de 2008

Os artigos federalistas (IV)

(Continuação da postagem anterior.)

Número II

O segundo artigo, escrito por John Jay, inicia-se dizendo que era incontestável o fato de que "a prosperidade do povo da América dependia da continuidade de sua firme união". Contudo, alguns dos próprios defensores da União voltaram-se contra esta idéia, passando a defender a necessidade de diversas confederações ou soberanias.

Jay cita os diversos itens que poderiam contribuir para a manutenção da união entre as treze colônias, desde recursos naturais ("uma sucessão de águas navegáveis forma uma espécie de corrente em torno de seus limites, como que para mantê-lo unido") até itens sociais ("um povo que descende dos mesmos ancestrais, que fala a mesma língua, professa a mesma religião, adere aos mesmos princípios de governo (...) [e que], lutando durante toda uma guerra longa e sangrenta, instituiu nobremente sua liberdade e independência geral"). Jay cita também a Convenção de Filadélfia, onde delegados representando doze dos treze Estados que formaram os EUA elaboraram a Constituição deste país.

Um aspecto muito importante deste artigo é quando o autor afirma que a nova Constituição dos Estados Unidos será recomendada à população, e não imposta. A aprovação do texto deverá ser feita de maneira "serena e honesta", através de análises "não passionais" do mesmo.

Jay legitima o funcionamento da Convenção de Filadélfia pela capacidade intelectual de seus membros. Ele afirma que os componentes desta Convenção eram os homens mais sábios, aqueles que já foram "experimentados e justamente aprovados por seu patriotismo e suas capacidades, e que amadureceram adquirindo informação política, [levando para a Convenção] seu conhecimento e experiência acumulados". Os Congressos e Convenções foram feitos levando-se o povo em consideração, estando de acordo com o mesmo. Por fim, Jay levanta o argumento de que, caso a União seja dissolvida, os Estados Unidos não seriam mais "um grande país".

Número IX

Neste artigo, Hamilton inicia a defesa de seus argumentos contra o facciosismo e a insurreição doméstica. Logicamente, o principal argumento contra estes dois "males" é a manutenção da união entre os treze estados.

Segundo o autor, as repúblicas antigas não tinham todo o seu "potencial" explorado, pois os antigos não conheciam em absoluto, ou conheciam imperfeitamente, seus princípios. Sendo assim, tais repúblicas mantinham-se em constante distúrbio, possuindo apenas alguns momentos de "calmaria".

Por estarem sempre pendendo entre a tirania e a anarquia, estas repúblicas ofereceram vários argumentos contrários aos princípios da liberdade civil aos defensores do despotismo. Assim, quando se falava em república, estas pessoas logo traziam à memória a lembrança daquelas repúblicas, e argumentavam que este sistema não funcionava.

Hamilton, contudo, fará uma nova defesa da república neste artigo. É importante destacar, entretanto, que a república que os federalistas defendem é a república federativa, e não a república "unitária", como na Grécia e Itália antigas. É desta forma que ele cita:

  1. A distribuição regular do poder em distintos setores (separação dos poderes);
  2. A introdução de equilíbrios e controles legislativos (parlamento bicameral);
  3. A instituição de tribunais compostos de juízes que só perdem seus cargos por má conduta (Suprema Corte);
  4. A representação do povo no legislativo por deputados eleitos por ele próprio ("Câmara dos Representantes").
Hamilton diz que "estas descobertas são inteiramente novas, ou tiveram seu principal aperfeiçoamento nos tempos modernos. São meios, e meios poderosos, pelos quais as excelências do governo republicano podem ser conservadas e suas imperfeições diminuídas ou evitadas". É claro que todos estes pontos devem ser levados em consideração tanto para repúblicas "unitárias" quanto para repúblicas federativas, ou seja, aquelas onde há a consolidação de vários Estados menores em uma grande federação.

O autor cita que os opositores a este plano federativo para os Estados Unidos têm como argumento os de Montesquieu. Este autor, em seus trabalhos, argumentou que "é da natureza de uma república que seu território seja pequeno; sem isso, ela dificilmente pode subsistir". Hamilton, contudo, inverte o raciocínio, usando os argumentos de Montesquieu a favor da república federativa. Hamilton lembra que as repúblicas para as quais Montesquieu argumentava tinham extensões menores que os próprios estados americanos -- o que significa dizer que "nenhum deles poderia de forma alguma ser comparado ao modelo que lhe servia de base e a que se aplicam os termos de sua descrição". Sendo assim, Hamilton argumenta que, se fossem seguir os escritos de Montesquieu, deveriam adotar a monarquia ou dividir-se em minúsculas comunidades, que estariam em constante luta entre si. Esta divisão, segundo Hamilton, faria com que os governantes governassem em benefício próprio, sem promover "a grandeza ou a felicidade do povo da América".

Outro argumento de Montesquieu que Hamilton inverte a seu favor é que Montesquieu, quando fez sua afirmação, referia-se apenas à redução do tamanho dos membros mais consideráveis. Contudo, em nenhum momento Montesquieu afirmou que não seria possível a união destes estados em um só corpo federado. O próprio Montesquieu trata a república federativa como uma forma de conciliar as vantagens da monarquia com as vantagens da república.

Voltando ao assunto principal do artigo, Hamilton reafirma que a União é indispensável para reprimir o facciosismo e as insurreições internas. Segundo ele, a proposta não é a de que os Estados abram mão de seu poder em favor de um governo federal, ou seja, que os Estados passem parte do seu poder para controle federal, abolindo os governos estaduais. A idéia é que os Estados tornem-se "partes integrantes da soberania nacional, ao lhes conceder uma representação direta no Senado, [deixando] em suas mãos certas porções exclusivas e muito importantes do poder soberano. Isto corresponde, plenamente, em todos os sentidos sensatos dos termos, à idéia de um governo federal".

O facciosismo seria combatido desta forma: cada Estado, tendo uma representação no Senado, reprimiria a vontade de um Estado em particular que quisesse obter mais benefícios do que outros Estados. E as insurreições internas seriam reprimidas através da força dos outros Estados, da mesma maneira que Montesquieu afirmara:

Quem pretendesse usurpar dificilmente poderia ser acreditado em todos os Estados federados. Se se tornasse muito poderoso em um, alarmaria todos os demais; se subjugasse uma parte, a que ainda estivesse livre poderia resistir com forças independentes das que estariam usurpadas e vencê-lo antes que tivesse acabado de estabelecer-se.

Caso ocorra uma insurreição popular em um dos Estados federados, os outros têm condições de reprimi-la. Se medrarem abusos em uma parte, serão corrigidos pelas que permanecem incólumes. O Estado pode ser destruído de um lado e não de outro; a federação pode ser dissolvida e os federados preservam sua soberania.

(Continua na postagem anterior.)

9 de maio de 2008

Os artigos federalistas (III)

(Continuação da postagem anterior.)

A separação dos poderes

A idéia de separar poderes entre os vários braços do governo para evitar a tirania do poder concentrado está dentro da "categoria" de freios e contrapesos. Mas Os artigos federalistas vêem outra virtude na separação dos poderes, principalmente um aumento da eficiência do governo. Estando limitado a funções especializadas, os diferentes braços do governo desenvolvem experiência e um senso de orgulho ao realizar seus papéis, o que não aconteceria se eles estivessem juntos.

Qualidades que poderiam ser cruciais para uma função poderiam ser mal realizadas por outra função. Assim, Hamilton defendeu a "energia no executivo" como essencial para defender o país contra ataques estrangeiros, administrar as leis de maneira correta e proteger a propriedade e liberdade individuais, as quais ele via como direitos bem próximos. Por outro lado, não energia mas "deliberação e sabedoria" são as melhores qualificações para um legislador, que deve conquistar a confiança do povo e conciliar seus diversos interesses. Essa diferença de necessidades também explica porque a autoridade executiva deve ser colocada nas mãos de apenas uma pessoa, o presidente, já que uma pluralidade de "executivos" poderia levar à paralisia política e "frustrar as medidas mais importantes do governo, nas emergências mais críticas do Estado". Isso significa dizer que os legisladores, refletindo a vontade do povo, após discussão e deliberação, criam uma lei, a qual deve ser executada sem favoritismo pelo executivo, resistindo a interesses privados. E no caso de ataque por parte de algum outro país, o executivo deve possuir o poder e a energia para responder imediatamente, da maneira mais forte possível. E para o judiciário, as qualidades necessárias também são especiais: não é necessária a energia do executivo, nem a responsabilidade ao sentimento popular do legislativo, mas sim "integridade e moderação" e, por serem indicados pelo resto da vida, liberdade para trabalhar sem sofrer pressões populares, do executivo ou do legislativo.

As questões perpétuas da política

As observações memoráveis em Os artigos federalistas sobre governo, sociedade, liberdade, tirania e a natureza do homem político não são sempre fáceis de se encontrar. Muitos desses artigos são antigos, repetitivos ou arcaicos em seu estilo. Os autores não tinham nem tempo nem inclinação para colocar seus pensamentos em uma forma ordenada e compreensiva. Mesmo assim, Os artigos federalistas mantêm-se indispensáveis para qualquer um seriamente interessado nas questões perpétuas da teoria e na prática política levantadas por Hamilton e Madison. Segundo Clinton Rossitor, historiador político, "a mensagem de O federalista é a seguinte: não há felicidade se não houver liberdade; não há liberdade se não houver autogoverno; não há autogoverno sem constitucionalismo; não há constitucionalismo sem moralidade -- e nenhum desses bens existem sem estabilidade e ordem".

Número I

Hamilton inicia este artigo falando sobre por quê é necessária uma nova Constituição. Segundo ele, o plano para esta nova Constituição tem motivos tanto patrióticos quanto filosóficos. Assim, ele diz que se deve considerar as conseqüências para a existência da União, juntamente com uma avaliação judiciosa dos verdadeiros interesses da população das treze colônias.

Há, contudo, pessoas que são contrárias a esta nova Constituição, pois ela retiraria poder e influência destas mesmas pessoas. Desta forma, os governadores estaduais estariam perdendo, assim como aqueles que poderiam "se promover às custas das confusões de seu país".

Hamilton destaca que nem todos aqueles que são contrários à nova Constituição assim o são por opiniões interessadas ou ambiciosas. Ele sugere que mesmo aqueles que são contra "podem ser movidos por propósitos elevados", de forma que "nem sempre temos certeza de que aqueles que defendem a verdade são movidos por princípios mais puros que os de seus antagonistas".

O autor alerta ainda para a diferença entre os interesses do povo e os interesses daqueles que controlam o Estado. Hamilton diz que há muitos governantes que começam suas carreiras cortejando o povo, garantindo os direitos do mesmo. Só que, segundo ele, estes são os que verdadeiramente destroem as liberdades das repúblicas, e não aqueles que iniciam seu governo aperfeiçoando a firmeza e a eficiência do governo.

Hamilton termina este primeiro artigo dizendo que seu objetivo foi de "advertir-vos contra todas as tentativas, não importa de onde venham, de influenciar vossa decisão [do povo] em uma matéria de máxima importância para vosso bem-estar [do povo] por quaisquer noções além das que podem resultar da evidência da verdade", e que ele, claramente, é favorável à nova Constituição. Lista, então, os tópicos que serão discutidos nesta série de artigos, e termina dizendo que "ou bem se adota a nova Constituição, ou haverá um desmembramento da União".

(Continua na próxima postagem.)

8 de maio de 2008

Os artigos federalistas (II)

(Continuação da postagem anterior.)

Freios e contrapesos

Os artigos federalistas também forneceram a primeira menção específica que temos na literatura política sobre a idéia de freios e contrapesos como uma maneira de restringir o poder governamental e prevenir o uso abusivo do mesmo. As palavras são usadas principalmente quando se referem à legislatura bicameral, que tanto Hamilton quanto Madison acreditam ser o "braço" mais forte do governo. Como concebido originalmente, a popular e presumivelmente impetuosa Câmara dos Representantes, com seus membros eleitos, seria freada por um Senado mais conservador, com seus membros escolhidos pelas legislaturas estaduais (a 17a Emenda, de 1913, mudou as regras ao estabelecer eleições populares para os senadores). Em uma ocasião, entretanto, Madison argumentou que "um poder deve cuidar de outro poder" e Hamilton observou que "uma assembléia democrática deve ser controlada por um Senado democrático, e ambos por um magistrado".

Em seu artigo mais brilhante (número 78), Hamilton defendeu o direito da Suprema Corte em magistrar sobre a constitucionalidade das leis criadas tanto pelos legislativos estaduais, quanto pelo legislativo nacional. Este poder de "revisão judicial", ele argumentou, era um freio apropriado ao poder legislativo, onde havia maior possibilidade de que "o sopro pestilento das facções pudesse envenenar as fontes da justiça". Hamilton explicitamente rejeitou o sistema britânico de permitir que o parlamento, por voto de maioria, derrube qualquer decisão da Suprema Corte com a qual não concorde. Ao invés disso, "as cortes de justiça devem ser consideradas como bastiões de uma Constituição limitada contra usurpações legislativas". Apenas o difícil processo de emendar a Constituição, ou a transformação gradual dos membros do judiciário em outro ponto de vista, poderia reverter a interpretação da Suprema Corte em relação à Constituição.

Natureza humana, governo e direitos individuais

Por trás da noção de freios e contrapesos, há uma visão profundamente realista da natureza humana. Enquanto Madison e Hamilton acreditavam que o homem, em seu melhor ponto, era capaz de agir racionalmente, autodisciplinando-se e de maneira regular, eles também reconheciam sua suscetibilidade a paixões, intolerância e ganância. Em uma passagem famosa, após discutir quais medidas eram necessárias para preservar a liberdade, Madison escreveu:

Pode ser um reflexo da natureza humana que tais mecanismos deveriam ser necessários para controlar os abusos do governo. Mas o que é um governo, senão o maior de todos os reflexos da natureza humana? Se os homens fossem anjos, não haveria necessidade de governo. Se os anjos governassem, não seriam necessários controles internos e externos. Em um governo que será administrado por homens sobre outros homens, a maior dificuldade é esta: você deve primeiro permitir ao governo que controle os governados; e em seguida obrigar o governo a se controlar.

No artigo mais original e importante de Os artigos federalistas (número 10), Madison falou sobre este duplo desafio. Seu assunto principal era a necessidade "de quebrar e controlar a violência das facções", ou seja, de partidos políticos, os quais ele considerava como o maior perigo ao governo popular: "certo número de cidadãos, unidos e movidos por algum impulso comum, de paixão ou de interesse, adverso aos direitos dos demais cidadãos ou aos interesses permanentes e coletivos da comunidade". Essas paixões ou interesses que põem em perigo os direitos dos outros podem ser religiosos, políticos ou, mais freqüentemente, econômicos. As facções podem dividir-se em ricos e pobres, credores e devedores, ou de acordo com os tipos de propriedade possuídos. Madison escreveu:

Um interesse fundiário, um interesse mercantil, um interesse pecuniário, ao lado de muitos interesses menores, surgem necessariamente nas nações civilizadas e as dividem em diferentes classes, movidas por diferentes atitudes e concepções. A regulação desses interesses diversos e concorrentes constitui a principal tarefa da legislação moderna.

Como, então, podem pessoas livres e racionais mediar tantos clamores competindo entre si, ou ainda as facções que derivam destes clamores? Uma forma razoável de governo deve ser capaz de prevenir qualquer facção, seja ela majoritária ou minoritária, de impor suas vontades sobre o bem geral. Uma defesa contra facções, Madison diz, é a forma republicana -- ou representativa -- de governo, que tende a "redefinir e ampliar a visão pública através de um corpo escolhido pelos cidadãos", que devem ser homens educados e de bom caráter. Como representantes eleitos estão um pouco longe dos "sentimentos da massa", eles provavelmente também terão uma visão mais ampliada e mais sábia dos acontecimentos.

Mas, ainda mais importante, segundo Madison, foi aumentar a base geográfica e popular da república, como aconteceria sob o governo nacional proposto pela nova Constituição. Ele escreveu: "Como cada representante será escolhido por um grande número de cidadãos, será mais difícil para candidatos sem valor praticar, com sucesso, as artes viciosas para conseguir se eleger".

A influência de líderes facciosos pode criar uma chama de revolta em um Estado em particular, mas esta chama será incapaz de se propagar totalmente por todos os outros Estados.

O que está sendo requisitado aqui é o princípio do pluralismo, que dá as boas vindas à diversidade individual e à liberdade, mas é ainda mais crucial pelo seu efeito positivo ao neutralizar paixões e interesses conflitantes. Assim como a grande variedade de religiões nos Estados Unidos torna incapaz a criação de uma igreja nacional, também a variedade de Estados com várias regiões divergentes torna incapaz o domínio nacional por parte de uma facção ou partido potencialmente opressivo. Uma confirmação do argumento de Madison pode ser encontrado na evolução dos maiores partidos políticos americanos, que tiveram tendência a serem moderados e não-ideológicos porque cada um deles abrange uma grande diversidade de interesses econômicos e sociais.

(Continua na próxima postagem.)