27 de novembro de 2007

Sobre o fascismo (II)

(Continuação da postagem anterior.)

III. A abordagem singularizante. A tendência a analisar o Fascismo como um produto particularmente característico da sociedade italiana e da sua história é contemporânea ao próprio nascimento do Fascismo. Conquanto minoritária no panorama global dos estudos sobre o tema, ela sustentou uma notável corrente da historiografia italiana e estrangeira, havendo recebido novo impulso em anos recentes, devido inclusive à influência de pesquisas como a de G. Mosse sobre As origens culturais do Terceiro Reich que, reavaliando a importância do componente nacional na compreensão de aspectos fundamentais do regime nazista, principalmente o do consenso, reativou a discussão acerca do peso relativo das diferenças e analogias existentes, em primeiro lugar, entre o fascismo e o nacional-socialismo e, depois, entre estes e os demais regimes autoritários que assinalaram a recente história contemporânea.

As primeiras hipóteses de explicação do Fascismo, com base em fatores internos típicos da situação italiana, foram aventadas, naturalmente, nos anos 20, em concomitância com a consolidação do movimento fascista, com a tomada do poder por Mussolini e com a progressiva transformação do estado liberal em estado de características totalitárias. Poucos souberam então ver no Fascismo a antecipação de uma crise mais geral que revolucionaria a Europa e, com a catástrofe da Segunda Guerra Mundial, viria a produzir profundas mudanças na organização interna de cada um dos estados nacionais e na ordem internacional.

As causas imediatas da vitória do Fascismo foram geralmente procuradas no clima de forte instabilidade social, política e econômica, criado na Itália nos primeiros anos posteriores à Primeira Grande Guerra Mundial. Mas, ao tentarem explicar a vulnerabilidade e ruína das instituições liberais, alguns estudiosos se interrogaram sobre o passado da história nacional, chegando a descobrir no processo de formação do estado unitário aquela debilidade intrínseca das estruturas que o Fascismo havia de pôr a nu. Foi assim que nasceu a bem conhecida tese do Fascismo como "revelação", subscrita por homens assaz diversos como G. Fortunato, C. Rosselli, P. Gobetti, G. Salvemini e outros. O atraso do país, a falta de uma autêntica revolução liberal, a incapacidade e mesquinhez das classes dirigentes, unidas à arrogância de uma pequena burguesia parasitária com a doença da retórica, a prática do transformismo, que havia impedido a evolução do sistema político num sentido moderno, foram o terreno de cultivo do Fascismo, que assim se situava numa linha de continuidade, muito mais que de ruptura, em relação ao sistema liberal. Daí o juízo fundamentalmente redutivo do Fascismo e das suas potencialidades expansivas, só cultiváveis a partir do reconhecimento dos elementos de novidade nele presentes, quer nas técnicas de gestão do poder, quer no modo de organização do corpo social, e, de forma mais genérica, na configuração das relações entre estado e sociedade civil. Por outras palavras, o que faltava aos defensores da tese do Fascismo como revelação era uma adequada percepção da natureza da crise que atingira o sistema liberal, e não só na Itália, no período compreendido entre as duas guerras mundiais, e do tipo de solução dada pelo Fascismo a esta crise.

A afirmação do caráter tipicamente italiano do Fascismo, subscrita também, entre outros, por autorizados teóricos fascistas, que reivindicavam ser ele o coroamento do processo de unificação nacional iniciado com o Ressurgimento, foi questionada com o surgir de movimentos fascistas em vários países da Europa, mormente com a subida ao poder do nacional-socialismo na Alemanha. A partir dos anos 30, predominaram as interpretações tendentes a acentuar o caráter supranacional do Fascismo, que haviam de orientar a maior parte da pesquisa e alimentar o debate teórico mesmo depois da Segunda Guerra Mundial.

Em contradição com essa interpretação, foi-se esboçando, nos últimos dez anos, uma corrente historiográfica que visa reduzir o âmbito de aplicação do conceito de Fascismo apenas ao contexto italiano. Demonstrando a justa necessidade de se evitar as generalizações arbitrárias, mas expressando, ao mesmo tempo, uma orientação metodológica de desconfiança com relação ao uso de conceitos gerais na investigação histórica e de descrença nos modelos teóricos próprios das ciências sociais, essa corrente -- que tem na Itália seu maior expoente em Renzo De Felice -- originou uma série de pesquisas sobre o Fascismo, como movimento e como regime, com o objetivo, podíamos dizer, de compreender o fenômeno desde dentro (daí a utilização de fontes predominantemente fascistas) e de reconstruir a história, superando esquemas interpretativos preconstituídos. O resultado de tais pesquisas foi o de levar a uma reavaliação das diferenças existentes entre os diversos "Fascismos" e o de pôr em questão a utilidade de um modelo unitário.

Os argumentos aduzidos para apoiar esta nova versão da especificidade do Fascismo italiano são radicalmente diferentes dos que caracterizaram as primeiras análises dos estudiosos a ele contemporâneos. Estes baseavam o tema da especificidade num conjunto de variáveis estruturais, típicas da sociedade italiana, cuja permanência era aceita como principal fator explicativo do regime fascista, e ressaltavam a relação de continuidade com o sistema liberal, que depois foi aceita como própria, de modo não fortuito, por grande parte da historiografia marxista ou próxima do marxismo.

É uma perspectiva inteiramente diferente aquela em que se colocam as pesquisas atrás mencionadas. O centro da análise é o Fascismo em sua dimensão político-ideológica e a tese da especificidade é baseada, em primeira instância, justamente nas diferenças ideológicas e projetivas do Fascismo italiano com relação ao nazismo. Não se nega a existência de um denominador comum entre os dois fenômenos e, por conseguinte, a possibilidade de os englobar no mesmo conceito de Fascismo; mas esse denominador serve mais para estabelecer limites em relação ao exterior, isto é, em relação a outros regimes de tipo autoritário, do que para lhe explicar a natureza, os objetivos fundamentais e a função histórica. Estes, ao contrário, tornam-se divergentes, quando se contrapõe o radicalismo de esquerda e o caráter revolucionário do movimento fascista italiano ao radicalismo de direita, essencialmente reacionário, do nazismo.

O problema da relação com o sistema social e político preexistente também se fundamenta em bases diversas e se articula levada em conta a diferenciação entre Fascismo como movimento e Fascismo como regime. Como expressão das aspirações da classe média emergente, ou de uma parte consistente dela, a um papel político autônomo, tanto em confronto com a burguesia, como com o proletariado, o Fascismo, como movimento, teria representado um momento de ruptura a respeito do passado, uma proposta de modernização das estruturas da sociedade italiana, com certa carga revolucionária. Ao invés, o Fascismo, como regime, como resultado de um compromisso entre a ala moderada do movimento e as velhas classes dirigentes, teria assinalado a frenagem do impulso reversivo original do movimento e o predomínio das relações tradicionais de poder entre as classes, mas nunca um momento de mera e simples reação. A delegação da gestão do poder político ao Fascismo por parte da burguesia marcou, de fato, o início de um processo de substituição da elite dirigente que, se não houvesse sido interrompido com a queda do regime em conseqüência das vicissitudes da guerra, teria podido desafiar os centros do poder real, até então controlados pelas velhas classes dominantes.

A reafirmação da "unicidade" do Fascismo italiano e da necessidade de ressaltar, para uma melhor compreensão histórica, os elementos de diferenciação dos regimes definidos como fascistas por interpretações já consolidadas, tem suscitado não poucas discussões. Essa polêmica tem por alvo não tanto a validade de cada uma das proposições -- nenhuma delas em si totalmente nova -- quanto uma questão fundamental, que é ao mesmo tempo a do método e a do conteúdo; o que se questiona é se é legítimo aceitar como principal critério discriminante a dimensão ideológico-cultural, se com isso se corre o risco de apresentar, como diversos, fenômenos que são essencialmente da mesma natureza.

(Continua na próxima postagem.)


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