12 de junho de 2008

Da circulação simples à essência do sistema (I)

Da Circulação Simples à Essência do Sistema

1. Transformação do dinheiro em capital: a porta de entrada ao mundo não (imediatamente) visível da produção capitalista.

"Transformação do dinheiro em capital" -- assim Marx intitula a seção II de O Capital. Esta seção é o que se pode chamar de "ante-sala" que nos prepara para abandonar a esfera ruidosa da circulação de mercadorias, imediatamente visível e acessível a todos os olhos, e ingressar no mundo oculto da produção capitalista, para ai desvendar o segredo da produção da mais-valia.

Quando Marx convida-nos a abandonar com ele, juntamente com o possuidor do dinheiro e o possuidor da força (lê-se capacidade) de trabalho, a esfera da circulação simples, ele está convidando esses personagens a conhecerem o lado oculto de um único e mesmo mundo: o modo capitalista de produção. Pertencentes a uma única e mesma realidade historicamente determinada, o mundo da experiência vivida e seu lado não visível, isto é, não observável e imediatamente experimentado, guardam entre si uma relação dialética que é tematizada por Marx como uma relação entre aparência e essência, ou, se preferirmos, uma relação entre a circulação simples (esfera do intercâmbio de mercadorias) e a esfera da produção.

De fato, quem se propõe a observar a sociedade capitalista, percebe que ela é fundada em relações comerciais entre os indivíduos, cujos interesses privados, particulares é o que os une e os leva a se relacionarem entre si. É no mundo das mercadorias, no mundo do mercado, e por meio dele que se tecem as relações entre os homens. Fora desse mundo as pessoas são reduzidas à mera condição de indivíduos.

Mas se todas as pessoas só são consideradas enquanto tais se proprietárias de mercadorias -- e por assim ser, somente estariam dispostas a abrir mão de suas coisas em troca de outras de igual valor, ou seja, trocando equivalente por equivalente -- cabe uma pergunta: por que certos indivíduos têm maior riqueza do que outros? No nível da consciência comum a riqueza como decorrente do fato de que certos indivíduos trabalham mais do que outros e assim puderam acumular maior riqueza. No nível de formalização científica, a resposta que se encontra na economia política não está muito distante daquela pensada pelo senso comum.

Adam Smith, por exemplo, ao explicar a formação da propriedade privada recorre a uma pretensa acumulação primitiva pessoal que ocorreu em tempos que remontam ao surgimento das sociedades agrícolas e comerciais.

Marx não contrapõem simplesmente uma teoria diferente para explicar a origem da propriedade capitalista e suas leis inerentes de apropriação e distribuição do produto. Ele parte mesmo desse solo comum que o mundo da experiência vivida e a teoria econômica partilham para explicar as diferenças de riqueza entre os indivíduos. Faz isso, obrigando a econômica política e o senso comum a refletirem sobre suas próprias categorias, que pensam a propriedade privada como resultado de uma acumulação primitiva fundada no trabalho pessoal. Parte da idéia de que o direito de propriedade apareceu originalmente fundado sobre o trabalho próprio.

Observando a dialética interna da troca de mercadorias. Essa dialética revela que cada ato de troca é um ato isolado, um ato que ocorre entre indivíduos, quer sejam eles capitalistas, trabalhadores ou simplesmente indivíduos possuidores de mercadorias. Em cada ato desse é obedecida à lei do intercambio de equivalentes para os participantes da troca, pois se assim não fossem ninguém estaria disposto a abrir mão de suas mercadorias, a não ser que o mercado não passasse de um lugar onde reinaria o roubo sistemático de todos contra todos, e ai não se poderia nem mais se falar de troca.

Não se compra e se vende só uma única vez. Com efeito, o capitalista só pode se afirmar como tal se lançar constantemente dinheiro na circulação e dela retirar mercadorias para relançá-las novamente no mercado e recuperar o que antes adiantou como dinheiro. Se ele interrompe esse movimento, seu dinheiro se estaciona e não se valoriza, e ele será engolido por aqueles que mantiveram seu dinheiro em constante movimento. Do lado do trabalhador, este precisa vender recorrentemente sua capacidade de trabalho, pois se por algum motivo ele cessa de vendê-la, não poderá ter acesso aos bens necessários à sua sobrevivência.

Essa mudança leva Marx a passar do nível da analise da troca entre indivíduos para situá-la no nível da troca entre classes sociais. Quando se passa a esse nível se descobre que a troca de equivalentes se converte numa troca de não-equivalentes. A passagem do mundo da experiência vivida pelos indivíduos para o nível em que se situam as relações entre as classes sociais significa passar da circulação simples, para a esfera da produção, ou, se preferir, passagem da aparência para a essência do sistema.

Se o capital é dinheiro e mercadoria, ele é passagem de uma forma para outra, sem se perder em nenhuma delas. A categoria capital exige uma nova categoria -- a capacidade de trabalho -- como mercadoria especial, cujo consumo, pelo capitalista, restitui o valor por ele adiantado para comprá-la acrescido de uma soma adicional de valor. Daí surge à categoria mais-valia, de onde brota a valorização do valor ou do capital adiantado pelo capitalista. Mas o valor que o capitalista adianta não se resume apenas em capacidade de trabalho: parte dele é despendido em mercadorias tais como maquinas, matérias-primas e outros meios de trabalho.

Marx passa a pensar o capital como um movimento cíclico que mostra como ele se origina da mais-valia e é, ao mesmo tempo, fonte de mais-valia. Só aí, então, fica claro como o dinheiro é transformado em capital, como por meio do capital é produzida a mais-valia e como da mais-valia é produzido capital.

(Continua na próxima postagem.)

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