11 de julho de 2008

Recesso

Prezados visitantes deste blog,

A partir de hoje o blog entrará em recesso. Retornaremos com as postagens habituais a partir do dia 11 de agosto.

Caso haja dúvidas, sintam-se livres para entrar em contato.

Cordialmente,

Prof. Matheus.

10 de julho de 2008

Regime Político (II)

(Continuação da postagem anterior.)

No modo de produção feudal, como nos dois tipos anteriores, o que predomina é o cultivo da terra, a que são, porém, encadeados os servos da gleba. O papel de classe dominante desempenhado pela nobreza apóia-se na propriedade fundiária. Nas cidades, onde se desenvolve o artesanato e o comércio, formam-se as corporações, cuja organização, análoga à existente nas zonas rurais, se baseia na divisão entre mestres, oficiais e aprendizes. As instituições políticas correspondentes a essa estrutura social foram as monarquias feudais, as senhorias e as comunas livres.

Finalmente, a produção capitalista abriu caminho à Revolução Industrial que, substituindo as manufaturas pelas fábricas, fez surgir a classe operária. Aparece assim, pela primeira vez, o trabalhador livre como figura social dominante, a que corresponde o trabalho assalariado como relação social preponderante. É nessas condições que se torna possível a democracia representativa. Esse tipo de regime não pode funcionar nem manter-se numa sociedade cuja base humana e territorial é mais ampla que a cidade-Estado, sem um certo grau de industrialização, ou seja, sem condições sociais que possibilitem a participação política. O desenvolvimento da Revolução Industrial, ao libertar o indivíduo do domínio das instituições tradicionais (monarcas, nobreza feudal, Igrejas...), que tendiam a isolá-lo do resto da sociedade, transformou profundamente as relações políticas e sociais. A democracia representativa nasceu quando a burguesia, em primeiro lugar, e depois o povo inteiro se tornaram conscientes de ser os protagonistas do desenvolvimento social e quiseram nele influir participando do controle do poder.

Contudo, a democracia representativa não foi sempre o regime que acompanhou o desenvolvimento industrial. Um dos resultados mais relevantes dos regimes fascistas, por exemplo, foi o de fazerem desaparecer os resíduos feudais que impediam que a industrialização e suas conseqüências políticas obtivessem pleno êxito. Por outro lado, o socialismo de versão russa e chinesa parece ser o Regime político mais apto a levar avante a industrialização rápida e forçada de um país atrasado. A participação política que em ambos os regimes, cada um por vias diferentes e com fins diversos, se obteve com uma mobilização predominantemente dirigida desde o alto parece, no entanto, constituir a base do desenvolvimento de formas de organização política mais democráticas.

IV. CRITÉRIO DA RAZÃO DE ESTADO. Mas o estudo da estrutura social, ou, melhor, do modo de produção que caracteriza uma determinada sociedade, não exaure o conjunto dos fatores que exercem influência imediata no funcionamento real dos Regimes políticos e que servem, conseqüentemente, para explicar a sua estrutura. A fisionomia que apresenta cada uma das organizações estatais depende também do sistema dos Estados, isto é, da ordem das relações internacionais de poder, que constitui o setor onde se manifesta com máximo relevo o caráter relativamente autônomo da vida política com relação à evolução do modo de produção.

Em geral, a anarquia internacional e o conseqüente perigo de guerra a que constantemente estão expostos todos os Estados tendem a provocar a formação de estruturas políticas autoritárias, mais eficazes na luta com os outros Estados. Mas, como os vários Estados não estão igualmente expostos à pressão que as relações internacionais de poder exercem sobre a forma de regime, a diferença entre regimes cuja base social alcançou o mesmo estádio de desenvolvimento do modo de produção não pode ser explicada senão recorrendo ao papel diverso que o Estado desempenha dentro do sistema político internacional. Os teóricos da razão de Estado, por exemplo, explicaram o florescimento das liberdades políticas e do autogoverno local na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos pela insalubridade destes Estados; o autoritarismo, o militarismo e a centralização que se desenvolveram, se bem que em graus diversos, na Alemanha, na França e na Itália, pela posição continental de tais Estados. O Estado continental, devido aos próprios limites terrestres, estaria muito mais exposto aos perigos de invasão que o insular, sendo por isso obrigado a manter enormes exércitos permanentes e a desenvolver um regime centralizado e autoritário capaz de mobilizar rapidamente todos os recursos da sociedade. O Estado insular, pelo contrário, protegido pelo mar, pôde prover à sua defesa recorrendo simplesmente à armada, podendo adotar um regime que deixasse um amplo espaço aberto às liberdades individuais e às autonomias locais.

Convém acrescentar aqui uma outra consideração a respeito dos partidos. No Estado moderno, baseado na participação política de todos os cidadãos, a sede efetiva do poder é o sistema partidário ou o partido único, influenciados pela posição das forças sociais e assentes no consenso popular. O comportamento dos partidos, como o dos Estados, obedece à lei da busca da segurança e do fortalecimento do próprio poder. A configuração do Regime político dependerá, pois, do ajustamento que apresentarem as relações entre os partidos, isto é, do sistema partidário. É por isso que os esquemas de análise elaborados pela teoria da razão de Estado foram estendidos, conscientemente ou não, à interpretação do comportamento dos partidos. Duverger, por exemplo, salientou que, para fins de classificação dos Regimes políticos, o tipo de sistema partidário tem muito mais importância que a fórmula jurídico-constitucional com que geralmente são definidos. Um dos resultados mais importantes a que chegou esse tipo de análise é a descoberta de uma profunda semelhança entre o regime presidencial dos Estados Unidos e o regime parlamentar da Grã-Bretanha. O bipartidarismo britânico permite, com efeito, a eleição direta do chefe do Governo, porque quem assume tal função é o chefe do partido que vence as eleições. Pelo contrário, nos regimes parlamentares de sistema pluripartidário da parte ocidental do continente europeu, o chefe do Governo é designado pelos partidos que concordaram em formar a coalizão governamental.

V. CONCLUSÕES. O materialismo histórico e a teoria da razão de Estado constituem indubitavelmente os mais importantes modelos explicativos do processo político, oferecendo, por isso, critérios válidos para a tipificação dos Regimes políticos. Ambos os modelos são geralmente considerados incompatíveis, tal como as correntes político-culturais que os criaram. No entanto, umas breves considerações bastarão para mostrar que, tomados separadamente, não conseguem explicar um vasto campo de variabilidade, mas, considerados como complementares, permitem explicar correlaç ões que, de outra forma, seriam inexplicáveis.

O materialismo histórico explica, por exemplo, a relação que existe entre a industrialização e o nascimento dos modernos Estados burocráticos de dimensões nacionais. Porém, a diferença existente entre a estrutura rígida e centralizada dos Estados do continente europeu e a estrutura elástica e descentralizada da Grã-Bretanha não pode ser explicada com base numa estrutura diversa do sistema produtivo. O que explica essa diferença é um fator político (o diferente papel desempenhado pelas potências continentais em confronto com a insular no sistema dos Estados, derivado do fato de as primeiras estarem mais expostas que a segunda ao perigo de agressões), fator este que não está diretamente relacionado com a estrutura do sistema produtivo.

Esse exemplo parece apontar uma fecunda hipótese de trabalho para se chegar à formulação de uma tipologia satisfatória dos regimes políticos. Essa hipótese fundase no caráter complementar dos modelos do materialismo histórico e da teoria da razão de Estado, entendidos como partes de uma teoria unitária do processo histórico. O materialismo histórico só deveria ser compreendido como um modelo geral capaz de explicar a relação existente entre uma determinada fase da evolução do modo de produção e a estrutura do regime político, dentro de limites relevantes de variação do modo de produzir, enquanto que o campo de variabilidade não definido pelo materialismo histórico seria coberto pela teoria da razão de Estado, entendida como teoria baseada no princípio da autonomia relativa do poder político em relação à evolução do modo de produção.

Fonte: BOBBIO, Norberto. Dicionário de política. Versão digital. Brasília: Ed. UnB, 2005.

9 de julho de 2008

Regime Político (I)

Regime Político

I. DEFINIÇÃO. Por Regime político se entende o conjunto das instituições que regulam a luta pelo poder e o seu exercício, bem como a prática dos valores que animam tais instituições.

As instituições constituem, por um lado, a estrutura orgânica do poder político, que escolhe a classe dirigente e atribui a cada um dos indivíduos empenhados na luta política um papel peculiar. Por outro, são normas e procedimentos que garantem a repetição constante de determinados comportamentos e tornam assim possível o desenvolvimento regular e ordenado da luta pelo poder, do exercício desse e das atividades sociais a ele vinculadas.

Naturalmente, a estrutura do regime, ou seja, o modo de organização e seleção da classe dirigente, condiciona o modo de formação da vontade política. Por conseguinte, o uso de certas instituições, isto é, o uso de determinados meios para a formação das decisões políticas, condiciona os fins possivelmente buscados: a escolha de um regime implica, em termos gerais, a escolha de determinados valores. O nexo entre estrutura do regime e valores há de se entender, porém, no sentido de que a escolha de um regime implica de per si limitação da liberdade de ação do Governo e, conseqüentemente, escolha de uma política fundamental, cujas manifestações históricas podem ser, e são de fato, sensivelmente diferentes umas das outras, se bem que orientadas pelos mesmos princípios gerais. Como demonstra o exemplo da Grã-Bretanha, a esquerda e a direita, alternando-se regularmente no poder, imprimem de quando em quando ao Governo uma diversa orientação política, compatível, no entanto, com a permanência do regime.

II. TIPOLOGIA DOS REGIMES POLÍTICOS. Até uma época relativamente recente, era normal o uso de uma tipologia dos Regimes políticos que havia sido herdada de Aristóteles: distinguia a monarquia, ou Governo de um só, a aristocracia, ou Governo de poucos, e a democracia, ou Governo de todos. A cada uma dessas formas puras correspondia, segundo Aristóteles, uma forma viciada: a tirania, a oligarquia e a demagogia. Nas formas puras, o Governo é administrado em benefício geral, nas viciadas, em benefício de quem detém o poder. O critério em que se funda esta classificação, número dos governantes, é totalmente inadequado para entender em sua essência a diversidade dos regimes políticos. Mesmo que a análise de Aristóteles tenda constantemente a identificar as condições reais de que dependem as diferenças existentes entre os vários regimes, e os resultados do seu estudo encerrem amiúde intuições de caráter fundamentalmente sociológico, o critério sobre o qual se baseia a sua classificação das formas de Governo não leva em conta o fato, demonstrado pela teoria da classe política, de que o Governo está sempre nas mãos de poucos. Com efeito, no regime monárquico e no regime tirânico, não é nunca só uma pessoa quem detém o poder, mas um grupo. Nos regimes democráticos também não é o povo quem governa, mas os seus representantes.

Montesquieu afasta-se da classificação tradicional, porque apóia a distinção entre república, monarquia e despotismo, não apenas num critério numérico, mas também na combinação de dois critérios que ele define como "natureza" e "princípio" do Governo. A natureza do Governo depende do número dos detentores do poder (na república, é todo o povo ou parte dele quem o detém, na monarquia e no despotismo o poder está nas mãos de um só) e do modo de o exercer (na monarquia o soberano governa baseado em leis fixas e estáveis; no despotismo governa sem leis e sem regras). O princípio do Governo é o propósito que anima o povo em sua existência concreta. A república fundamenta-se na virtude, a monarquia na honra, o despotismo no medo. É assim que Montesquieu procura caracterizar o nexo existente entre os diversos Regimes políticos e sua base social. Por este processo, isto é, pelo estudo das condições em que se desenvolve a vida política, é possível elaborar uma tipologia dos Regimes políticos assente em fatores que influem decisivamente em sua estrutura e funcionamento.

A abordagem sociológica contribuiu, com efeito, para que se fundamentasse em bases científicas mais sólidas a classificação dos Regimes políticos, por muito tempo ligada a critérios extraídos de preferência dos aspectos formais das instituições políticas. A limitação fundamental da classificação aristotélica e das suas variações ainda hoje difusas é a de basear a distinção entre as várias formas que assume a luta pelo poder, na estrutura do regime, e não vice-versa. Na realidade, a estrutura do regime não constitui um dado último que torne possível explicar o processo político. O critério adequado que permite distinguir as características essenciais dos Regimes políticos, e apontar os seus tipos fundamentais, está na forma da luta política. As diferenças entre os vários tipos de regimes hão de, pois, ser imputadas aos diversos modos de conquista e manutenção do poder, que dependem das condições sociais e políticas da luta por esse poder. As mudanças nas formas de regime derivam, portanto, das transformações ocorridas nas condições internas e internacionais da luta política.

III. O CRITÉRIO DO MATERIALISMO HISTÓRICO. Ao explicar o nexo condicionador que liga a superestrutura política à estrutura social, o materialismo histórico apresenta o critério mais genérico de classificação dos Regimes políticos, cujos tipos fundamentais correspondem às diversas fases da evolução dos modos de produção. Se examinarmos as relações que existem entre sociedade civil e Estado, ou, mais particularmente, entre um regime e a sua base social, parece que não se poderá duvidar de que existe entre ambos os fatores uma relação de condicionamento recíproco. Contudo, baseando-nos no materialismo histórico, parece que podemos afirmar que o dado social expresso na evolução do modo de produção constitui a variável independente, mesmo que, como veremos a seguir, o dado político representado pelo Estado seja de uma relativa autonomia.

Examinemos agora os principais tipos de regime político que é possível identificar, tendo por base esse critério de análise. Enquanto, na comunidade primitiva, onde o indivíduo ainda não se constituíra em entidade autônoma, era ela que se apresentava como primeira força produtiva, partindo daí, o modo de produção antigo transformou os escravos em meios de produção e fez da relação senhor-escravo a relação social dominante. Nessa fase de desenvolvimento do modo de produção, consolidaram-se as desigualdades sociais e se criaram contradições tão profundas no seio da sociedade que esta, para se manter, teve de instituir uma organização dotada de relativa autonomia, com a função específica de moderar os conflitos sociais. Nasceu assim a primeira forma embrionária de Estado. As relações entre os homens acumulavam-se dentro dos estreitos limites do processo da reprodução da vida, isto é, da cidade-Estado. Mesmo onde se atingiram elevadas formas de convivência política, como em Atenas, a democracia continuou limitada ao fino estrato dos homens livres, que, graças ao trabalho dos escravos, podiam ocupar-se direta e assiduamente da coisa pública.

Para explicar a particularidade do desenvolvimento histórico das instituições da China, da Índia e do Egito em cotejo com o do Ocidente, Marx introduziu a categoria do modo de produção asiático, cujas células de base eram comunidades aldeãs auto-suficientes, alicerçadas numa estrutura produtiva mista, de caráter agrícola e artesanal. A propriedade privada do solo não conseguiu impor-se. O Governo central se apropriava de grande parte do produto excedente e, em contrapartida, provia à defesa das comunidades e à realização de grandes obras públicas (vias de comunicação e, principalmente, sistemas de irrigação, indispensáveis ao cultivo da terra), tarefas que só um forte aparelho burocrático estatal poderia levar a termo. São estas as características que explicariam a tradicional imobilidade das sociedades orientais, cujo aspecto essencial era a subordinação da massa dos súditos ao poder central. Daí o nome de despotismo oriental com que é definido o Regime político correspondente ao modo de produção asiático.

(Continua na próxima postagem.)

8 de julho de 2008

Representação Política (II)

(Continuação da postagem anterior.)

III. AS ESTRUTURAS DA REPRESENTAÇÃO. Por si sós, os dados do problema, até aqui analisados, não são suficientes. A prescrição de um dado modelo para a figura do representante e para a função representativa -- prescrição contida em normas constitucionais, sociais e de ethos político -- é uma parte importante mas não é tudo no fenômeno da representação. Na experiência política ocidental moderna -- aquela que constituiu o eixo do conceito de Representação política -- a representação, juntamente com o aspecto comportamentístico e sociológico, tem também, e não sem motivo, um aspecto estrutural que não pode ser esquecido. O que se tira dessa experiência é que, sem uma determinação clara das bases institucionais da representação não se pode nem sequer esperar numa determinação suficiente do modelo funcional. Não se pode elaborar um modelo de representação, abstratamente, sem ter em conta as possibilidades e os limites dos mecanismos institucionais que devem assegurar a atuação das prescrições solenes.

É precisamente essa dimensão comportamental mais do que substancial que distingue a verdadeira representação de outros fenômenos do passado ou de outros contextos políticos modernos em torno dos quais se fala muitas vezes de representação, mas num sentido impróprio. É preciso não esquecer que uma longa tradição de pensamento político, que inclui o próprio Hobbes, viu o soberano absoluto "o representante do país", entendendo por tal aquele que, tendo recebido um país em confiança, é o responsável e curador de seus interesses. Substancialmente se incluem na mesma concepção os modernos chefes carismáticos, os ditadores, os partidos únicos que se autoproclamam representantes dos "verdadeiros" interesses do povo. Apesar de tudo, não podemos deixar de ver a distância que separa a nossa concepção de uma representação que não está sujeita a controles institucionais nem garantida. Para entender essa diferença pode ser útil lembrar a diferença existente no direito privado entre a representação legal que é a tutela de um menor, de um incapaz e a representação voluntária, na qual o representado é um sujeito perfeitamente capaz de agir e portanto titular de um poder de controle e de um direito de revogação. O elemento fundamental do mecanismo de garantia da representação é dado pelas eleições dos organismos parlamentares (e em certos casos de outros organismos políticos). A Representação política pode definir-se então como uma representação eletiva. Não é suficiente porém um tipo qualquer de eleições. Trata-se de eleições competitivas e que ofereçam um mínimo de garantias de liberdade rara expressão do sufrágio. Abaixo de um determinado nível de garantias, o processo eleitoral não pode considerar um instrumento de realização da representação. Em determinadas circunstâncias, a substância do voto não configura mais um prejuízo e uma escolha mas torna-se, simplesmente, uma aclamação e uma investidura plebiscitária. As eleições desenvolverão então funções bem diversas, de mobilização do consenso e de legitimação. Ainda no campo das eleições competitivas, devemos dizer que no processo eleitoral coexistem elementos diversos. Interpretando as eleições como um "juízo" e uma "escolha", devemos observar que juízo e escolha se podem exercer tanto sobre pessoas como sobre programas e atos políticos. Evidentemente, segundo o modelo de representação escolhido, pretender-se-á fazer ressaltar um aspecto de preferência a outros. Num caso, o destaque cairá sobre a escolha pessoal dos representantes; em outro, sobre a determinação prévia das decisões políticas, quase uma estipulação de compromissos vinculantes entre candidatos e eleitores; em outro caso ainda, sobre a ação geral e a posteriori de controle e sobre o efeito que daí deriva de responsabilização. Dentro de determinadas margens, o mecanismo eleitoral pode ser construído de modo a reforçar um ou outro destes aspectos. A essa exigência corresponde a grande variedade de fórmulas elaboradas pela engenharia eleitoral. Essas margens todavia não são muito amplas, hoje. Torna-se necessário ter presente os "vínculos" impostos ao mecanismo eleitoral por uma realidade política caracterizada pelo sufrágio universal numa sociedade de massa e portanto por uma maior distância entre eleitores e eleitos, pela expansão da esfera da ação governamental e pela crescente complexidade dos problemas políticos. Ora, estes dados, de fato, tornam hoje, sempre mais marginais e precários, no sistema eleitoral, os dois aspectos da escolha pessoal dos representantes e da determinação prévia das opções políticas.

Mas o que sobretudo se deve ter em conta é a importância que no processo eleitoral assumiram os partidos tanto no aspecto de elaboradores e de apresentadores de programas políticos como no de organizações de gestão política. Partindo desse dado essencial, conclui-se que um modelo realista da representação, no caso de conter alguns elementos dos modelos já examinados, deverá colocar-se num plano completamente diverso. Hoje, o fenômeno da Representação política deve ser olhado como um fato global mais do que como uma série de relações de representação, reciprocamente independentes, estabelecidas entre os representantes e as circunscrições eleitorais. O mecanismo do qual brota a representação é um enorme processo de competição entre as organizações partidárias pela conquista ou pela conservação das posições parlamentares e governamentais, uma competição regulamentada e que se desenvolve frente a um público com funções de juiz. Neste quadro, o papel do representante individual não é definido de maneira absolutamente unívoca, mas é suscetível de assumir formas diferentes, de acordo com a disciplina partidária, das características da competição eleitoral, e da cultura política. No processo representativo podemos ver na prática duas seqüências tipo: 1) eleitores-partidos-representantes individuais; 2) eleitores-representantes individuais-partidos. Na primeira seqüência, hoje a mais importante, a relação primária corre entre os partidos e o eleitorado; é diretamente a "imagem-partidária" que é apresentada ao juízo eleitoral e é sobre ela que se exerce o controle. Os representantes individuais têm um papel quase só executivo. Na segunda seqüência, menos importante mas não insignificante, são esses que constituem o canal representativo entre o eleitorado (sobretudo a nível local) e os partidos (ou seja, seus órgãos centrais de elaboração de imagem partidária). Em ambos os casos, o papel do representante está diretamente ligado aos dos partidos. O núcleo fundamental da representação está na "responsabilidade" periódica a que estão sujeitos os atores políticos em competição (os partidos). Responsabilidade quer dizer "chamado para responder", para "prestar contas", das próprias ações junto daqueles que têm o poder da designação. Que esta responsabilidade valha por todo um conjunto bastante genérico de comportamentos e não por cada ato individual dos atores políticos, por uma inteira seção de classe política e não por cada pessoa em particular, deveria ser descontado depois de tudo o que se disse. O fosso de desinteresse e ignorância política que divide os governantes dos governados, as cortinas fumarentas mais ou menos densas de que se cerca todo o poder, não permitem muito mais do que isto. Em síntese, a Representação política poderia ser definida como "um sistema institucionalizado de responsabilidade política, realizada através da designação eleitoral livre de certos organismos políticos fundamentais (o mais das vezes, os parlamentos).

IV. REPRESENTAÇÃO E SISTEMA POLÍTICO. Até aqui, a representação foi examinada como um fenômeno em si, mas evidentemente o quadro não pode corresponder plenamente à liberdade até que se analise a inserção da representação na complexa rede institucional de um sistema político. Esse sistema tem duas faces: trata-se, de uma parte, das condições da representação; por outra, do grau de incidência que a representação tem sobre as outras instituições políticas. Dada a natureza dos processos institucionais da representação, devem ter-se como favoráveis todas aquelas condições que jogam no sentido de um alto grau de publicidade nos negócios públicos e de compreensibilidade dos mesmos para os cidadãos, e, invertendo a perspectiva, todas aquelas condições que tornam cognoscíveis à classe política as atitudes do público. A representação está na verdade estreitamente ligada a um processo de duplo sentido de comunicação das mensagens políticas. É, portanto, dependente de todos os canais de informação recíproca e sensível a todas as perturbações que aconteçam neste campo. A representação pressupõe, por conseguinte, um complexo de direitos políticos (liberdade de imprensa, de associação, de propaganda, etc.) que permitem a formação e a manifestação da vontade política dos representantes. Mais alto ainda estão certos fatores culturais. A presença junto do público de uma cultura democrática "participante" e não passiva e nas classes políticas de uma cultura democrática e flexível em vez de autoritária e dogmática, facilita indubitavelmente o funcionamento da representação. Uma condição favorável ulterior é constituída pela presença das elites políticas alternativas, capazes de oferecer uma troca às que detêm o poder e assegurar a dinâmica competitiva a que está estreitamente ligado o mecanismo da representação.

Quanto à relação entre representação e sistema político, existe aí uma importância determinante porque permite realizar a distinção entre "regimes políticos representativos" e "regimes políticos não-representativos" e verificar, conseqüentemente, a validade do critério de discriminação entre o que é e o que não é representação. Finalmente, é sobre esse plano que se deve conduzir o confronto entre concepção enunciada da Representação política, prevalente na cultura política ocidental, a qual adota uma concepção comportamental enquanto faz das eleições o eixo central e aquelas que outras culturas e outros sistemas políticos lhes opõem e que são, na maior parte das vezes, concepções substanciais. É possível falar de regime representativo mesmo de fora daqueles procedimentos eleitorais, dos bem preciosos requisitos que são a substância da representação de que falamos? Efetivamente, mesmo fora dessas limitações, se verificam fenômenos que apresentam analogias com o da representação. Pode haver o caso de regimes nos quais o poder político opera (ou retém ou pretende operar) em tutela dos interesses do público; e em todos os sistemas políticos existem alguns grupos que, pelo menos, com uma ação de pressão, conseguem tomar em consideração e satisfazer seus interesses, ou determinar a substituição de seus governantes. E existem regimes que gozam de um alto nível de legitimidade e de aceitação por parte do público. E tudo isto sem eleições competitivas. Para se ter em conta a analogia com certos efeitos das instituições representativas, pode-se chegar a definir esses como "fenômenos representativos". Todavia, uma linha de divisão se pode e deve fixar entre regimes não representativos e "regimes representativos". Com essa linha se justifica também a distinção entre fenômenos representativos e representação, entendida como sistema institucionalizado de responsabilidade eleitoral. Essas duas distinções correm sobre planos diversos, mas são estreitamente interdependentes, de tal maneira que as alternativas possíveis que daí nascem são duas. Por um lado, temos a possibilidade de efeitos representativos mas com caráter de irregularidade e de precariedade pelo fato de não serem garantidos por mecanismos institucionalizados Não se poderá, portanto, falar de regime representativo e, por razões de clareza, nem tampouco de Representação política sem ulteriores especificações, por faltar a correspondência à lógica causal da representação que quer a instituição de um poder de controle dos cidadãos no funcionamento do regime político. Por outro lado, existe a representação baseada em processos estabilizados e, na medida em que isto permite a eles ter um papel central e significativo, no âmbito do sistema político construído em torno dela, se poderá falar de regime político representativo. As demais estruturas políticas deverão sofrer o controle dos organismos representativos e basear neles sua legitimação.

V. CONCLUSÃO. Em conclusão, os regimes representativos são aqueles regimes que recebem da representação uma caracterização decisiva. A representação, por sua vez, é um fenômeno complexo cujo núcleo consiste num processo de escolha dos governantes e de controle sobre sua ação através de eleições competitivas. A complexidade da representação tem feito com que alguns critiquem o uso desse conceito e proponham desmembrá-lo. Em vez de representação, se deveria falar de seleção das lideranças de delegação de soberania popular, de legitimação, de controle político, de participação indireta e de transmissão de questionamento político. Usar-se-iam, assim, conceitos mais simples e suscetíveis de uma interpretação mais unívoca. A essa tese se deve replicar que o conceito de Representação política continua sendo útil sobretudo como conceito multidimensional, ou seja, como conceito sintético de um fenômeno político que é certamente complexo nos seus elementos constitutivos, mas que é ao mesmo tempo unitário em suas finalidades e na sua lógica causal.

Fonte: BOBBIO, Norberto. Dicionário de Política. Versão digital. Brasília: Ed. UnB, 2005.

7 de julho de 2008

Representação Política (I)

Representação Política

I. SIGNIFICADOS DO CONCEITO. O conceito de Representação política, tanto em suas implicações teóricas como em suas traduções práticas é, sem dúvida, um dos elementos-chaves da história política moderna. Todavia se -- ao menos nas democracias ocidentais -- a opinião corrente é geralmente concorde em identificar nas assembléias parlamentares periodicamente eleitas a expressão concreta da Representação política, o conteúdo exato desse conceito permanece bastante mais controverso. Deste fato se pode dar uma dupla explicação. Antes de tudo, convém ter presente o fato histórico da representação. Frente às significativas mudanças ocorridas por toda a parte nas outras instituições políticas, particularmente nas executivas e em todo o sistema político, ela apresenta, por seu lado, juntamente com inovações relevantes (o fim da representação por camadas sociais, o sufrágio universal, a presença dos partidos de massa), importantes elementos de continuidade que, em casos como o inglês, remontam à Idade Média. Isso comporta, necessariamente, uma mutação no tempo da "posição relativa" da representação. Portanto, se nos fixarmos em tais funções e no aspecto exterior, os representantes de hoje recordam muito os de ontem e de anteontem. Se porém aprofundarmos o papel que eles têm no sistema político, emergem profundas mudanças.

A segunda explicação é de ordem semântica. Em todas as línguas européias, o verbo "representar" e o substantivo "representação" se aplicam a um universo muito vasto e variado de experiências empíricas. É compreensível, portanto, dada a polivalência da palavra, que, tratando-se daquela representação específica que é a Representação política, se evoque automaticamente uma multiplicidade de significados. É portanto oportuno examinar sucintamente quais são as indicações de significado que podem deduzir-se das várias acepções da palavra que se encontram tanto na esfera do direito como na da política (os diplomatas são "representantes", o chefe de Estado "representa" a unidade nacional, etc.), e também em experiências bem mais distantes, como a experiência artística figurativa ou a dramática. Substituir, agir no lugar de ou em nome de alguém ou de alguma coisa; evocar simbolicamente alguém ou alguma coisa; personificar: esses são os principais significados. Na prática, podem dividir-se em: a) significados que se referem a uma dimensão da ação -- o representar é uma ação segundo determinados cânones de comportamento; b) significados que levam a uma dimensão de reprodução de prioridades ou peculiaridades existenciais; representar é possuir certas características que espelham ou evocam as dos sujeitos ou objetos representados. Essa distinção é importante enquanto põe à luz as duas polaridades entre as quais se pode mover a própria Representação política segundo as situações e sua colocação no sistema político.

Essas indicações contudo não são de grande utilidade se antes não se individuar o que diferencia a Representação política das outras experiências, isto é, se não se identificar o que ela tem de proprium. O significado desse fenômeno se manifesta melhor se observarmos como o regime político representativo se coloca em oposição, por um lado, com os regimes absolutistas e autocráticos, desvinculados do controle político dos súditos e, por outro, com a democracia direta, ou seja, com o regime no qual, em teoria, deveria desaparecer a distinção entre governantes e governados. O sentido da Representação política está, portanto, na possibilidade de controlar o poder político, atribuída a quem não pode exercer pessoalmente o poder. Assim, pode ser satisfeita a exigência fundamental que desde as primeiras e incertas origens fez surgir a instituição da representação, exigência expressa na Idade Média no axioma quod omnes tangit ab omnibus probari debet. Com base em suas finalidades, poderíamos portanto definir a representação com um "mecanismo político particular para a realização de uma relação de controle (regular) entre governados e governantes. Devemos partir deste núcleo para esclarecer os vários aspectos do fenômeno. Em que relação estão as seguintes expressões: representação, regime representativo? E 'quando é que a 'estas expressões correspondem não apenas inconsistentes aparências mas fenômenos reais da vida política?".

II. TRÊS MODELOS DA REPRESENTAÇÃO POLÍTICA. No que tange ao conteúdo da função representativa e ao papel dos representantes na bibliografia política foram longamente discutidos três modelos interpretativos alternativos. Vejamo-los: 1) a representação como relação de delegação; 2) a representação como relação de confiança; 3) a representação como "espelho" ou representatividade sociológica.

No primeiro modelo, o representante é concebido como um executor privado de iniciativa e de autonomia, das instituições que os representandos lhe distribuem; seu papel aproxima-se muito ao de um embaixador. Este modelo é de origem medieval e as modernas constituições estatais rejeitam-no fazendo proibição explícita do "mandato imperativo". Encontramo-lo comumente, entretanto, nas organizações e comunidades internacionais ou em entidades políticas pouco integradas.

O segundo modelo atribui ao representante uma posição de autonomia e supõe que a única orientação para sua ação seja o interesse dos representados como foi por ele percebido. A essa concepção de representação se referia Edmund Burke quando em sua obra, Speech to the electors of Bristol, descrevia o papel do representante como um "trabalho de razão e de juízo" a serviço do "bem comum" e não do simples "querer" e dos "preconceitos locais".

O terceiro modelo -- o da representação como espelho -- diferentemente dos dois primeiros é centrado mais sobre o efeito de conjunto do que sobre o papel de cada representante. Ele concebe o organismo representativo como um microcosmos que fielmente reproduz as características do corpo político. Segundo uma outra imagem corrente poderia ser comparado a uma carta geográfica.

Esses modelos, todavia, considerados em sua forma pura, levantam alguns graves problemas. Podemos começar pelo terceiro que apresenta uma problemática toda particular. Quais as características do corpo social, que merecem ser espelhadas no organismo representativo, é naturalmente o primeiro quesito que se coloca. Além das que são estritamente políticas e ideológicas, podemos indicar as características sócio-econômicas, profissionais, religiosas, culturais, étnicas e raciais, e até as diferenças de sexo e o elenco poderia continuar. Os sistemas eleitorais proporcionais foram um eficaz instrumento institucional para realizar uma reprodução bastante fiel das primeiras características. Quanto às outras, o grau de representatividade que podemos encontrar nas instituições representativas é, de uma maneira geral, bastante baixo. Os representantes tendem a ser diversos dos representados em relação a essas outras características, salvo quando uma delas se torna ponto fulcral de conflito político e é tomada como bandeira por uma organização partidária. Nesse caso, portanto, nascem os partidos operários, agrários, confessionais, étnicos, feministas; mas estas caracterizações bem marcadas no início, geralmente com o tempo, sofrem forte desbotamento. O fato é que a representatividade sociológica relativamente a certos perfis não políticos vai de encontro ao processo de profissionalização da vida política, que, naturalmente, toca os próprios representantes, limitando fortemente as características que eles podem assumir. Esta concepção da representação peca, além disso, pela estaticidade. Concentrando-se toda sobre a questão da fidelidade da "reprodução", descuida cuidar do problema dinâmico a capacidade do órgão representativo em operar aquela síntese dos problemas particulares e das diversas tendências presentes no corpo político que é pressuposto da sua capacidade de governar. Parece, portanto, mais adaptada a um regime político no qual a representação não ocupa uma posição de centralidade e sim uma função mais secundária de legitimação e de correção do poder.

Os outros dois modelos, do representante como delegado ou como fiduciário, não são senão as faces opostas da mesma medalha. O primeiro se pode, porém, ligar em parte, com o modelo da representação como espelho; responde na verdade a uma lógica análoga de minimização da distinção representantes-representados, mas levada para um plano diverso, para o da ação substitutiva de comportamentos, de preferência ao da reprodução imitativa de características existenciais. Este modelo está ligado a um regime de limitada e irregular participação dos representantes no processo de decisões, de tal maneira que uma sua aplicação literal se choca, nas condições políticas atuais, contra obstáculos quase insuperáveis. Em primeiro lugar, os representantes, sendo também atores das decisões políticas, têm necessidade de uma margem de manobra incompatível com a rigidez de um sistema de instruções vinculantes. Além disso, a atenção dos representados, no que diz respeito à massa dos negócios públicos, é geralmente baixa e estes, por sua vez, pela própria complexidade, apresentam para o público dificuldades de compreensão que não devem ser desprezadas. Portanto, numa grande parte dos casos faltariam ou seriam gravemente inadequadas as instruções para o delegado. Se este é o quadro em princípio, em determinadas situações, todavia, que pela sua natureza o permitem, o modelo da representação como delegação pode ter uma atuação parcial e pode gerar, no público, a expectativa de que ele venha a ser aplicado. Isto acontecerá, em geral, para os grandes temas políticos a respeito dos quais se podem configurar posições alternativas nítidas e bem-definidas. Temos um exemplo na tradição política inglesa, na qual os compromissos tomados na sede eleitoral dos candidatos e dos partidos sobre certas questões políticas assumem caráter quase formal e vinculante. Nesses casos, a sanção eleitoral positiva corresponde a uma instrução ou "mandato". De qualquer maneira, em sua forma pura, também isto constitui um modelo marginal e excepcional.

A alternativa tradicional para esta concepção da representação é encarnada pelo modelo do "fiduciário". Esse modelo presta-se, de modo particular, para variações em relação ao tipo de "centro focal" preestabelecido para ação do representante. O representante, na sua busca autônoma de interesses, deve ter como ponto de referência o seu colégio eleitoral, uma esfera territorial intermediária, a nação inteira, interesses particulares ou o interesse geral? Em geral, a escolha desse modelo tem precisamente, em sua base, a exigência de superar a fragmentação particular que inevitavelmente brotaria da representação "delegada", sendo ela, por isso, quase sempre acompanhada da indicação da nação como centro focal da representação (vejam-se os textos constitucionais após a Revolução Francesa). O problema maior que este modelo levanta é o da possível não correspondência das percepções que respectivamente têm representantes e representados do interesse desses últimos. O modelo não oferece, em si, uma solução satisfatória para uma situação onde há pontos de vista diferentes, o que é, exatamente, um dos problemas cruciais da vida política. Com efeito, se nos basearmos unicamente no princípio fiduciário, sem contarmos com um elemento de controle sobre o comportamento do representante, terminamos por atribuir a esse um poder arbitrário que contrasta nitidamente com aqueles que vimos ser o sentido da representação. Neste ponto, podemos falar talvez de Governo iluminado mas não de Governo representativo.

Um atento exame da realidade dos sistemas políticos representativos permite darmo-nos conta de que nenhum destes três modelos consegue uma atuação completa, em sua forma pura. Pelo contrário, poderia ser bastante exato no plano descritivo definir o representante um "fiduciário controlado que em algumas de suas características espelha as dos seus eleitores". Do modelo do fiduciário se conclui a indicação da necessidade para os representantes, de uma certa margem de autonomia que lhes permita um fôlego de ação bem mais amplo do que permitiria a presença do mandato imperativo. O modelo do delegado nos dá, de sua parte, o elemento do vínculo ao qual fica sujeito, em qualquer hipótese, o representante. Sem tal elemento, a função da representação seria desnaturada, já que ele garante um certo grau de controle dos cidadãos sobre o poder político. Mas um modelo realista e atuável não pode desprezar inteiramente nem parcialmente a representação sociológica pois que, além de um certo limite, poderia ser colocado em crise todo o edifício da representação, se fosse atingido em sua legitimidade e credibilidade. Efetivamente, a representação-espelho parece responder às exigências de ordem simbólica e psicológica, que, em certos níveis e em certas situações, podem assumir notável importância. Por exemplo, os grupos pouco integrados, marginais de um sistema político terão necessidade não só de representantes que "zelem por seus interesses", mas ainda de representantes que, pelas suas características pessoais, neles se possam identificar e sentir-se "presentes" na organização política.

Naturalmente, nem em todos os sistemas políticos que podemos definir como representativos, as proporções desses elementos serão iguais. Entretanto, para cada um desses elementos existe, mesmo se não é facilmente determinável, um valor mínimo característico, abaixo do qual a atuação da representação ficaria ameaçada em sua eficácia prática quer no seu significado político quer na sua legitimidade psicológica.

(Continua na próxima postagem.)

4 de julho de 2008

Diferenças conceituais (XV)

(Continuação da postagem anterior.)

V. Estado e revolução. A iniciativa do partido de elite e não a do proletariado; a queda das estruturas sociais provocada pela derrota militar, e não pela quebra da dinâmica capitalista; a teoria do imperialismo, enfim, para justificar ideologicamente tais substituições: faltava, porém, algo ainda para a plenitude da teoria leninista. Toda revolução, do seu início ao seu ápice, é uma explosão de anarquismo que, enquanto joga fora as bases do antigo regime, assiste à entrada de grandes massas no cenário político. Aconteceu que, no longo período que antecedeu a guerra, quando tinha sido possível preservar a esperança da revolução unicamente através dos métodos legalistas da Social-democracia (v.), a ruptura ocorrida entre o marxismo e o anarquismo, pela impaciência revolucionária que caracterizava este último, tinha sido total, abrangendo todas as correntes e as nuanças do socialismo marxista, sem excluir a corrente bolchevique. Era preciso, pois, focalizar bem o alvo. Além disso, na Rússia, após terem sido introduzidos a democracia parlamentar e os sovietes pela revolução de fevereiro de 1917, a tarefa do partido bolchevique consistia em motivar a próxima revolução, que nas suas intenções, ou melhor, nas intenções de Lenin e Trotski, deveria propiciar ao partido o poder absoluto. Do ponto de vista da doutrina marxista, porém, a tarefa do partido seria a de levar a uma forma transitória de Estado, certamente ditatorial como todo Estado, mas menos e não mais ditatorial, mais e não menos democrático do que a república parlamentar burguesa. E, do ponto de vista da doutrina dos anarquistas, cujo entusiasmo revolucionário era objeto de admiração, a revolução só teria justificativa se conseguisse levar à instauração imediata do autogoverno e à abolição repentina do Estado. Acrescente-se que o capitalismo se encontrava no começo de sua caminhada, e não na fase de perfeita maturidade, de tal forma que entre as tarefas dos vencedores estava presente também a da industrialização, evidentemente não concretizável sem uma forte dose de coação.

Qual a resposta de Lenin perante exigências tão contraditórias? Confirma o acordo com os anarquistas, quanto à finalidade última: a abolição do Estado. Insiste, porém, na necessidade de se chegar imediatamente, mediante a derrubada do Estado burguês, ao estabelecimento da ditadura do proletariado. Não esconde que, dadas as particulares condições de atraso da Rússia, a ditadura será bem mais rígida do que o previsto nos cânones. Para salvar, porém, a ortodoxia marxista e, ao mesmo tempo, satisfazer e estimular as aspirações anarquistas das massas, concede a instauração imediata da democracia direta, ou autogoverno dos produtores. Lenin não esclarece, porém, pelo menos em Estado e revolução (agosto--setembro, 1917), como serão regulamentadas as relações entre estes dois poderes: a ditadura do partido em nome do proletariado e o autogoverno dos produtores mediante o sistema de sovietes ou conselhos operários. É fácil perceber, e talvez seja justamente isto que se quer seja percebido, que haverá neste contexto uma razoável divisão de tarefas: a ditadura terá a suprema direção da revolução, a democracia direta terá a direção da produção e a administração do quotidiano das comunidades locais, até a extinção da ditadura, ou do Estado, chegado o momento da plenitude dos tempos.

O espírito que permeia a obra e os antecedentes do pensamento leninista não autorizam, porém, essa interpretação, por sinal expressamente rejeitada pelo próprio Lenin. Na hora em que um jornal menchevique insinua que, tendo optado pelo voluntarismo anarquista, os bolcheviques não conseguirão se manter no poder, caso venham a conquistá-lo, Lenin responde: "Quando os escritores da 'Novaia Gizn' afirmam que, colocada a palavra de ordem do 'controle operário', caímos no sindicalismo, sua afirmação não passa de uma imitação tola, escolástica, do marxismo. O sindicalismo ou rejeita a ditadura do proletariado ou a relega a último plano, como o poder político em geral. Nós a colocamos em primeiro lugar". E continua: "Quando afirmamos 'controle operário' entendemos apenas o controle operário do Estado operário". Porém, como confirmação de que nunca pretendeu abandonar a teoria que atribui ao partido a tarefa de zelar pelos autênticos interesses das massas em lugar das próprias massas, que o autogoverno não passa para ele de uma mera palavra de ordem para efeitos de propaganda, Lenin conclui: "Após a revolução de 1905, 130.000 proprietários nobres governaram a Rússia. E os 240.000 filiados ao partido bolchevique não estariam em condições de governá-la no interesse dos pobres contra os ricos?".

É controverso que a fórmula "todo o poder aos sovietes", ou seja, organismos de representantes eleitos, correspondesse deveras à abolição anárquica do Estado. De qualquer modo, ela foi entendida pelo autor de Estado e revolução, não em sentido anárquico, mas em sentido jacobinoblanquista. Com efeito, Lenin, como ressaltou o líder menchevique Martov, dirigia paradoxalmente essa palavra de ordem "contra os sovietes reais já existentes", os que "a maioria do proletariado" havia escolhido depois da revolução democrática de fevereiro. Sinal evidente, segundo Martov, de que atrás da "ilusão anárquica de destruir o Estado" se escondia, na realidade, "a tendência a concentrar toda força coercitiva do Estado nas mãos de uma minoria", com base na convicção de que, se "o socialismo científico é a própria verdade", o grupo que a possui "tem o dever de a impor à massa".

Estado e revolução não indica, por isso, da parte de Lenin, uma revisão ou leve modificação, mas o aperfeiçoamento final do edifício totalitário de que ele havia começado a lançar os fundamentos em 1902 com Que fazer?

VI. A última revisão. O exercício do poder impunha a Lenin ainda uma última revisão, a mais significativa, do marxismo tradicional. Diante do malogro desastroso do comunismo de guerra e não havendo na doutrina qualquer indicação relativa à estratégia econômica a adotar para a modernização acelerada da Rússia, Lenin lançava em 1921 a Nova Política Econômica (NEP), que implicava uma volta digirida ao capitalismo.

Ruía assim a idéia de que a construção do socialismo e a destruição do capitalismo fossem as duas faces de um mesmo e idêntico processo, destinadas, por isso, a avançar pari passu. Agora se admitia, ao contrário, que o avanço do socialismo no mundo pudesse até ser acompanhado do deliberado impulso a um certo desenvolvimento capitalista, quando necessário ou simplesmente útil para reforçar as posições já conquistadas. Bastava que o poder total do partido sobre a sociedade civil, a que se permitia assim ressurgir das próprias cinzas, não sofresse com isso e que o grupo dirigente continuasse senhor para determinar os limites e a duração da experiência.

O populismo visava a modernização acelerada da Rússia, sem passar pelo capitalismo, mas não tinha a mínima idéia de como isso seria concretamente possível. O marxismo, ao invés, pretendia tornar socialista uma Rússia já modernizada pelo capitalismo, mas não sabia precisar qual podia ser nesse processo a função de um partido socialista revolucionário. Por sua própria conta, cada uma das duas ideologias, pelo menos na Rússia, tinha chegado a um ponto morto. Fundindo-as, Lenin se propunha a reativá-las. Era bastante lógico, pois, que o Leninismo chegasse a identificar o socialismo com o processo de modernização (populismo) e este com a imitação do capitalismo (marxismo), contanto que isso fosse conduzido por um partido antes tornado senhor absoluto do poder mediante a revolução (populismo e marxismo).

É essa a razão por que o êxito do Leninismo se manteve circunscrito às áreas atrasadas do mundo, onde nunca falta um anarcopopulismo indígena para vitalizar, inserindo nele o marxismo.

VII. As metamorfoses do leninismo no ocidente. É diferente, ao contrário, a sorte do Leninismo nos países avançados. Em alguns deles, onde a Social-democracia (v.) havia efetivamente conseguido manter acesa a esperança da revolução, o Leninismo pôde até prosperar, mas jamais chegou a conquistar o poder. O elemento populista que, nos países de desenvolvimento lento, galvaniza o marxismo, o torna pesado, por outro lado, nos países industrialmente desenvolvidos, condenando-o a ficar para trás.

A posição de imobilidade provocou um processo de revisão no próprio seio do Leninismo, um processo em dois tempos, o segundo dos quais está ainda em curso.

A primeira fase se iniciou muito timidamente ainda no tempo de Lenin, quando até o líder bolchevique teve de reconhecer que a ocasião revolucionária na Europa tinha passado. Na esperança de que voltasse, foi permitido aos partidos leninistas atuarem dentro do quadro da legalidade democrática. Quando depois se fez sentir a ameaça do fascismo sobre a Rússia, esta reviravolta tática foi levada aos extremos com a política das Frentes Populares (1935--1939), que viu o Leninismo alinhar-se em defesa do capitalismo democrático, onde quer que ele ainda estivesse em pé na Europa.

A fase posterior se iniciou no segundo pós-guerra, com a aceitação da via pacífica e democrática para a conquista do poder, em lugar da imitação, mesmo na Europa, da via seguida pela Rússia. O modelo soviético continuava, no entanto, ainda plenamente válido para a sociedade que era mister construir uma vez conquistado o poder.

Foi só depois que o XX Congresso do P.C.U.S. revelou, em 1956, os horrores a que levara, no tempo de Stalin, o reviramento da democracia desejado por Lenin, que esta segunda viragem do Leninismo no Ocidente foi amadurecendo lentamente as suas conseqüências. Houve assim um reconhecimento da democracia como valor perene e a preocupação de assummir um compromisso durável, se não com o capitalismo, que será sempre uma realidade negativa que é preciso "derrubar", "superar", "destruir" (Berlinguer), ao menos com a propriedade privada, não apenas com a pequena, e com o mercado.

Desta maneira, no Ocidente, o Leninismo, mais que voltar às posições da Socialdemocracia (v.) clássica, em relação às quais, com a rejeição do coletivismo integral, se coloca talvez mais à direita, tende a aproximar-se das esquerdas socialdemocráticas. Um sinal dessa convergência está na comum reivindicação de uma "terceira via". Distanciando-se da maioria, a esquerda social-democrática não encontra, com efeito, o socialismo de terceira via no modelo realizado pelo próprio partido, onde vê, quando muito, apenas uma variante melhorativa do capitalismo; busca-o numa terceira via entre o Reformismo (v.) burguês e o coletivismo soviético, exatamente como fazem hoje também os euroleninistas.

O que ainda falta para uma perfeita identidade de pontos de vista entre os socialdemocráticos de esquerda e os euroleninistas é o reconhecimento, por parte destes, de que o centralismo chamado democrático é a negação da democracia de partido, tal como o socialismo chamado real é a negação do socialismo. Não se trata de questões abstratamente ideológicas, mas está em jogo o ligame que os euroleninistas ainda querem manter com a URSS. Se esse obstáculo fosse superado, é claro que, então, a parábola do Leninismo no Ocidente teria atingido o fim.

Fonte: BOBBIO, Norberto. Dicionário de Política. Brasília: Ed. Universidade de Brasília, 1998.

3 de julho de 2008

Diferenças conceituais (XIV)

(Continuação da postagem anterior.)

Se foi Lenin que se colocou com lucidez a pergunta, tal ocorreu não apenas graças ao excepcional instinto político desse homem, mas também devido à sua peculiar formação marxista. Podemos afirmar, sem dúvida, que as premissas teóricas dos corolários operativos de Bernstein já haviam sido elaboradas por Lenin, e até com maior rigor, durante a polêmica com os populistas. Sua teoria do mercado equivalia à negação da existência de obstáculos de ordem econômica para o contínuo desenvolvimento do capitalismo e, portanto, para a contínua melhoria da condição operária dentro do sistema. "A história de todos os países prova que a classe operária -- escreve Lenin no Que fazer? -- contando unicamente com as suas forças, consegue chegar somente à elaboração de uma consciência trade-unionista, isto é, a consciência de que é necessário se unir em sindicatos, de que deve ser levada adiante a luta contra os patrões, de que é preciso exigir do Governo algumas leis necessárias aos operários,...". Como conseqüência, "a consciência política de classe pode chegar ao operário somente de fora, isto é, de fora da luta econômica". Tudo isso, em última análise, significa que à luta de classe corresponde uma consciência de classe que não é o socialismo: luta de classe e socialismo, além de não coincidirem, são até divergentes.

O revisionismo, para dizer a verdade, não tinha chegado a tanto. Continuou pensando que, a partir do somatório dos esforços e das lutas para elevar seu nível social e cultural, iria amadurecer na classe operária uma autoconsciência socialista, paralelamente ao processo que, através de reformas arrancadas ou impostas, provocaria a transformação da sociedade de capitalista em socialista. Esse tipo de socialismo não negava radicalmente a sociedade democrático-liberal e se apresentava, abandonada toda aspiração palingenética, como uma forma mais perfeita desta mesma sociedade. O marxismo chegava, assim, ele também, ao Reformismo (v.).

Lenin chega a admitir a natureza reformista da classe operária e a rejeitar implicitamente a teoria do desmoronamento espontâneo do capitalismo, que era onde os marxistas ortodoxos colocavam suas esperanças revolucionárias, justamente porque pretende salvar na prática, e não apenas na teoria, a perspectiva revolucionário-palingenética. A convergência objetiva entre Lenin e o revisionismo não ultrapassa, porém, a fase da diagnose. No que se refere à terapia, o Leninismo se caracteriza pelo esforço de colocar em ação um conjunto de instrumentos ideológico-organizacionais aptos para inverter radicalmente o desenrolar natural dos acontecimentos.

Visto que a evolução da classe operária, no regime democrático parlamentar, a afasta do caminho do socialismo, far-se-á necessário, antes de qualquer coisa, um guia que mantenha as massas no justo caminho. Eis, pois, encontrada a necessidade e a tarefa de um partido integrado por revolucionários profissionais de origem pequeno-burguesa, formado fora da classe operária e não passível de controle, nem de influência por parte dela. Partido que será o depositário da verdade, como intérprete da essência mais real da classe operária, a encarnação atual do socialismo, a única garantia de seu advento futuro.

Foi acerca do tipo de partido que deveria ser edificado que aconteceu, em 1903, a divisão da social-democracia russa em bolcheviques e mencheviques. A questão, que aparentemente era de ordem meramente organizacional, na realidade tinha como causa fundamental os diferentes juízos que eram feitos acerca das instituições democrático-liberais: os mencheviques, que como Lenin não concordavam com a tese dos revisionistas acerca da natureza reformista da classe operária, continuavam a considerar as instituições democráticas parlamentares como uma etapa necessária e útil ao mesmo tempo; por isso, postulavam a criação de um partido democrático das massas que pudesse usufruir plenamente dessas mesmas instituições; os bolcheviques de Lenin, ao contrário, mesmo não chegando a negar de vez a necessidade de uma etapa democrático-burguesa, temiam a capacidade de sedução desse tipo de sociedade sobre a classe operária e tencionavam oferecer-lhe, mediante o partido monolítico, o antídoto necessário que a salvasse mesmo contra a vontade.

Por isso, o que realmente esteve em jogo no Congresso da cisão foi o destino da Rússia: se esse devia se concretizar na europeização do país, como queriam os liberais e os mencheviques, ou na assimilação da técnica ocidental, mantendo-se, porém, o quadro das características originais da civilização russa, segundo o espírito do populismo, "que se revelou muito mais tenaz do que os primeiros socialdemocratas e os liberais tinham pensado", conseguindo deixar suas profundas marcas no Leninismo nascente, após ter sido dado por extinto (Strada).

A teoria do partido, de claras raízes populistas, não podia, contudo, ser suficiente por si mesma para dar ao Leninismo a capacidade de fixar, dentro do rumo desejado, o curso futuro da história russa. Qual a eficácia que poderá ter na realidade o partido monolítico, desde o momento em que a classe operária, admitida a fruir das instituições liberais, possa repelir sua função de guia ou menosprezá-la? A urgência dessa pergunta, nascida lógica e implacavelmente da pretensão de conciliar a revolução socialista com a desconfiança na vontade socialista da classe operária, impelirá o Leninismo a transformar-se, de partido monolítico, em Estado totalitário, que parecia o único instrumento capaz de permitir que o partido desempenhasse, cabalmente e a qualquer custo, "mesmo contra a classe operária", a função de guia para o socialismo. Só então, extinta com a classe operária também a sua tendência ao tradeunionismo, se extinguirão Estado e partido, dando lugar à liberdade universal dentro de uma total igualdade. Acrescente-se que, na Rússia, as instituições democrático-parlamentares eram ainda uma conquista a ser realizada. Além disso, a fraqueza e a indecisão da burguesia davam a impressão de que o partido social-democrático teria que assumir esta tarefa: enquanto os mencheviques ansiavam por assumir este papel e levá-lo a bom termo da melhor maneira possível, os bolcheviques, partindo das premissas já analisadas, sentiam-se tentados a instrumentalizar a batalha democrática para derrubar a autocracia, ficando únicos donos da situação, a fim de prevenir, mediante o esvaziamento e, se necessário, até mediante a pura e simples repressão das instituições liberais, o afastamento da classe operária do caminho do socialismo.

Voltava, desta forma, em Lenin, a velha idéia populista do salto da fase burguesa, porém com um enfoque totalmente novo, para oferecer uma resposta a preocupações inteiramente diferentes. Para os populistas, o móbil da ação era o sonho altruísta de poder oferecer às massas o bem-estar, poupando-as dos sofrimentos que seriam causados pelo processo de industrialização; para Lenin, que nisto permaneceu sempre (até em 1917) rigorosamente marxista, a fase da industrialização e, conseqüentemente, do capitalismo, era inevitável; sua preocupação era pular o aspecto liberal-democrático da era burguesa, a fim de impedir que a classe operária manifestasse sua tendência para o emburguesamento. O programa leninista se resumia, portanto, na conquista do poder a fim de promover um rápido desenvolvimento da industrialização, debaixo do controle de um Estado onipotente, em condições de sufocar toda e qualquer aspiração autônoma da sociedade civil, visando objetivos diversos dos do socialismo. Para usar as próprias palavras de Lenin: capitalismo de Estado mais ditadura do proletariado.

Deste modo, Lenin se harmonizava com a teoria da revolução permanente de Trotski, que inicialmente estigmatizara de anárquica. Por meio da teoria da revolução permanente, o marxismo revolucionário de Lenin e de Trotski se ligava ao "conjunto de teorias do desenvolvimento modernizador e acelerado que se chama populismo" e que jamais deixou de influenciar "toda a linha antimenchevique e antiliberal da social-democracia russa" (Strada).

No contexto internacional, um tal programa não deixava de manter a Rússia numa posição de atraso com relação aos países ocidentais que já estariam, de acordo com a ortodoxia marxista que Lenin nunca rejeitou explicitamente, amadurecidos para o socialismo. Daí a tentação de atribuir à Rússia a função demiúrgica de despertar para o socialismo as massas proletárias dos países mais evoluídos, inexplicavelmente adormecidas, sempre de acordo com o dogma marxista. Volta aqui um outro elemento do populismo: o nacionalismo messiânico.

IV. A função revolucionária da guerra e a teoria do imperialismo. Dois tipos de críticas começaram a ser levantados, por parte do movimento socialista internacional, contra esta estratégia. Em primeiro lugar, questionava-se se poderia ser chamado ainda de socialismo, isto é, de autogoverno da classe operária, o que na realidade se caracterizava como enquadramento da classe e de todo o povo sob a ditadura inquestionável do secretário do partido. Em segundo lugar, se seria possível que um conjunto de arranjos organizacionais conseguiria e, de fato, garantir a revolução, se efetivamente viria a desaparacer a vontade revolucionária na classe operária. Lenin mostrou-se insensível ao primeiro tipo de crítica, na certeza de encarnar, como todo o profeta, a verdadeira vontade do povo eleito; quanto ao segundo tipo, ao contrário, nunca deixou de ser um motivo de sofrido questionamento, até e para além do dia da vitória de outubro, definindo, desta maneira, as sucessivas evoluções de seu pensamento.

Para um Lenin radicalmente realista, a estratégia do Que fazer?, após uma consideração mais cuidadosa e após a lição dos acontecimentos, só poderia se revelar como algo fundamentado numa hipótese impregnada de idealismo. Não era concebível, do ponto de vista do realismo sociológico marxista, uma perspectiva política em que uma inteira classe social atuasse de acordo com uma consciência induzida exteriormente e não conforme seus próprios reflexos naturais, condicionados pelo meio social. Se não existem motivos para acreditar que a classe operária se sinta impulsionada a atacar o poder pela constante deterioração de suas condições de vida; se é também pouco provável que a classe desmorone pela própria incapacidade de enfrentar as contradições internas do sistema e o protesto operário delas decorrentes; então, outras motivações e outras causas, tanto ou mais fortes e realistas, se fazem necessárias, senão o partido, mesmo na perfeição de sua organização e na pureza de sua doutrina, correrá o risco de agir em vão.

Era justamente isso que estava ocorrendo na Rússia nos anos que viram, após a revolução de 1905, o czarismo firmar-se em estruturas levemente menos autocráticas, enquanto a classe operária estava recebendo, pela primeira vez, alguns benefícios em conseqüência do desenvolvimento capitalista, que tomava novo fôlego a ritmo acelerado. Em decorrência disso, estava se concretizando uma ruptura insanável no seio da inteligência revolucionária. Porém, os acontecimentos de 1904--1905 apresentavam também indicadores positivos que Lenin percebeu rapidamente: a derrota da Rússia na guerra contra o Japão provocara o ímpeto revolucionário das massas e a desorientação da classe dirigente, esperados inutilmente durante quase um século como frutos da dinâmica interna do sistema. Só faltava aguardar, a esta altura dos acontecimentos, uma guerra de dimensões ainda maiores e uma derrota ainda mais desastrosa, para ter fé na eclosão de uma revolução vitoriosa. Em janeiro de 1913, Lenin escrevia a Gorki: "Uma guerra da Áustria contra a Rússia seria de grande utilidade para a revolução (em toda a Europa oriental); é, todavia, bem pouco provável que Francisco José e Nicolauzinho nos proporcionem tamanho prazer".

A teoria do imperialismo, elaborada em 1916, após a eclosão da guerra, tem a tarefa de responsabilizar a dinâmica interna do sistema capitalista, restabelecendo assim, de maneira sumamente criadora, em nível teórico, a ortodoxia marxista, tão duramente posta à prova pelos acontecimentos de 1870--1914.

Cientificamente, a teoria que encara a guerra para a divisão dos mercados como o inevitável desfecho da objetiva impossibilidade que o capitalismo tem para elevar o nível de vida da massa operária, ampliando o próprio mercado interno até torná-lo capaz de absorver uma produção sempre crescente, não merece a excessiva consideração de que tem sido objeto. Trata-se, de fato, de uma repetição de temas populistas que encontram sua melhor refutação justamente nos escritos juvenis do próprio Lenin.

Difícil, todavia, é exagerar a importância que tem na história da ideologia marxista. Vimos como o marxismo se apresentou aos populistas, decepcionados com a classe camponesa, como a promessa do advento de uma outra classe "verdadeiramente revolucionária", e como, chegando a duvidar também dessa classe, Lenin deslocou para o partido a tarefa de vanguarda revolucionária. O fracasso do partido alemão, considerado por Lenin como um modelo, perante a guerra de 1914, obrigou-o a buscar garantias ainda mais eficazes. O partido tinha fracassado no Ocidente por ser corrupto; e era corrupto por ter-se identificado com a aristocracia operária que, engordada pelas migalhas do espólio colonial, tinha abdicado da sua missão. A insurreição dos povos colonizados, tornada inevitável pela crescente exploração levada a efeito pelos países capitalistas na vã tentativa de afastar o desmoronamento que ameaça suas estruturas econômicas, terá a conseqüência de tornar novamente explosivas as contradições do capitalismo, trazendo ao proletariado ocidental, aliás ao seu partido, o apoio das massas colonizadas e exploradas. Apesar das inumeráveis e complexas incongruências internas, a teoria consegue salvar o messianismo revolucionário, chegando a ampliar seu aspecto numa dimensão, pela primeira vez, verdadeiramente universal. E é justamente esse fato que vale politicamente.

Dos camponeses para os camponeses, visto as massas colonizadas do Terceiro Mundo serem constituídas unicamente de camponeses: a teoria do imperialismo é, portanto, a chave que abre ao marxismo a porta da orientalização e que torna possível o renascer, no seu seio, de antigos motivos populistas. Lenin, todavia, chegou apenas a enunciar as premissas de toda essa evolução. Pessoalmente ele permaneceu fiel ao núcleo do marxismo; foi, até o fim, eurocêntrico, isto é, convicto da primazia dos partidos comunistas sobre os países já industrializados, para os quais, através do imperialismo, procurava mais um suporte do que um substituto e também um estímulo para compensar suas deficiências, sem explicação em nível da teoria, porém realisticamente percebidas e sofridas por Lenin nos seus últimos anos.

(Continua na próxima postagem.)

2 de julho de 2008

Diferenças conceituais (XIII)

(Continuação da postagem anterior.)

LENINISMO

I. Do populismo ao marxismo. O Leninismo é a interpretação teórico-prática do marxismo, em clave revolucionária, elaborada por Lenin num e para um país atrasado industrialmente, como a Rússia, onde os camponeses representavam a enorme maioria da população.

Baseada nessa realidade, havia surgido uma ideologia específica, o populismo, de cuja influência nem mesmo a ala da intelligentzia, que introduziu o marxismo na Rússia, conseguiu jamais libertar-se de todo. Tanto é assim que, como escreveu há pouco um historiador comunista, até o próprio Leninismo "se caracteriza pelo seu nexo de continuidade orgânica e criativa com a experiência intelectual, primeiro, e organizativa, depois, do popularismo russo" (Strada).

Daí que, para entender o Leninismo, seja necessário remontar às causas que, embora favorecessem a penetração do marxismo na Rússia, impediram, no entanto, que ele obtivesse uma vitória definitiva sobre o populismo.

O populismo russo caracterizou-se por três elementos: 1) uma devoção mística pelo povo do campo; 2) a rejeição da industrialização por causa do preço que, na forma privatístico-concorrencial do modelo inglês, cobra das classes rurais, com a conseqüente idéia de se chegar diretamente ao socialismo, partindo da estrutura comunitária tradicional própria do campo, alicerçada na comuna rural ou obscina, pulando a etapa do capitalismo; 3) e, por último, um elemento messiâniconacionalista, que recebeu da direita eslavófila e a ela o assimila, através do qual a percepção do enorme atraso do país, tão dolorosamente sentida pelos intelectuais russos, transforma-se num sentimento compensatório de superioridade, totalmente irreal, mas nem por isso menos poderoso e eficaz como estímulo para a ação.

Quando, após décadas de preparação teórica, no começo dos anos 70 do século passado, o movimento populista se tornou uma realidade no seu encontro com o povo, de quem acabaria tomando o nome, de imediato sobreveio a decepção e a crise. Os camponeses, com efeito, receberam pessimamente os idealistas entusiasmados que os procuravam, na esperança de despertar e desenvolver neles a maturidade civil e política, a fim de induzi-los a se levantarem contra a autocracia. Nem por isso, o populismo abandonou sua fé nas potencialidades de renovação do camponês russo; porém, tomou consciência da importância das instituições liberais para a realização de um contato fecundo entre intelectuais e povo, que sem este contato acabaria ficando subjugado pelo próprio atraso cultural e por uma desconfiança instintiva com relação ao novo. Nasceu assim a Narodnaja Volja, organização terrorista que tinha como objetivo atemorizar a autocracia através de atentados, a fim de levá-la a conceder uma Constituição de tipo ocidental. Essa organização secreta, que reunia sob uma disciplina rígida uma elite de origem burguesa e até nobre, se tornou o modelo do futuro partido leninista. Quando, em 1887, fracassou o atentado contra Alexandre III, após o sucesso ocorrido no atentado contra Alexandre II em 1881, que, todavia, não produziu os resultados políticos esperados, entre os conjurados que tombaram como vítimas da repressão estava Alexandre Uljanov. Vladimir Uljanov, mais tarde chamado Lenin, então com dezessete anos, começou, assim, seguindo as pegadas do irmão mais velho, sua carreira revolucionária como populista, tanto que nunca deixou de manifestar sua admiração pelo instrumento organizacional criado pelo populismo, embora a morte do irmão o tenha levado a questionar a estratégia populista, fundamentada exclusivamente em grupos sectários, bem como a prática dos atentados.

Nesse período, ainda antes do atentado contra Alexandre II, um pequeno núcleo de populistas, guiados por Plechanov (1856--1918), tinha rejeitado, como estéril, o caminho do terrorismo, transferindo suas esperanças da classe camponesa, que havia se revelado por assim dizer indigna dessas esperanças, para a classe operária, ainda nos primórdios na Rússia, cuja segura e objetiva vocação revolucionária era garantida pelo marxismo, importado do Ocidente.

II. O dilema do marxismo russo. A tarefa teórica do núcleo marxista foi, em primeiro lugar, demonstrar que um futuro próximo de cunho capitalista aguardava a Rússia, com a conseqüente formação de uma numerosa e combativa classe operária. Surgiu daí uma longa polêmica com os populistas, que se arrastou por décadas. Os populistas negavam a possibilidade de um desenvolvimento de moldes capitalistas no próprio país, tendo em vista a inexistência de um mercado interno por causa da extrema pobreza dos camponeses, isto é, de 90% da população, e a nãodisponibilidade de mercados externos, já totalmente ocupados pelas maiores
potências industriais.

Quando Lenin, levado pela necessidade de uma certeza quase mística da inevitabilidade da revolução, chegou ao marxismo, teve oportunidade de se fortalecer na sua posição, desfechando os últimos e definitivos golpes nesta polêmica. Em seus escritos juvenis, tendo como referencial teórico o segundo livro do Capital, pouco conhecido, enquanto os populistas se referiam mais ao primeiro, Lenin demonstrou, de maneira inquestionável, o caráter econômico e nãogeográfico do conceito de mercado, cuja amplitude não pode ser medida em quilômetros quadrados nem, em última análise, em milhões de habitantes, mas tem que ser vista em função da divisão social do trabalho, que, por sua vez, depende da evolução científica e tecnológica.

Na hora, Lenin não percebeu que, desta forma, tinha ido muito além do alvo, apresentando uma imagem da dinâmica capitalista isenta de insuperáveis contradições internas, capazes de provocar seu fatal colapso. Homem de ação, levado conseqüentemente a enfrentar as dificuldades só na medida em que as mesmas iam se manifestando, é fácil compreender que, diante do fator evidente da não-resposta da classe camponesa à missão revolucionária, que os populistas a ela queriam atribuir, Lenin não tivesse nenhuma dúvida teórica quanto à possibilidade de a classe operária não se revelar, também, à altura desta missão.

O transplante do marxismo para a Rússia levantou mais outra dificuldade, desta vez inerente ao conjunto dos postulados fundamentais da doutrina e, conseqüentemente, inevitável. Subordinando rigorosamente o advento do socialismo ao pleno desenvolvimento da fase capitalista-burguesa, principalmente após a polêmica que, na Europa dos anos 70, o tinha colocado em contraposição ao voluntarismo anarquista, o marxismo impunha aos socialistas russos o ônus de se baterem por uma revolução apenas burguesa, de abrirem caminho à plena evolução do sistema capitalista que, por definição, um socialista deveria combater sem trégua. A enorme disparidade entre a parte atrasada e a parte mais moderna da economia russa, além disso, afastava por algumas gerações a próxima revolução, justamente a socialista.

O marxismo, assim, mesmo dando a impressão de satisfazer a necessidade da certeza na revolução, trazia em si o sacrifício de um componente tanto ou mais indispensável na psicologia do autêntico revolucionário: a impaciência, isto é, o desejo de viver como protagonista o evento palingenético. Tal fato explica por que, apesar de ter visto suas teorias amplamente confirmadas pelo desenvolvimento capitalista ocorrido na Rússia no período que vai entre o fim e o começo dos séculos XIX e XX, o marxismo não conseguiu derrotar completamente o populismo. A impaciência mantinha nele uma parcela relevante das forças revolucionárias, que convergiram mais tarde no partido, que se chamou justamente socialista-revolucionário, destinado a desempenhar um papel não-secundário em 1917.

De qualquer forma, diante do dilema de, ou trair o espírito científico do marxismo, inserindo nele a antiga idéia populista do salto da fase capitalista, ou aceitar o marxismo até as últimas conseqüências, sacrificando a impaciência pela revolução socialista, Lenin não teve dúvidas, e foi marxista ortodoxo. As tarefas primordiais e indiscutíveis do partido social-democrático russo eram, para Lenin, o desenvolvimento do capitalismo ao nível das estruturas e o desenvolvimento da democracia parlamentar ao nível das superestruturas. Talvez seja possível notar, na obra conclusiva do primeiro período de sua militância marxista. O desenvolvimento do capitalismo na Rússia (1899), um certo esforço para provar que o país já era mais capitalista, e portanto mais próximo ao socialismo, do que era realmente.

III. O debate acerca do revisionismo e o nascimento do leninismo. Nos últimos anos do século, espalhou-se na Rússia o conhecimento do revisionismo bernsteiniano, logo assumido por diversos intelectuais russos. Foi neste momento que teve início, em Lenin, a crise que irá se concluir em 1902 com o Que fazer?, destinado a se tornar o texto-base de uma ideologia, justamente o Leninismo.

O Revisionismo (v.) questionava bem do interior do próprio marxismo, pela ação de Bernstein, um dos maiores colaboradores ainda vivos dos dois mestres, a vocação revolucionária da classe operária, fundamentando-se em, pelo menos, meio século de experiência ocidental, assim como os marxistas russos, nisto "revisionistas" do populismo, tinham anteriormente negado a vocação revolucionária da classe camponesa. A esta altura, estava comprometida também aquela certeza que o marxismo parecia ter assegurado. O gradualismo, em cujo nome os marxistas russos tinham subordinado a revolução socialista à burguesa, entrava desse jeito em crise. O advento da democracia política e o pleno desenvolvimento do capitalismo não se apresentavam mais como a garantia do inevitável acontecer da revolução socialista. Ao contrário, permitindo à classe operária usufruir das liberdades "burguesas" e alcançar melhoramentos constantes no próprio estilo de vida, eles teriam, assim como acontecera na Inglaterra, enfraquecido sua vontade de luta, transformando sua vocação revolucionária em práxis reformista. Como, por outro lado, não era ainda viável vislumbrar outra classe social à qual transferir novamente a missão palingenética, a aceitação da prioridade inquestionável da fase democrático-burguesa na Rússia implicava, a esta altura, renunciar definitivamente à revolução socialista. Que fazer, então?

(Continua na próxima postagem.)

1 de julho de 2008

Diferenças conceituais (XII)

(Continuação da postagem anterior.)

Parece, pois, que para Marx a dependência do poder estatal do poder de classe é tão estrita que a passagem da ditadura da burguesia para a ditadura do proletariado não pode acontecer simplesmente através da conquista do poder estatal, isto é, daquele aparelho de que a burguesia se serviu para exercer seu domínio, mas exige a destruição das instituições e sua substituição por instituições completamente diferentes. Se o Estado fosse somente um aparelho neutral acima dos partidos, a conquista desse aparelho ou a mera penetração nele seriam de per si suficientes para modificar a situação existente. O Estado é uma máquina, mas ninguém pode manobrá-la a seu gosto: cada classe dominante tem que construir a máquina estatal de acordo com as suas exigências. Sobre as características do novo Estado, Marx dá algumas indicações resultantes da experiência da Comuna (indicações que inspiraram Lenin no ensaio Estado e revolução e nos escritos e discursos dos primeiros meses de revolução): supressão do exército permanente e da polícia assalariada, substituindo-os pelo povo armado; funcionários eletivos ou postos sob o controle popular e, portanto, responsáveis e revogáveis; juízes eletivos e revogáveis; sobretudo sufrágio universal para a eleição dos delegados com mandato imperativo e, portanto, revogáveis; abolição da tão exaltada quão fictícia separação dos poderes ("A Comuna devia ser não um organismo parlamentar, mas de trabalho executivo e legislativo ao mesmo tempo"); e, enfim, tão ampla descentralização que permita reduzir a poucas e essenciais as funções do Governo central ("As poucas mas essenciais funções que ficassem ainda com o Governo central [...] seriam executadas por funcionários comunais e, portanto, profundamente responsáveis") (Ibid., pp. 908--09). Marx chamou a essa nova forma de Estado "Governo da classe operária" (Ibid., p. 912), enquanto Engels, na introdução a uma reimpressão dos escritos marxistas sobre a guerra civil na França, chamou-a, com força e com intenção provocante, de "ditadura do proletariado": "O filisteu social-democrático recentemente se sentiu mais uma vez tomado por um salutar pavor ao ouvir a expressão: ditadura do proletariado. Pois então, senhores, querem saber como é esta ditadura? Olhem para a Comuna de Paris. Esta foi a ditadura do proletariado" (Ibid., p. 1163). Desde o Manifesto, Marx e Engels tinham afirmado muito claramente que, sendo sempre o poder político o poder de uma classe, organizado para oprimir uma outra, o proletariado não teria conseguido exercer seu domínio se não tornando-se por sua vez uma classe dominante. Parece que Marx falou pela primeira vez de "ditadura do proletariado" em sentido próprio (e não em sentido polêmico como fala nas Lutas de classes na França de 1848 a 1850 (Ibid., p. 463), numa conhecida carta a Joseph Weydemeyer, de 5 de março de 1852, onde declara não ter sido ele o primeiro a ter demonstrado a existência das classes e reconhece para si o único mérito de ter demonstrado: 1o) que a existência das classes está somente ligada a determinadas fases da evolução histórica da produção; 2o) que a luta de classes conduz necessariamente à ditadura do proletariado; 3o) que esta ditadura constitui somente a passagem para a supressão de todas as classes e para uma sociedade sem classes". A expressão é consagrada na Crítica ao programa de Gotha (1875): "Entre a sociedade capitalista e a sociedade comunista existe o período de transformação revolucionária de uma na outra. A este corresponde também um período político de transição, cujo Estado não pode ser outro senão a ditadura revolucionária do proletariado" (Ibid., p. 970).

VI. A extinção do estado. Como aparece na carta a Weydemeyer, o tema da ditadura do proletariado está intimamente ligado ao da extinção do Estado. Todos os Estados que existiram foram sempre ditaduras de uma classe. A esta regra não faz exceção o Estado em que o proletariado se torna classe dominante; mas, diferentemente das ditaduras das outras classes, que foram sempre ditaduras de uma minoria de opressores sobre uma maioria de oprimidos, a ditadura do proletariado, sendo ditadura de uma enorme maioria de oprimidos sobre uma minoria de opressores destinada a desaparecer, é ainda uma forma de Estado, mas tal que, tendo como objetivo a eliminação do antagonismo das classes, tende à gradual extinção daquele instrumento de domínio de classe que é o próprio Estado. O primeiro indício do desaparecimento do Estado se encontra na última página da Miséria da filosofia: "A classe operária substituirá, no curso de seu desenvolvimento, a antiga sociedade civil por uma associação que excluirá as classes e seu antagonismo e não existirá mais poder político propriamente dito" (p. 140). O Manifesto inclui o tema do desaparecimento do Estado no próprio programa: "Se o proletariado, na luta contra a burguesia, se constitui necessariamente em classe, e, por intermédio da revolução se transforma a si mesmo em classe dominante, destruindo violentamente, como tal, as antigas relações de produção, ele elimina também, junto com essas relações de produção, as condições de existência do antagonismo de classe, das classes em geral e, portanto, também do seu mesmo domínio de classe" (in K. Marx e F. Engels, Obras, pp. 314--15). A análise, que Marx faz em A guerra civil na França, da nova forma de Governo da Comuna mostra que a novidade em relação às demais formas de domínio anteriores consiste exatamente no fato de que ela contém em germe as condições para o gradual desaparecimento do Estado como mero instrumento de repressão: a Comuna foi "uma forma política fundamentalmente aberta, enquanto todas as formas precedentes de Governo tinham sido unilateralmente repressivas" (Ibid., pp. 911-12). O Estado em que a classe dominante é o proletariado não é, então, um Estado como os demais, porque está destinado a ser o último Estado: é um Estado de "transição" para a sociedade sem Estado. É um Estado diferente de todos os demais, porque não se limita a apoderar-se do Estado existente, mas cria um novo Estado, tão novo que põe as condições para o fim de todos os Estados. O Estado de transição, enfim, se caracteriza por dois elementos diferentes que não podem ser confundidos: ele, apesar de destruir o Estado burguês anterior, não destrói o Estado como tal; todavia, construindo um Estado novo, já lança as bases da sociedade sem Estado.

Essas duas características servem para distinguir a teoria de Marx, de um lado, da teoria social-democrática, e, do outro, da anárquica. A primeira sustenta que a função do movimento operário é a de conquistar o Estado burguês internamente, não de "quebrá-lo"; e a segunda sustenta que é possível destruir o Estado como tal sem passar pelo Estado de transição. Contra a teoria social-democrática, Marx afirma, ao invés, que o Estado burguês não pode ser conquistado, mas tem que ser destruído; contra a teoria anárquica, afirma que o que deve ser destruído não é o Estado tout curt, mas exatamente o Estado burguês, porque o Estado como tal, uma vez destruído o Estado burguês, está destinado à extinção. Separando os dois momentos, que estão dialeticamente unidos, da supressão e da superação, pode-se afirmar que a supressão do Estado burguês não é a supressão do Estado, mas é a condição para a sua superação. E é por isso que o Estado burguês tem que ser, primeiramente, suprimido, diversamente do que sustentam os social-democratas, para, em seguida, diversamente do que sustentam os anarquistas, poder ser superado.

(Continua na próxima postagem.)