29 de outubro de 2008

Privatização na Rússia (XX)

(Continuação da postagem anterior.)

CONCLUSÃO

Um balanço do processo de privatização, especialmente em relação aos seus efeitos sobre a eficiência econômica empresarial, não pode ser feito de maneira isolada, tendo-se em conta o que foi dito sobre os programas de ajustamento macroeconômico mais acima e as dificuldades de adaptação das empresas ao novo mecanismo de funcionamento da economia. Deve-se considerar também que o processo de redistribuição da propriedade ainda não está concluído. São muitas, entretanto, as críticas à condução do processo, dentre as quais a de que este processo foi funcional para criar e fortalecer interesses econômicos, gerando uma oligarquia financeira que usa o seu poder econômico para exercer influência política e auferir ainda maiores vantagens nos cenários político e econômico russos.

Indo além da análise meramente formal, concluímos que o projeto de privatização ocorrido na Rússia aconteceu da pior forma possível. O primeiro ponto que queremos destacar refere-se ao ambiente institucional proposto pelo modelo de transição adotado entre 1992 e 1995. Sob o sistema socialista, havia todo um conjunto de sanções e de regimentos legais para a proteção da propriedade pública. Na economia de transição da Rússia, a zona de incerteza no campo dos direitos de propriedade tornou-se ainda maior, já que o sistema de proteção da propriedade havia sido desmantelado e por não haver, ainda, sido criado nenhum novo sistema protetor das propriedades públicas e privadas.

A destruição dos direitos de propriedade, portanto, levou à paralisia dos investimentos das empresas, já que não havia um sistema de proteção da propriedade definido, e “(...) quanto melhor definido for [este sistema], menores são os riscos do mercado de capitais” (Radygin, 1995, 12). Não houve, entre 1992 e 1995, fronteiras econômicas e legais entre a propriedade pública e a propriedade privada, com todos os problemas resultantes dessa não separação.

Além dessa questão legal, os próprios objetivos formais do programa podem ser contestados, além, é claro, de podermos contestar também os meios pelos quais o programa foi implementado. Se por um lado o objetivo formal nos apresenta a necessidade da criação de uma economia de mercado, por outro temos o objetivo “informal” de se implementar um modelo neoliberal no país, até mesmo como forma de se mostrar que a Rússia não retornaria ao seu passado comunista. Essa alteração das estruturas econômicas e sociais poderia ter sido feita sem muitos problemas, como foi o caso da Polônia e da República Tcheca. Os dirigentes russos, por sua vez, preferiram adotar medidas “ocidentais”, muito rapidamente, retirando de uma só vez o Estado de áreas sociais importantes para a população. Somado a esse retraimento rápido e excessivo do Estado, a falta de organização governamental, no sentido de se criar um plano de desenvolvimento a médio e a longo prazo, levou o país quase “à beira do abismo” – o que pode ser comprovado pelos sucessivos índices negativos de crescimento do PIB russo.

Somando-se a todos esses problemas organizacionais, temos de destacar a elevada corrupção existente nas esferas governamentais. A manipulação de eleições, o benefício dado a vários diretores vermelhos e a forte ligação do governo com os oligarcas, dentre outros aspectos, servem para demonstrar a corrupção existente no governo russo no período de Ieltsin. O não pagamento de impostos, por parte dos oligarcas, e os investimentos exclusivos em atividades financeiras, e não em atividades produtivas, também contribuíram para a bancarrota do Estado russo, fato consolidado com a crise econômica russa de agosto de 1998.

Portanto, se considerarmos as implicações meramente formais, o programa de privatização russo – peça-chave do programa de reestruturação econômica aplicado em 1992 – foi um sucesso. Seus objetivos foram atingidos, ainda que com alguns problemas “durante o percurso”. Porém, se considerarmos o âmbito social do projeto, e não apenas o âmbito econômico, o programa de reestruturação econômica como um todo – e não apenas o programa de privatização – foi um fracasso, pois o mesmo foi o responsável não apenas pela queda acentuada do PIB na década de 90, mas, principalmente, pela queda do nível de vida da população. O plano, que visava à consolidação do mercado e da democracia, serviu apenas para beneficiar uma pequena camada da sociedade, em detrimento de uma maioria que viu suas condições de vida piorarem e que, por isso mesmo, deixou de apoiar o plano após 1993.

BIBLIOGRAFIA

BOBROW, Davis B. & DRYZEK, John S. Policy analysys by design. Pittsburgh: University of Pittsburgh Press, 1987.

CADERNOS Adenauer 5: A Rússia no início da era Putin. São Paulo: Fundação Konrad Adenauer, 2000.

DOBBS, Michael. A queda do império soviético. Rio de Janeiro: Campus, 1998.

GORBACHEV, Mikhail S. A proposta de Mikhail Gorbachev: tarefas do Partido no âmbito da reestruturação econômica. Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, 1988.

_____. Perestroika: novas idéias para o meu país e o mundo. São Paulo: Best Seller, 1987.

KIFORDU, Henry Aniagoa. Introdução ao estudo de políticas públicas. Brasília: não publicado.

RADYGIN, Alexander. Privatization in Russia: hard choice, first results, new targets. Londres: Centre for Research into Communist Economies, 1995.

SEGRILLO, Ângelo. O declínio da União Soviética. Rio de Janeiro: Record, 2000a.

_____. O fim da URSS e a nova Rússia: de Gorbachev ao pós-Yeltsin. Petrópolis: Vozes, 2000b.

27 de outubro de 2008

Privatização na Rússia (XIX)

(Continuação da postagem anterior.)

Podemos afirmar que, devido à privatização, será difícil um retorno ao antigo monopólio e aos antigos controles administrativo e burocrático exercidos pelo Estado nas empresas russas. Além disso, é também possível dizer que as grandes mudanças ocorridas na área de relações de propriedade na Rússia serviram de base para mudanças ainda maiores na relação de poder naquele país.

Ainda como resultado formal do processo de privatização, temos o elevado nível de investidores institucionais. Isto significa que uma parte considerável dos investimentos da população e de instituições não-financeiras é recirculado no setor financeiro, o qual se expandiu grandemente nos primeiros anos de propriedade privada, até 1998. O resultado foi a diminuição dos investimentos na área de produção. Segundo Radygin (1995, 99), “(...) deve-se admitir que este estágio é inevitável, e está fortemente associado à formação da infraestrutura da distribuição dos investimentos (movimento de capitais)”.

Fazendo uma correlação entre os resultados formais e o arcabouço teórico apresentado, podemos encontrar características de cada um dos paradigmas apresentados por Bobrow & Dryzek (1987) no processo de privatização na Rússia. Contudo, conforme afirmado anteriormente, nos baseamos em três dos paradigmas apresentados: economia do bem-estar, estrutura social individual e processamento de informação otimista. Esses três modelos foram analisados anteriormente na seção “Marco teórico”.

Das oito características relacionadas à economia de bem-estar, cinco surgiram no processo de privatização na Rússia: alto controle, pouco conflito político, mínima incerteza sobre os resultados da política pública, previsão em relação aos gastos monetários e audiência burocrática receptiva. Todos esses itens relacionam-se entre si: o governo de Ieltsin possuía um alto controle do processo político, devido às próprias alterações políticas ocorridas entre 1989 e 1991 na ex-URSS já descritas na Introdução. Este controle do processo político resultou em pouco conflito político, entre a cúpula governamental, sobre os passos a serem seguidos. Da mesma forma, o quase inexistente conflito político garantiria a previsão sobre os custos e os benefícios da política de privatização. Além disso, o próprio fato de que um dos objetivos principais desse projeto era a criação de uma economia de mercado na Rússia, levando-se em consideração a ideologia neoliberal, já nos permite associar o paradigma do bem-estar à política privatizante russa.

O segundo paradigma por nós utilizado é o da estrutura social individual, também já apresentado anteriormente. Das sete principais características desse paradigma, identificamos quatro que se relacionam firmemente com o problema estudado: consenso geral de valores, alto controle, rápido feedback e poucos elementos do tipo “bem público” nos fins da política pública. O consenso geral de valores foi atingido devido ao pouco conflito político na cúpula governamental, que por sua vez garantiu o alto controle governamental na própria política em si. Por sua vez, houve um rápido feedback da população – ainda que negativamente – em resposta ao processo. Por fim, por mais que o objetivo formal fosse também a participação da população nas privatizações, por meio dos vouchers, o objetivo não declarado era a transferência das empresas estatais para a “grande” iniciativa privada, fazendo com que os bens, anteriormente públicos, se tornassem majoritariamente privados.

O último paradigma utilizado neste trabalho foi o processamento de informações otimista. Das sete características principais, cinco foram consideradas por nós: alto controle, consenso de valores, conflito político mutável, capacidades de metapolítica e bom feedback. Consideramos oportuno o destaque da característica conflito político mutável pelo seguinte aspecto: o consenso de valores e o pouco conflito político citados anteriormente referiam-se ao ambiente dentro do poder Executivo. Porém, havia um conflito latente, e muitas vezes real, entre esse poder e o poder Legislativo, conflito este, contudo, mutável, pois ora beneficiava o Executivo, ora beneficiava o Legislativo. A última característica a ser destacada é a capacidade de metapolítica do poder Executivo: a privatização era apenas uma das “faces” do projeto neoliberal implantado por Ieltsin a partir de 1991.

Desta forma, tanto os aspectos práticos da política de privatização, quanto os aspectos teóricos, apresentados e aplicados retrospectivamente ao processo ocorrido na década de 90, podemos dizer que o programa de privatização atingiu seus objetivos. Surgiu um mercado de capitais e um novo sistema financeiro; surgiu uma nova classe social, a de donos de propriedades privadas; consolidou-se o sistema capitalista, com relações sociais reguladas pelo mercado; alterou-se a orientação ideológica política e economicamente, com a implantação da democracia formal no país e do já citado mercado livre; e alterou-se o sistema legal, com a incorporação de alterações de cunho político e econômico. Todos esses resultados relacionam-se entre si, fazendo com que o plano de reestruturação econômica tivesse êxito ao atingir o seu objetivo final, que era a transformação de uma sociedade com a economia planificada e com totalitarismo em uma nova sociedade chamada de “democracia de mercado”.

(Continua na próxima postagem.)

24 de outubro de 2008

Privatização na Rússia (XVIII)

(Continuação da postagem anterior.)

No que se refere à complexidade, podemos dizer que a privatização na Rússia tinha um alto grau de complexidade, por ser um processo que estava sendo realizado dentro de toda uma reestruturação econômica e política naquele país. Lembremo-nos de que não deve ter sido fácil a total conversão de um sistema altamente centralizado e estatal para um sistema relativamente descentralizado c com ênfase na propriedade privada. Porém, contraditoriamente ao grau de complexidade, consideramos que a incerteza do processo era relativamente baixa. Obtemos essa conclusão ao verificarmos que o resultado da privatização era certo, conhecido e buscado a todo custo – que era a venda das empresas. Não analisamos aqui se todos os detalhes do programa foram cumpridos, mas sim o escopo geral – e, no geral, o processo visava a venda de empresas estatais para a iniciativa privada, o que – grosso modo – foi realizado.

Consideramos que o potencial de feedback era relativamente bom, neste processo de privatização. Como feedback consideramos não apenas a pequena participação da população no sistema de vouchers – o que consideramos feedback porque as pessoas estavam mostrando que não estavam satisfeitas com esse sistema –, mas também – e principalmente – com a insatisfação popular expressa por meio do Parlamento russo, eleito em 1995 com a maioria dos deputados sendo da oposição a Yeltsin. Por outro lado, vale a pena lembrar que a insatisfação popular não trouxe muitos resultados, se considerarmos que o processo de privatização continuou inalterado até o final.

Podemos considerar que o grau de controle do processo era bastante alto. Basta termos em mente o fato de que todos que formavam a equipe econômica do governo eram favoráveis à privatização nos moldes em que ela ocorreu. É claro que houve contestações, não apenas do Parlamento, mas também dos governadores das diversas regiões administrativas do país. Mas estes conflitos não foram suficientemente fortes para fazer com que o governo central perdesse a sua capacidade de controlar o processo das reformas russas.

Surge aqui uma nova contradição: assim como a complexidade do processo não trouxe instabilidade ao mesmo, pois o poder Executivo detinha toda a agenda envolvida com o processo, este mesmo alto grau de controle exercido pelo governo federal não trouxe estabilidade ao processo, pois as manifestações do Parlamento e dos governadores das regiões administrativas russas trouxeram instabilidade ao ambiente político no qual o processo de privatização ocorria. Desta forma, o processo, por um lado, foi estável, tendo-se em vista que o mesmo não foi alterado em nenhum momento pelo poder Executivo. Mas a conjuntura na qual o processo ocorreu foi instável, com as demonstrações de força vindas do Parlamento com o objetivo de atrapalhar o plano de privatizações (objetivo este que não conseguiu ser atingido). Alterações na política macroeconômica russa, algumas dessas alterações como decorrência do próprio programa de reestruturação da economia, também trouxeram instabilidade ao processo, atrasando cronogramas e permitindo o surgimento de falhas no mesmo (o que pode ser comprovado pelo fato do processo de privatização não ter seguido apenas os seus valores formais). Fica aqui, então, a contradição: o governo federal tinha um alto controle de todo o processo, mas a implementação desse processo não foi nada estável.

Por fim, devemos destacar que a audiência do processo foi a mais variada possível: podemos afirmar que a audiência atingiu a quase toda a população, pois a mesma se via envolvida, de uma forma ou de outra, com alguma das antigas empresas soviéticas. Assim, mesmo não tendo participado efetivamente da elaboração e da definição dos rumos da política pública de privatização, a população em geral, os trabalhadores, os diretores vermelhos, os oligarcas e o próprio governo podem ser considerados como público-alvo do resultado da privatização, cada um sendo “atingido” em um determinado aspecto, de acordo com suas próprias características.

ANÁLISE DA POLÍTICA DE PRIVATIZAÇÃO NA RÚSSIA

RESULTADOS

Se considerarmos apenas o lado formal do processo de privatização na Rússia, podemos dizer que o mesmo obteve sucesso. Esta afirmação é válida se considerarmos que, agora, a Rússia possui:

- Um verdadeiro setor corporativo em sua economia;
- Mercados cuidando dos leilões, além da contínua compra e venda de empresas já privatizadas;
- Uma nova camada social, mesmo que possa ser considerada fraca, de proprietários privados.

(Continua na próxima postagem.)

22 de outubro de 2008

Privatização na Rússia (XVII)

(Continuação da postagem anterior.)

Assim, tendo-se em mente a ideologia neoliberal, era importante a reformulação de todo o sistema produtivo russo, além da criação de um sistema financeiro; precisava-se reduzir a influência do Estado na economia, por meio das privatizações, por exemplo; era necessária a manutenção das contas públicas em ordem, o que foi feito não só pelos cortes de investimentos estatais mas também pela reformulação de leis e códigos com o objetivo de se alterar a legislação vigente; criou-se novas estruturas institucionais e legais para dar apoio a este sistema político e econômico nascente; e buscou-se fazer tudo isso com o apoio da população, sem a qual seria inviável a realização do projeto – pois a “participação ativa” da população serviria para mostrar ao Ocidente, principalmente, que os russos apoiavam o projeto de seus governantes.

Outro valor informal foi a necessidade de se beneficiar determinados grupos em detrimento de outros, como meio de se obter estabilidade política e econômica no país. Assim, na primeira fase da privatização, os beneficiados foram os antigos diretores vermelhos e também investidores estrangeiros; já na segunda fase, os beneficiados foram os oligarcas, que inclusive tiveram muita influência na manutenção do status quo político, com o apoio maciço que deram a Yeltsin para sua reeleição em 1996.

Um terceiro valor informal era a extrema confiança que os líderes russos tinham na economia de mercado, crendo que a sua simples adoção seria fundamental para o fim dos problemas russos. Essa confiança foi expressa por meio do Programa Radical de Construção da Economia de Mercado e de Estabilização Econômica, que visava a implantação de uma economia de mercado o mais rápido possível por meio de uma “terapia de choque”, onde os preços foram liberados e novos mecanismos de mercado inseridos de uma hora para outra na economia russa.

No que se refere aos valores formais, podemos dizer que o tempo para todos eles foi associado à venda das empresas estatais. O processo de privatização teve uma duração específica, e durante esta duração os ideais de construção de uma nova sociedade mais justa e igualitária, onde o “bem comum” seria atingido, estava presente. Já a transparência do processo não teve muito destaque, “participando” apenas no início da privatização. Também a busca da eficiência do governo não continuou sendo um valor importante, pois o processo de privatização se desregulou e perdeu seus objetivos iniciais de redistribuição da renda e da propriedade.

Por outro lado, temos os valores informais permanecendo sempre presentes da privatização, e em alguns momentos estes mesmos valores informais tornaram-se prioritários na condução da política de privatização. No processo de privatização, diversos erros foram cometidos – não só erros de cálculo dos resultados, mas também erros de implantação da política. O próprio fato de haver certos grupos sociais que se beneficiaram mais com a privatização do que outros já indica a preponderância desses valores informais na condução da política, não só na questão do tempo mas também na questão da prioridade dada aos mesmos.

Com relação à quantidade aplicada desses valores, gostaríamos de destacar dois, sendo um formal e um informal. Em relação ao valor formal, temos uma vontade constante por parte do governo de garantir a venda das empresas. Assim, podemos afirmar que a quantidade do valor “necessidade de venda” foi o maior durante todo o processo, já que o mesmo esteve sempre presente na pauta de atividades do governo. Por outro lado, o valor informal “benefício de determinados grupos” também esteve sempre presente, com o efetivo benefício de determinados grupos – os oligarcas – em detrimento de outros grupos.

DIMENSÕES DO CONTEXTO

Para podermos verificar qual a influência do contexto dentro do processo de privatização, é necessário dividir este contexto em cinco itens, de acordo com a classificação feita por Bobrow & Dryzek (1987, 203):

- Complexidade e incerteza;
- Potencial de feedback;
- Controle;
- Estabilidade;
- Audiência.

(Continua na próxima postagem.)

20 de outubro de 2008

Privatização na Rússia (XVI)

(Continuação da postagem anterior.)

Já no que tange a recursos financeiros, o compromisso era de que o preço inicial de uma empresa para ser vendida – ou a quantidade de capital autorizado de uma companhia joint stock – poderia ser determinado tomando-se por base um completo inventário de seus bens. A propriedade a ser avaliada incluía bens fixos e investimentos, reservas, lucros e dinheiro. Os bens fixos foram avaliados tomando-se por base o valor do produto “original” menos a depreciação por tempo de uso, por exemplo. Para determinar a quantidade de capital registrado em nome de uma empresa, os principais itens a seguir eram utilizados:

- O dinheiro remanescente de incentivos econômicos e lucros foram canalizados para a criação de um fundo para a privatização da empresa;
- Créditos e empréstimos a curto, médio e longo prazos foram estendidos;
- O valor da propriedade foi “coberto” por arranjos especiais para a privatização, assim como o custo de facilidades sociais e culturais, para que a empresa fosse mantida como propriedade municipal ou estatal.

DEFINIÇÃO DE VALORES

A análise retrospectiva do processo de privatização russo, que estamos realizando nesse trabalho, nos permite reconhecer dois tipos de valores associados a este processo: valores “formais” e valores “informais”. Os valores formais são aqueles que estavam oficialmente relacionados à política adotada a partir de 1992, sendo alguns deles intimamente relacionados com o objetivo da política de privatização, enquanto que os valores informais envolvidos eram aqueles que não estavam claramente expressos no processo ocorrido naquele período, e que, portanto, não foram declarados como objetivos a serem atingidos pela política de privatização.

Todos esses objetivos formais tinham em vista a construção, na Rússia, de uma nova sociedade baseada em uma economia de mercado e em um sistema político democrático. Havia, assim, a busca do “bem comum” para a sociedade russa, e esse “bem comum” era expresso também pela privatização das empresas estatais. Ao mesmo tempo, buscou-se a participação da população por meio dos vouchers, esperando-se, assim, que a população participasse do processo e, desta forma, desse seu apoio ao mesmo, legitimando as ações governamentais. Vale destacar também a questão da transparência desejada com o processo, pois já que os cidadãos participariam efetivamente da privatização, nenhuma ação escusa poderia – teoricamente – ser escondida da população. Por fim, podemos destacar também como valores a busca da eficiência não só das empresas, mas também do governo, além do fato de que o processo de privatização era um dos principais aspectos do Programa Radical de Construção da Economia de Mercado e de Estabilização Econômica.

Por trás destes valores formais, podemos, entretanto, verificar a existência de valores informais em todo o processo. O primeiro deles refere-se à necessidade consciente de adotar medidas consideradas neoliberais no país, como forma de mostrar que a Rússia não adotaria novamente o socialismo como sistema político e econômico. Essa preocupação, por parte dos líderes russos, era fundamental, já que o país precisava não só de crédito financeiro externo, como também precisava da confiança dos países ocidentais até mesmo para conseguir auxílio financeiro.

Como valores formais, podemos destacar os seguintes:

- Criação de um mercado de capitais e de um novo sistema financeiro, por meio de programas de investimentos e da implantação de medidas de disseminação das informações.
- Criação de uma classe de proprietários de empresas, para melhorar a administração corporativa, melhorar o controle sobre a disciplina da aplicação da tecnologia na produção e aumentar a qualidade do marketing empresarial e dos programas de investimento.
- Consolidação de um sistema capitalista que englobasse toda a população, e não apenas a nomenklatura.
- Consolidação da democracia, com a participação da população no processo de compra e venda das empresas.
- Abertura do sistema econômico russo para o mercado, com mudanças ideológicas em relação à propriedade privada.
- Alteração do sistema legal russo, refletindo as alterações econômicas e políticas ocorridas no período.
- Modificação do ambiente institucional, pois no antigo sistema econômico soviético havia um sistema legal de sanções para a proteção da propriedade pública. Durante o período de transição da economia, as incertezas tornaram-se maiores, pois o sistema legal de proteção da propriedade pública não mais funcionava, e ainda não havia um sistema legal de proteção da propriedade privada.
- Obtenção de recursos de forma rápida e elevada com a venda das estatais, como ponto de apoio para as demais reformas econômicas.

(Continua na próxima postagem.)

17 de outubro de 2008

Privatização na Rússia (XV)

(Continuação da postagem anterior.)

Em novembro de 1991, depois das mudanças na composição do governo russo, podemos falar de um novo estágio na “ideologia” da privatização, e uma intensificação abrupta de esforços para garantir a implementação prática da política de privatização. Assumindo que a privatização era um dos elementos-chave da reforma econômica, o governo de Yeltsin e de Gaidar intensificou seus esforços na área do desenvolvimento de uma legislação específica para a privatização, mas ao mesmo tempo este governo ainda não tinha uma oportunidade “real” de monitoração operacional do processo de privatização. Foi por isso que uma das características específicas da reforma econômica daquele governo foi a liberalização dos preços antes de um período de privatização em larga escala, que foi além da ortodoxia teórica dominante na área da transição para o mercado e estava em contradição com a experiência de alguns outros países. Havia, porém, algumas razões para esta liberalização abrupta dos preços:

- Era impossível esperar pelo fim da privatização em larga escala conduzida de uma maneira tradicional (ou seja, durante vários anos), por causa da extrema escassez de produtos em 1991 e 1992;
- Se os preços não fossem liberados, qualquer empresa de propriedade estatal realmente se tornaria uma “entidade estatal”, pois ela teria de administrar a distribuição de bens com pouca oferta, o que o governo não queria;
- Estava ocorrendo uma privatização “espontânea” intensiva, e se os preços não fossem liberados, essa privatização “espontânea” poderia cessar.

Em 29 de dezembro de 1991 o Presidente da Federação da Rússia assinou o decreto “Sobre a Aceleração da Privatização de Empresas Estaduais e Municipais”. Foram também criadas as “Provisões Fundamentais sobre o Programa de Privatização de Empresas Estaduais e Municipais na Federação da Rússia em 1992” (Radygin, 1995, 49). A implementação dessas provisões começou em primeiro de janeiro de 1992. As Provisões Fundamentais realmente se tornaram o primeiro documento que forneceu algum tipo de regulação para o processo de privatização e deu o início à privatização já programada para a Rússia (opondo-se à privatização “espontânea”).

O decreto do Presidente da Federação da Rússia “Sobre a Aceleração da Privatização de Empresas Estaduais e Municipais” continha sete regulações departamentais normativas que davam detalhes em como implementar a Lei de Privatização e as Provisões Fundamentais, além de definir certas regras para o procedimento da privatização (procedimentos sobre a aplicação da privatização, sobre a avaliação do valor de uma empresa, sobre tornar as empresas estatais companhias joint stock, sobre ações, sobre o uso de fundos de incentivo econômico no processo de privatização e sobre a operação das comissões que tratavam do processo de privatização). Entretanto, a experiência dos primeiros meses de implementação prática do “pacote” mostrou que todas essas regulações tinham problemas. O atraso foi causado por uma operação e coordenação ruins dos atores envolvidos em vários níveis, pelo treinamento ruim dos profissionais da área, pela dominação de métodos políticos ao invés de métodos democráticos, além da própria natureza complexa dos detalhes técnicos envolvidos no “pacote” e por certos defeitos da própria documentação.

RECURSOS ORGANIZACIONAIS E HUMANOS

É importante identificarmos também outros aspectos relativos a este processo de privatização, como, por exemplo, a demanda por esta política, o resultado dessa demanda, o resultado da própria política e os impactos políticos resultantes da implementação.

No que diz respeito à demanda por uma política de privatização, vale lembrar que as privatizações já estavam acontecendo de forma velada durante o próprio regime socialista, ainda quando da existência da União Soviética, conforme dito na primeira parte deste trabalho. Por outro lado, logo após o fim da União Soviética, o ambiente político era favorável a um ajuste econômico – no qual se inclui a privatização – baseado em políticas neoliberais até certo ponto impostas pelo Ocidente. O resultado dessa “demanda neoliberal” foi o processo de privatização em si, teoricamente buscando uma melhor redistribuição e uma maior eficiência do Estado, mas trazendo como conseqüência o aprofundamento da crise social, política e econômica àquele país.

Os aspectos administrativos e burocráticos da privatização foram confiados ao Comitê Estatal da Federação da Rússia para a Coordenação da Propriedade Estatal (GKI), um órgão do governo, enquanto que a “venda real” das propriedades foi organizada e realizada pelo Fundo Federal Russo sobre Propriedade, que operou sob o comando de Boris Yeltsin (Radygin, 1995, 47). No que se refere a recursos organizacionais, portanto, o projeto tinha o total apoio dos principais órgãos do governo russo.

(Continua na próxima postagem.)

15 de outubro de 2008

Privatização na Rússia (XIV)

(Continuação da postagem anterior.)

STAKEHOLDERS E ATORES

A segunda caracterização que temos de fazer refere-se aos atores envolvidos no processo de privatização na Rússia. Para tanto, gostaríamos de utilizar a definição dada por Kifordu: “Um determinado indivíduo é ator social quando ele representa algo para a sociedade (para o grupo, a classe, o país), encarna uma idéia, uma reivindicação, um projeto, uma promessa, uma denúncia” (Kifordu, 1995, 6). Assim, distinguimos como atores da primeira fase da privatização (“privatização por cupons”) os seguintes atores:

- Governo: de acordo com a própria definição dada anteriormente de que a política de privatização foi governamental, foi o governo o principal agente da política pública na sua primeira fase. Foi este ator que canalizou as opiniões e idéias em torno desse assunto até concretizar a formulação, a decisão e a implementação da política pública.
- “Diretores vermelhos”: estes atores nada mais eram do que os antigos diretores de empresas estatais soviéticas e que tiveram papel fundamental na aplicação prática da política de privatização. Devemos nos lembrar da importância desses atores ao analisarmos o grau de participação dos mesmos na implementação da política pública, além de considerar que a grande maioria dos “diretores vermelhos” se beneficiou pessoalmente com o projeto de participação ao utilizar informações valiosas do decorrer do processo em seu benefício próprio.
- População: a participação da população na primeira fase da privatização foi moderadamente ativa. Em um primeiro momento, poderíamos acreditar que a participação foi contundente e importante, pois a população recebeu os vouchers que davam direito à mesma de comprar partes das empresas. Porém, ao verificarmos a incapacidade prática de agir das “pessoas comuns”, vemos que sua influência e sua participação no processo não foi tão profunda quanto tinha sido idealizada teoricamente.

Na segunda fase (“privatização por ações”), temos os seguintes atores:

- Governo: mais uma vez, o principal ator no processo de privatização na Rússia foi o governo, que iniciou a formulação, a decisão e a implementação nessa segunda fase, ao ceder as empresas estatais como garantia referentes aos empréstimos feitos pelos oligarcas.
- Oligarquia: a oligarquia russa foi o segundo ator na segunda fase da privatização. Descendendo diretamente dos antigos “diretores vermelhos”, a oligarquia possuía – e ainda possui – muito mais influência do que estes antigos diretores, influenciando de forma decisiva as políticas sociais e econômicas do governo russo.
- Parlamento: o Parlamento pode ser considerado um ator fundamental na segunda fase da privatização, pois foi este ator que se opôs às políticas neoliberais implantadas por Yeltsin. Além disso, o Parlamento visava a defender os interesses da sociedade russa, opondo-se às verdadeiras negociatas ocorridas entre o governo federal e os oligarcas, durante a aquisição das empresas por meio da “privatização por ações”.

Além desses atores principais, temos também os stakeholders, que são todos aqueles que participaram direta ou indiretamente da aplicação da política pública. No caso da privatização russa, os stakeholders são vários: governantes das diversas repúblicas, regiões autônomas, territórios e cidades dentro da Federação da Rússia; chefes das agências envolvidas no projeto, como por exemplo o Ministério das Relações de Comércio Exterior, o Ministério da Economia, o Ministério da Indústria, o Ministério de Combustíveis e de Energia, o Banco Central e o Comitê para a Administração do Patrimônio Estatal, dentre outros departamentos. Estes, porém, não foram decisivos na aplicação da política pública propriamente dita, apesar de terem influenciado a mesma em alguma das suas fases (criação, implementação, avaliação, etc.).

ATIVIDADES E AÇÕES DO PROCESSO

Devido à instabilidade política geral e à falta de coerência na divisão dos poderes entre vários níveis e áreas do poder, toda a agenda da privatização estava atrasada (a elaboração do programa de privatização foi planejado para iniciar em primeiro de setembro de 1991) e as regulações necessárias que completariam a lei de privatização (planejada para primeiro de agosto de 1991) não existiam. Então, o que aconteceu foi que, até o final de 1991, não havia instrumentos específicos para a privatização, ou um conceito de privatização como um todo, e como resultado o que pudemos observar foram processos espontâneos de todos os tipos.

(Continua na próxima postagem.)

13 de outubro de 2008

Privatização na Rússia (XIII)

(Continuação da postagem anterior.)

Todas as empresas estatais foram divididas em três categorias, dependendo do método de privatização utilizado:

- Pequenos negócios (com uma força de trabalho média de até 200 empregados e/oi com valor de capital fixo menor que um bilhão de rublos em primeiro de janeiro de 1992) seriam vendidos por meio de ações;
- Grandes empresas (com uma força de trabalho média de 1000 ou mais empregados e/ou com valor de capital fixo igual ou maior a cinqüenta bilhões de rublos em primeiro de janeiro de 1992) seriam privatizadas transformando-as em companhias joint stock;
- As empresas remanescentes seriam privatizadas por qualquer um dos demais métodos descritos no programa.

Os objetivos formais do Programa de Privatização eram a formação de uma camada social de donos privados de empresas, a finalização da privatização de pequenas empresas e a privatização de empresas de porte médio e grande na indústria e na construção, a melhoria da eficiência das empresas, a criação de um ambiente competitivo e o desenvolvimento de mercado de troca, fornecendo ajuda para a implementação de medidas sociais de proteção, incluindo a proteção dos direitos dos donos das ações das empresas.

As demandas genuínas do mercado definiram as necessidades de reestruturação das empresas. A idéia do governo era a de que “a melhor política é vender [as empresas] e deixar que os novos donos façam os investimentos necessários” (Radygin, 1995, 55). Este princípio, adotado em vários países do Leste Europeu, foi especialmente válido para a Rússia efetivar a reestruturação operacional e/ou física. Entretanto, esta metodologia também foi associada com algumas conseqüências negativas. Por exemplo, como várias empresas a serem privatizadas tinham enormes débitos, os investidores não se atraíram pelas mesmas. Por outro lado, não houve uma administração competente nem investimentos quando os empregados se tornaram “donos” da maior parte da empresa.

A principal característica da primeira fase da privatização foi a ênfase na condução do programa de distribuição de vouchers, que foi considerado o principal objetivo da privatização naquela época. Uma característica positiva foi o aumento do número de administradores. Ao mesmo tempo nenhum dos métodos avançados da privatização ofereceu uma solução final para o problema do investimento.

A principal vantagem do programa foi a introdução de certas regulações sobre a privatização de coisas “reais” (tais como a área e a terra onde a empresa estava construída), assim como regulações sobre os direitos dos novos acionistas e dos novos fundos de investimento. Ao invés de o GKI impor restrições de procedimentos às várias regiões administrativas russas, o órgão apenas recomendou procedimentos para a realização da privatização. Essas regiões administrativas, de certa forma, puderam realizar as privatizações em suas áreas de acordo com a forma que achassem melhor.

Devido a muitos fatores objetivos, a ideologia russa de privatização em massa favoreceu mais a velocidade da privatização do que a qualidade dos projetos individuais, e transformou esse processo em um “simples” procedimento formal.

Muitas pessoas reprovam os defensores da privatização russa, dizendo que a privatização realmente ignorou as demandas por reestruturação para a atração de investimentos. Ainda, poder-se-ia dificilmente combinar esta questão com o objetivo maior do primeiro estágio, mas houve também uma razão política para isso: para se lançar qualquer tipo de programa de privatização na Rússia, era essencial a construção de um compromisso político entre os vários grupos sociais de interesse, mas foi aquele compromisso principal da primeira fase (os vouchers e os grandes privilégios para os trabalhadores coletivos) o que excluiu a possibilidade de uma reestruturação imediata, além de investimentos reais na produção. Ainda, a primeira fase do programa de privatização não deu nenhuma orientação e não estipulou nenhuma meta e/ou procedimento a ser realizado após o fim dessa primeira fase. Assim, a necessidade de uma nova “ideologia privatizante” após o período dos vouchers fez surgir novos procedimentos e novos conceitos para a implantação da segunda fase do processo.

(Continua na próxima postagem.)

10 de outubro de 2008

Privatização na Rússia (XII)

(Continuação da postagem anterior.)

Yeltsin recuperara, com o resultado das eleições, prestígio político. Se o início do ano aparentava ser ruim – e realmente o foi, até outubro de 1999 –, as eleições parlamentares garantiam ao presidente apoio político na Duma. Contudo, em 31 de dezembro de 1999, Yeltsin renunciou à presidência, em um ato imprevisto. Passou o cargo a Putin e justificou sua atitude como um “desejo de passar a liderança a gerações mais jovens” (Segrillo, 2000b, 135). A renúncia de Yeltsin, contudo, não é difícil de ser explicada. O seu sucessor era um aliado, o que garantiria sua imunidade contra as investigações sobre corrupção – Putin decretou a imunidade a investigações que Yeltsin receberia após deixar o cargo de presidente. Além disso, com o apoio da Duma, seu sucessor não teria tanta dificuldade para governar e, ainda, a popularidade de Putin estava elevada, garantindo também o apoio da população.

Deve-se levar também em consideração as eleições presidenciais de 2000, onde Putin seria o sucessor oficial de Yeltsin, mesmo antes de sua renúncia. Com a renúncia do presidente, as eleições foram antecipadas para março, tempo suficiente para que a popularidade de Putin se mantivesse alta – devido aos sucessos na guerra da Chechênia – e ele conseguisse vencer a eleição. A estratégia deu certo: à época da eleição, o exército russo havia capturado a capital da Chechênia, e Putin venceu a eleição no primeiro turno, com mais de 50% dos votos (Segrillo, 2000b, 137). A era Yeltsin, que começara em 1990, chegava ao fim, e um novo horizonte se abria para a Rússia.

EMBASAMENTO TEÓRICO

Nesta parte, será de fundamental importância a apresentação do marco teórico sobre o qual o restante do trabalho será apresentado. Além disso, apresentaremos também as variáveis que participaram e/ou influenciaram no processo de privatização na Rússia, além de outras informações relativas ao contexto do programa..

BREVE DESCRIÇÃO DO PROGRAMA

A primeira caracterização que podemos fazer do processo de privatização na Rússia refere-se à sua tipologia. Optamos por caracterizá-la teoricamente como uma política pública distributiva, governamental, coletiva e liberal, ou seja, seu objetivo inicial teórico pode ser caracterizado como uma política que visava à distribuição de determinados bens para a população, tinha origem governamental, objetivava ofertar os bens para o público em geral e era completamente liberal, almejando mudanças drásticas e extremas na estruturação do modo de produção russo e da própria sociedade russa.

Demos ênfase à questão teórica desta política pública pelo fato de que seus objetivos nada mais foram do que estes: ficaram apenas na teoria, enquanto sua prática foi diferente do proposto. Na prática, o que vimos foi uma total alteração não só dos objetivos como também, e principalmente, dos resultados desta política de privatização. No final, a privatização poderia ser considerada uma política pública auto-regulatória e quase-coletiva com tendência a particular, pois buscou a promoção e a proteção dos interesses de determinados grupos sociais e acabou beneficiando apenas um seleto grupo de indivíduos da sociedade.

O Estado russo, em 1992, era visto como um “Estado de transição”, pelos seus próprios governantes, de um sistema econômico e político centralizado para outro, “capitalista e democrático”, conforme citado anteriormente. Assim, para a formação de um modelo nacional para este Estado torna-se necessário “apenas” reconhecer a necessidade das seguintes pré-condições:

- Entender o papel especial do Estado em uma economia de transição (como um “destruidor criativo” do modelo econômico antigo);
- Entender a longa duração do processo de transição;
- Necessitar de um “desejo político” para desenvolver e pôr em prática uma legislação eficiente para evitar que interesses particulares de qualquer grupo e de qualquer tipo prevaleçam;
- Necessitar não de intervenções radicais e sim de uma operação regulatória diária de um corpo único capaz de objetivar uma política pública rigidamente centralizada.

De acordo com o programa de privatização, os objetivos eram os seguintes:

- A criação de uma economia de mercado socialmente orientada baseada na formação de uma categoria de proprietários privados;
- Melhoria da eficiência das empresas;
- Desenvolvimento da infra-estrutura social usando as rendas da privatização;
- Contribuição para a estabilização financeira do país;
- Contribuição para uma economia competitiva e não monopolista;
- Atração de investidores estrangeiros.

A primeira versão desse programa foi analisada em 16 de janeiro de 1992 no colegiado do Governo da Federação da Rússia, e esse programa foi aprovado como sendo o básico a ser realizado em 1992 e 1993. Entretanto, por causa do confronto entre o Governo e o Soviete Supremo (ainda não existia a Assembléia Federal), o programa foi adotado apenas em dezembro de 1992.

Para 1992 e 1993, de acordo com o programa, tinha-se em vista os seguintes objetivos:

- Venda de ações das empresas estatais, incluindo ofertas privadas para a administração e para os empregados; essa venda tornar-se-ia pública por meio dos vouchers e das ações monetárias (segunda fase da privatização, 1995-1997);
- Venda de empresas por meio de agentes comerciais;
- Venda de empresas por meio de agentes de investimento não-comerciais;
- Venda da propriedade das empresas em processo de liquidação e também as já liquidadas;
- Venda das propriedades das empresas de capital misto (Radygin, 1995, 51).

(Continua na próxima postagem.)

8 de outubro de 2008

Privatização na Rússia (XI)

(Continuação da postagem anterior.)

Para tentar controlar a situação, Yeltsin demitiu Kirienko e tentou trazer de volta Chernomyrdin, cujo nome foi vetado duas vezes pela Duma. Isso criou um impasse político entre Yeltsin, que ameaçou dissolver o Parlamento, e a Duma, que ameaçava pedir o impeachment de Yeltsin, caso o nome de Chernomyrdin fosse indicado pela terceira vez. O impasse político foi solucionado com a indicação de Yevgeny Primakov para Primeiro-Ministro, o que fortaleceu a Duma e enfraqueceu Yeltsin e as oligarquias, pelo menos temporariamente. Este episódio comprova, mais uma vez, o fato de que o Parlamento tentava defender os interesses russos, assim como acontecera em 1993, enquanto que Yeltsin buscava implantar o capitalismo de qualquer forma no país e também beneficiar os oligarcas, que apoiavam seu governo. Como conseqüência da crise russa, “o rublo caiu a quase 1/3 do seu valor em questão de poucos dias. Filas de enraivecidos depositantes formavam-se nos bancos, incapazes de receber seu dinheiro de volta. Todos queriam comprar dólares, cujo valor disparara” (Segrillo, 2000b, 113). Foi necessária a realização de uma total reestruturação do sistema bancário, contrariando os oligarcas. O governo russo interviu nos bancos, decretando falência de alguns, obrigando a fusão e a reestruturação de outros e fornecendo garantias à população por meio dos bancos estatais, que foram os únicos que conseguiram sobreviver à crise. O período do capitalismo exclusivamente financeiro-especulativo havia chegado ao fim, e o poder dos oligarcas fora seriamente abalado.

O novo Primeiro-Ministro Primakov, que tinha o apoio da Duma, preocupou-se em reativar o setor produtivo da economia, logo após a crise de agosto. Adotou medidas de controle de preços e salários, indexação salarial, auxílio estatal para algumas indústrias estratégicas e incentivou um programa de obras públicas. A indústria e a agricultura receberam ênfase no seu governo, e o programa de privatização buscava agora a eficiência das empresas, ao invés de apenas lucro financeiro. Primakov conseguiu “evitar o pior”, mas obteve poucos resultados práticos devido ao endividamento do Estado russo. Foi substituído em maio de 1999, devido ao seu bom relacionamento com a Duma e às suas medidas antioligárquicas.

O ano de 1999 foi um ano complicado no campo político. Em um ano e meio, desde o início de 1998 a agosto de 1999, Yeltsin teria cinco primeiros-ministros diferentes: Chernomyrdin, Kirienko, Primakov, Stepashin e, finalmente, Putin. Isto foi resultado da disputa entre os diversos segmentos da elite para influenciar Yeltsin e os rumos da política econômica após a crise. A substituição de Primakov foi um exemplo dessa disputa por influência. Primakov estava conseguindo manter a Rússia relativamente estável, mas o Primeiro-Ministro “batia de frente” com a oligarquia. Isso levou Yeltsin a substituí-lo por Stepashin, que também ficou pouco tempo no cargo devido a divergências entre o Primeiro-Ministro e a Duma, de um lado, e Yeltsin e os oligarcas, de outro.

Putin assumiu o cargo de Primeiro-Ministro sem ter muita projeção política. A situação se reverteria, contudo, com suas ações enérgicas a fim de solucionar o problema com guerrilheiros islâmicos no Daguestão e, principalmente, com a nova invasão da Chechênia, devido aos ataques com bombas supostamente realizados por chechenos em cidades russas. A ação enérgica de Putin fê-lo ser visto como um Primeiro-Ministro “durão”, que colocaria a Rússia no caminho correto.

Concomitantemente a esse “rodízio” de primeiros-ministros, Yeltsin era enfraquecido por acusações consistentes de corrupção, muitas delas referindo-se ao processo de privatização. As filhas de Yeltsin estariam envolvidas diretamente em desvio de dinheiro, além do próprio Banco Central russo também ser acusado de desvio de verbas. Yeltsin tentou remover o Procurador-Geral, que era quem realizava as investigações, mas a Duma condenou este ato como inconstitucional. Ao mesmo tempo, agências ocidentais também investigavam tais casos de corrupção, comprovando sua veracidade. Comentava-se que a grande preocupação de Yeltsin era evitar que ele tivesse problemas quando acabasse sua imunidade presidencial. Os oligarcas também sofreram seu maior golpe, quando Boris Berezovsky, o oligarca com maior influência sobre Yeltsin, teve sua prisão decretada – ainda que não cumprida.

Para complicar o cenário político, em dezembro de 1999 haveria eleições parlamentares. Os partidos mais fortes disputando as vagas da Duma eram o PCFR, o Yabloko, o Nossa Casa é a Rússia e um novo partido, o Pátria – Toda a Rússia, formado pelo prefeito de Moscou e pelo ex-Primeiro-Ministro Primakov, com orientação ideológica de centro-esquerda e de oposição a Yeltsin. Outros dois novos partidos de direita também surgiram, com o objetivo de apoiar Yeltsin e suas políticas econômicas liberais: o Unidade e o União das Forças Direitas. O resultado das eleições garantiu, mais uma vez, a vitória do PCFR, que ficou com 113 das 450 vagas da Duma. O Unidade ficou com 72 vagas, o Pátria – Toda a Rússia em terceiro com 66 vagas, o União das Forças Direitas com 29 e o Yabloko com 21 vagas. Apesar de ainda ser o partido mais votado, o PCFR não conseguiria maioria na Duma contra os partidos de direita, que apoiavam Yeltsin e Putin – tendo estes partidos, inclusive, sido beneficiados com o aumento de popularidade do Primeiro-Ministro.

(Continua na próxima postagem.)

6 de outubro de 2008

Privatização na Rússia (X)

(Continuação da postagem anterior.)

A atividade central de cada oligarca era um banco, pois o capital financeiro e especulativo predominou na Rússia nos primeiros cinco anos de capitalismo naquele país, devido ao fato de o sistema industrial produtivo estar completamente desarticulado. Depois do banco, a principal atividade do oligarca relacionava-se com empresas de extração de recursos minerais. A Rússia é um país rico em petróleo, gás, pedras preciosas, madeira, etc., e os dólares que entravam no país pela venda desses produtos eram a única forma de fazer o país funcionar, já que quase não havia atividade industrial – com a exceção de poucas empresas comandadas pelos diretores vermelhos, que davam lucros excepcionais a estes diretores, o sistema produtivo não conseguiu se reerguer rapidamente. Assim, se por um lado as oligarquias traziam dinheiro para o país, por outro elas quase não pagavam impostos, pois o governo fazia “vista grossa” para suas atividades. O relacionamento entre as diversas oligarquias tornou-se aceitável entre eles após a delimitação das áreas de influência de cada oligarca. Deve-se fazer uma diferença entre os oligarcas e os diretores vermelhos, citados anteriormente. Os oligarcas se concentravam inicialmente no setor financeiro, com muitos já atuando no setor privado desde o final da Perestroika. Já os diretores vermelhos trabalhavam em empresas estatais no período soviético, e no período de Yeltsin continuaram atuando no setor produtivo.

Após a reeleição de Yeltsin, em 1996, os oligarcas atingiram o auge de seu poder, conseguindo adquirir grandes empresas com grande potencial lucrativo com a ajuda do governo, por meio da segunda fase da privatização, chamada de “privatização por empréstimos”. Esta fase ocorreu da seguinte forma: os banqueiros (oligarcas) “competiam” para oferecer os maiores empréstimos ao governo, ficando com o controle de ações de determinada empresa estatal como garantia. Se o governo não pagasse o empréstimo após certo tempo, os banqueiros podiam negociar tais ações – e várias empresas foram adquiridas pelos próprios bancos que cuidavam de suas ações. Desta forma, os banqueiros compravam as empresas estatais com o próprio dinheiro do governo, e ainda ganhavam com o pagamento dos juros do empréstimo feito ao governo. Deve-se destacar o fato de que a “competição” para os empréstimos era fachada, pois freqüentemente já havia um “acordo de cavalheiros” decidindo quem ficaria com o quê. Além disso, vale lembrar que estas empresas adquiridas por este processo foram empresas utilizadas primordialmente para a especulação financeira, e não para resultados produtivos.

O AMBIENTE POLÍTICO DE 1997 A 2000 E A CRISE RUSSA

O ano de 1997 foi considerado um ano tranqüilo em geral, considerando-se a manutenção de Yeltsin no poder após as eleições de dezembro de 1996 e, conseqüentemente, também a continuação das políticas que beneficiavam a elite do país. Pela primeira vez na década, a Rússia conseguiu um crescimento positivo do PIB, além de conseguir certa estabilidade financeira com a queda da inflação. Iniciou-se uma abertura lenta, porém gradual, no sentido de se permitir o ingresso de capital estrangeiro em áreas estratégicas. Isso não foi um problema, pois os oligarcas russos já tinham o controle das empresas mais lucrativas, devido à “privatização por cupons” e à “privatização por ações”.

Em 1998, a Rússia passou por grandes problemas econômicos que se refletiriam no campo político. O governo russo se endividava cada vez mais para poder obter recursos, pois nem a população – que estava em dificuldades econômicas – e nem os oligarcas – por sua proximidade com o governo – pagavam impostos. A inadimplência era generalizada, o que fazia com que o governo russo emitisse títulos que chegavam a ter juros de 200%. As receitas do orçamento federal eram menores do que a dívida do governo com as “Obrigações de Curto Prazo do Tesouro” (GKO) (Segrillo, 2000b, 109). Para complicar, os próprios governos das regiões administrativas russas também podiam emitir seus próprios títulos.

Um sinal de que a coisa não ia bem surgiu em abril de 1998, quando o governo colocou GKOs à venda e não conseguiu atrair muitos compradores. O Primeiro-Ministro Sergey Kirienko, que substituíra Chernomyrdin, encontrou na sonegação fiscal uma forma de conseguir dividendos para o país. Ao pressionar os oligarcas para que eles pagassem seus impostos, estes conseguiram convencer Yeltsin a demitir Kirienko. Mesmo com o empréstimo de emergência do FMI em julho, no valor de US$ 22 bilhões, a Rússia não conseguiu manter a confiabilidade. O resultado de toda a especulação dos últimos sete anos foi a desvalorização do rublo, o não pagamento de US$ 40 bilhões em GKOs de curto prazo e uma moratória de 90 dias de qualquer pagamento, por entidades russas, a credores estrangeiros. Todas estas medidas foram tomadas no dia 17 de agosto de 1998.

(Continua na próxima postagem.)

3 de outubro de 2008

Privatização na Rússia (IX)

(Continuação da postagem anterior.)

O AMBIENTE POLÍTICO DE 1995 A 1996 E A SEGUNDA FASE DA PRIVATIZAÇÃO

O grande acontecimento político de 1995 foi a realização, em dezembro, de eleições parlamentares federais. A população votou na oposição, como forma de mostrar seu descontentamento com a crise econômica, e o grande vencedor foi o Partido Comunista da Federação da Rússia, com 34,9% das 450 vagas da Duma. Em segundo ficou o partido Nossa Casa é a Rússia, do Primeiro-Ministro Chernomyrdin. Em terceiro, com 11,3% das vagas, ficou o Partido Liberal Democrata da Rússia, e em quarto ficou o Yabloko, com 10% das vagas (Segrillo, 2000b, 93).

Antes de prosseguirmos, é importante explicarmos a ideologia desses partidos. O Partido Comunista da Federação da Rússia (PCFR) foi fundado em 1993 como um “sucessor” do Partido Comunista da União Soviética. Apesar de socialista, não é revolucionário, privilegiando a atuação parlamentar. O Nossa Casa é a Rússia foi criado às vésperas da eleição, com o objetivo de ser um partido de centro-direita que apoiasse Yeltsin de maneira sólida. O Partido Liberal Democrata da Rússia (LDPR) tinha orientação fascista (extrema direita), e em seu discurso criticava o governo. Na hora de votar, contudo, o LDPR aliava-se ao governo, para barrar os comunistas. Por fim, o partido Yabloko pregava um capitalismo liberal mas sério, e não o capitalismo “irresponsável” de Yeltsin (Segrillo, 2000b, 94).

Em 1996, o fato político mais importante foi as eleições presidenciais. Desde cedo, a população se dividiu entre Yeltsin e Gennady Zyuganov, o candidato do PCFR. Correndo “por fora” estava o general Aleksandr Lebed. A disputa presidencial resumir-se-ia, desta forma, a um plebiscito entre capitalismo – representado por Yeltsin – e socialismo – representado por Zyuganov.

A estratégia de Yeltsin foi associar Zyuganov a um possível retorno aos tempos da ditadura soviética. Além disso, como o eleitorado via suas propostas com ceticismo, devido aos resultados alcançados na economia até então, Yeltsin partiu para promessas populistas e eleitoreiras, como por exemplo aumentar o valor das bolsas universitárias e o valor das aposentadorias. O candidato do PCFR, por sua vez, evitava debater sobre os conceitos de socialismo e capitalismo, afirmando que não faria reformas impensadas e radicais no país. Citava sempre a China como modelo a ser seguido, como um país socialista que oferece possibilidades concretas aos empresários, sem a influência preponderante do Estado na economia. Os resultados do primeiro turno mostraram a vitória apertada de Yeltsin, com apenas 3,25% de margem – Yeltsin teve 35,28% dos votos e Zyuganov 32,03% (Segrillo, 2000b, 96). Os dois candidatos foram para o segundo turno. Devido aos resultados do primeiro turno, com uma diferença tão pequena entre os candidatos, o segundo turno prometia ser disputado.

Os “homens de negócio” russos, ou seja, os oligarcas, ficaram preocupados com a possível vitória de um comunista e, conseqüentemente, com o possível fim dos seus privilégios e da sua influência no governo. Sendo assim, a oligarquia patrocinou maciçamente a campanha de Yeltsin, com anúncios nos jornais, revistas e na televisão, além de novamente associarem Zyuganov ao terror stalinista. “Algumas estimativas de observadores sobre o dinheiro jogado pelos oligarcas e aliados na campanha de Yeltsin chegavam a valores acima de US$ 50 milhões” (Segrillo, 2000b, 99). Além disso, Yeltsin conseguiu o voto daqueles que votaram em Aleksandr Lebed, que ficara em terceiro no primeiro turno, pois o presidente convidara o general para ser o chefe do Conselho de Segurança Nacional. Lebed viria a assinar um acordo de paz com os chechenos, acabando com a guerra. No dia da eleição, o resultado de todo esse trabalho surtiu efeito: Yeltsin recebeu 53,82% dos votos e Zyuganov 40,31%. A vitória de Yeltsin foi recebida com satisfação por aqueles que queriam a manutenção da economia de mercado na Rússia. O presidente recompensou seus aliados, dando cargos importantes inclusive para os próprios oligarcas, de quem falaremos agora.

Os oligarcas “são todos ex-burocratas ou empresários iniciantes do período soviético bem posicionados junto ao novo poder de Yeltsin. (...) Após o início da privatização, utilizaram, além das práticas comerciais regulares, suas posições privilegiadas (...) e mesmo subterfúgios escusos para adquirir ex-empresas estatais a preços baixos” (Segrillo, 2000b, 101). Lembremo-nos do processo de “privatização por cupons”, por exemplo: aqueles que tinham mais dinheiro compravam os cupons no seu preço nominal, apesar de estarem desvalorizados, e os utilizavam para comprar as empresas. Os membros do antigo PCUS eram outro exemplo: estes membros tinham informações privilegiadas sobre as empresas soviéticas, e utilizavam tais informações em benefício próprio. Os “mais fortes” conseguiram sobreviver e passaram a acumular cada vez mais: estima-se que menos de 10 oligarcas dominavam 80% das empresas privatizadas no país, em 1995 (Segrillo, 2000b, 101).

(Continua na próxima postagem.)

1 de outubro de 2008

Privatização na Rússia (VIII)

(Continuação da postagem anterior.)

Chernomyrdin assumiu dizendo que protegeria as empresas russas, mas continuaria com o processo de privatização – só que de forma mais lenta e gradual. Na prática, pouca coisa mudou para a população, enquanto que as oligarquias se beneficiaram mais ainda com o novo Primeiro-Ministro. Diferentemente de seu antecessor, que tinha fortes ligações com o capital ocidental, Chernomyrdin defendeu o interesse das oligarquias russas, ao criar obstáculos ao capital estrangeiro, de forma que os oligarcas puderam adquirir cada vez mais empresas russas, aumentando seu poder de influenciar a economia e o governo. O Primeiro-Ministro também implantou um plano de estabilização da economia russa, obtendo sucesso no que diz respeito ao controle da inflação. Entretanto, o setor industrial russo não conseguiu retomar o crescimento, devido à competição com produtos estrangeiros e às altas taxas de juros (Segrillo, 2000b, 83), o que levou a crescimentos negativos da economia russa. Chernomyrdin conseguiu, ao menos, deixar o processo de privatização relativamente concluído, ao deixar o cargo em 1998: “mais de 2/3 da produção e do emprego na Rússia eram realizados no setor privado (incluindo aqui empresas de capital misto)” (Segrillo, 2000b, 84).

No campo político, houve tantos problemas nos três primeiros anos pós-URSS quanto no campo econômico. As políticas econômicas desastrosas de Yeltsin colocaram o Parlamento contra ele. Os deputados estavam insatisfeitos com a queda do nível de vida da população, e muitos não concordavam com a forma como as privatizações estavam acontecendo. Yeltsin, por sua vez, não queria ser criticado por ninguém, muito menos pelo Parlamento russo, e enxergava o Parlamento como um obstáculo no caminho para suas reformas. Assim, “Yeltsin (...) passou a se queixar de que aquele Congresso dos Deputados do Povo tinha sido eleito na época soviética e, portanto, era pouco representativo da nova realidade social do país” (Segrillo, 2000b, 84). A principal disputa política referia-se aos poderes extraordinários que Yeltsin recebera, para que ele pudesse passar da economia planificada para a economia de mercado, entre 1991 e 1992. O Parlamento queria restringir estes poderes, enquanto Yeltsin, obviamente, queria mantê-los.

A disputa entre Executivo e Legislativo continuou até que Yeltsin declarasse, em março de 1993, o Regime Especial de Administração do País, algo como um estado de emergência, ampliando portanto seus próprios poderes. Membros do próprio governo de Yeltsin, como o vice-presidente Rutskoi, foram à televisão e disseram que o decreto presidencial era inconstitucional, agravando a crise e a disputa política. O Congresso fracassou em sua tentativa de impeachment do presidente, e marcou para maio um referendo popular sobre a política de Yeltsin. Para satisfação do presidente, 58% dos votantes expressaram confiança em sua pessoa e em sua política.

Com as denúncias de corrupção sobre Rutskoi, Yeltsin decidiu pelo afastamento temporário do vice-presidente, enquanto durassem as investigações. O Parlamento se posicionou contra a demissão do vice-presidente, declarando a medida inconstitucional e confirmando Rutskoi no cargo. Aumentando a “provocação”, em 21 de setembro de 1993 Yeltsin assinou o decreto “Sobre a reforma constitucional gradual”. Este decreto extinguia o Congresso dos Deputados do Povo e marcava novas eleições, onde os eleitos ocupariam a nova Assembléia Federal. Em 23 de setembro, o Parlamento aprovou o impeachment de Yeltsin, substituindo-o pelo vice Rutskoi, com o apoio do Tribunal Constitucional.

A solução encontrada para a solução da disputa entre presidente e Parlamento foi a utilização da força. Em 4 de outubro, Yeltsin ordenou que os tanques estacionados ao redor da Casa Branca bombardeassem o edifício, ocupando-o com soldados e obrigando os deputados a se renderem. O vice-presidente e o presidente do Parlamento russo, principais opositores de Yeltsin, foram presos.

Neste ponto, é importante fazermos uma análise de como os acontecimentos econômicos e políticos se “encaixam”. Yeltsin herdara um país que se encontrava em uma situação economicamente fraca e debilitada. Ele, porém, encontrava-se politicamente forte, ao ser retratado como o “defensor da democracia” ao se opor ao golpe de Estado de agosto de 1991, e como aquele que poderia colocar a Rússia “nos trilhos” novamente, ao mostrar os erros que Gorbachev cometera.

Devido a este clima favorável à sua pessoa, Yeltsin pôde iniciar seu governo da forma mais radical possível – através da “terapia de choque” –, tentando alavancar a Rússia rapidamente em direção ao capitalismo. Porém, após 70 anos de forte ideologia comunista, foi difícil para a população aceitar e até mesmo entender suas políticas – por mais que elas estivessem desiludidas com o comunismo, não poderiam entender e assimilar uma mudança tão radical como a liberalização dos preços, com o conseqüente aumento dos mesmos, por exemplo. Desta forma, o descontentamento popular ecoou no Parlamento russo, onde havia deputados que também não se sentiam à vontade com a rápida “ocidentalização” do país, com a introdução do capitalismo na Rússia.

O resultado dessa diferença de objetivos por parte dos dois poderes, o Executivo e o Legislativo, só poderia ser o confronto. Yeltsin, por um lado, queria realizar as reformas o mais rápido possível, talvez até mesmo para dirimir as dúvidas internacionais a respeito de uma volta ao comunismo, além de querer beneficiar aqueles que o apoiavam. O Parlamento, por outro lado, também ansiava por reformas que reconduzissem a Rússia ao caminho certo, mas não gostava da forma que Yeltsin escolhera – praticamente “escancarando” a Rússia para a entrada de idéias e conceitos ocidentais.

Como as diferenças de objetivo, associadas à busca pelo poder das duas partes envolvidas, não podiam ser conciliadas, ocorreu o confronto. Em um primeiro momento, este confronto se dava, por exemplo, com a nomeação para postos-chave, por parte de Yeltsin, de pessoas que desagradavam ao Parlamento. Este respondia declarando inconstitucionais os atos de Yeltsin, tentando dificultar suas ações. Por fim, a opção escolhida por Yeltsin para pôr fim às disputas e à paralisia política foi a força, bombardeando o mesmo prédio que ele ajudara a defender contra os golpistas dois anos antes.

Após o ataque ao Parlamento, Yeltsin assinou decretos proibindo o funcionamento das organizações que apoiaram o Parlamento, além de dissolver o Tribunal Constitucional. Convocou eleições para a nova Assembléia Federal e submeteu a referendo popular uma nova Constituição, de caráter eminentemente presidencialista, com um poder Executivo muito forte em relação ao Legislativo. Nestas eleições, o partido de Yeltsin ficou em segundo lugar, atrás de um partido de extrema direita e à frente de um partido de esquerda. Este “aprisionamento” do partido de Yeltsin deu certa margem de manobra à Duma – a nova Assembléia Federal – que, se por um lado não podia agir ostensivamente contra Yeltsin, por outro podia opor certa resistência, como por exemplo dando anistia a vários presos políticos em fevereiro de 1994, dentre eles o ex-vice-presidente Rutskoi.

(Continua na próxima postagem.)