23 de junho de 2008

Diferenças conceituais (VI)

(Continuação da postagem anterior.)

II. O SOCIALISMO "DA UTOPIA À CIÊNCIA". Lá pelo fim da década de 1830, começou a ser usada pelos críticos do Socialismo a qualificação de "utopistas" para designar os socialistas (a aproximação entre "Socialismo" e "utopismo" foi feita provavelmente pela primeira vez em 1839, na História da economia política, do economista liberal francês J. A. Blanqui). Mas foram Marx e Engels que estabeleceram no Manifesto (e depois em vários outros lugares, dentre os quais destacamos especialmente os capítulos do Antidühring de Engels refundidos no pequeno volume A evolução do socialismo da utopia à ciência, 1888) a distinção entre socialismo "utópico" e socialismo "científico", a que se refere depois continuamente a tradição marxista. Enquanto a crítica do Manifesto é muito severa em relação ao Socialismo "reacionário" dos críticos do industrialismo que idealizavam a situação histórica anterior, do "verdadeiro" Socialismo filosófico alemão e do Socialismo "burguês" de Proudhon por causa do seu reformismo, Marx e Engels reconheceram a função positiva desempenhada pelo "Socialismo e comunismo crítico-utópico", especialmente pelo de Saint-Simon, Fourier e Owen, na identificação das contradições fundamentais da sociedade industrial e na delineação do futuro ordenamento social (eliminação do contraste entre cidade e campo, abolição da família junto com a propriedade privada, transformação do Estado em simples órgão de administração da produção, unificação da instrução e do trabalho produtivo, etc.). Consideraram, porém, suas tentativas parciais e imaturas em relação ao fraco desenvolvimento do proletariado industrial e às lutas de classe, motivo pelo qual esse tipo de Socialismo acabou por construir "sistemas" e "seitas" que "não descobrem no proletariado nenhuma função histórica autônoma, nenhum movimento político que lhe seja próprio". O caráter científico da nova teoria socialista de Marx e Engels consiste, segundo os seus autores: a) no fato de que o Socialismo, de programa racionalístico de reconstrução da sociedade que se dirige indistintamente à sua parte intelectualmente esclarecida, se transforma em programa de auto-emancipação do proletariado, como sujeito histórico da tendência objetiva para a solução comunista das contradições econômico-sociais do capitalismo (em particular da contradição entre propriedade privada e crescente socialização dos meios e dos processos produtivos); nesse sentido o Socialismo pretende ser "ciência" da revolução proletária; b) no fato de que o Socialismo não se apresenta mais como um "ideal", mas como uma necessidade histórica derivante do inevitável declínio do modo capitalista de produção, que se anuncia objetivamente nas crises cada vez mais agudas que ele enfrenta; c) no fato de que o Socialismo usa agora um "método científico" de análise da sociedade e da história, que tem seus pontos fortes no "materialismo histórico", com a teoria da sucessão histórica dos modos de produção, e na "crítica da economia política", com a teoria da mais-valia como forma específica da exploração na situação do capitalismo industrial. São aspectos conexos, mas parcialmente diferentes. Enquanto até a metade do século XIX, nas obras de Marx e Engels, se dá maior ênfase à história como tecido de lutas de classe e à identificação do proletariado como classe autonomamente revolucionária, os aspectos referentes à necessidade objetiva do desenvolvimento econômico só foram ressaltados de modo particular após o fracasso da revolução de 1848, quando, contra as impaciências revolucionárias ainda sobreviventes, Marx insistiu no axioma de que "uma formação social não perece enquanto não se tenham desenvolvido todas as forças produtivas a que pode dar origem" (prefácio de 1859 à obra Para a crítica da economia política). A imagem do Marx cientista e antiutopista, investigador das contradições e da ruína inevitável do sistema capitalista, tornou-se corrente no Socialismo da Segunda Internacional, especialmente na obra de elaboração e de construção sistemática do marxismo realizada por K. Kautsky e pelo centro "ortodoxo" do partido socialdemocrático alemão; mas já no esforço de Marx e Engels por transformá-lo em ciência e em suprimir-lhe o conteúdo utópico e ético, o Socialismo, ao mesmo tempo que se substanciava de concreção histórica e econômica, perdia parcialmente a dimensão de "projetualidade", não garantida pelo curso das coisas, acerca do ordenamento futuro da sociedade. Marx entendeu fundamentalmente a sua análise como "crítica científica" do modo de produção burguês-capitalista, recusando-se a formular "receitas para a cozinha do futuro" (pós-escrito de 1873 ao primeiro livro de O capital). Deu indicações precisas apenas sobre um ponto: a passagem do ordenamento baseado na propriedade privada à sociedade comunista se configuraria, após a tomada do poder por parte do proletariado, como um período de transição caracterizado, no plano político, pela "ditadura do proletariado" e, no plano econômico, pela sobrevivência parcial da forma mercatória dos produtos e do trabalho, com a relativa repartição da renda segundo as quantidades desiguais de trabalho; numa segunda fase, com a completa extinção da divisão das classes e da forma mercatória, todo o domínio político desapareceria na sansimoniana "administração das coisas" e a repartição do produto social se realizaria segundo as "necessidades" (Escritos sobre a Comuna, 1871, e Crítica do Programa de Gotha, 1875). O ponto teórico que mantém unidas a crítica do Estado e a do modo capitalista de produção é, em Marx, o fato de que a abolição do trabalho assalariado exige a apropriação e o controle direto", por parte dos produtores, das condições de trabalho e de todo o aparelho que regula a reprodução social.

Aquilo a que Marx chamou "fases" da sociedade comunista, a tradição marxista denominou-o depois "Socialismo" e "comunismo", dando ao Socialismo o significado de sociedade transitória a caminho de um modo de produção integralmente comunista.

A formação de um movimento político da classe operária que se organiza visando à gestão do Estado e à direção central da economia (deixando a questão de como chegar a esse resultado, por via pacífica ou revolucionária, às circunstâncias históricas concretas) foi o motivo principal da divergência e da luta furiosa suscitadas no seio da Primeira Internacional entre o Socialismo de Marx e Engels e o anarquismo em suas várias formas. No período da formação dos partidos socialistas nos últimos decênios do século XIX, o ponto de vista do Socialismo marxista pareceu já majoritário e consolidado, tanto que o "Socialismo libertário" de matriz anárquica foi explicitamente excluído da Segunda Internacional, em 1896.

(Continua na próxima postagem.)

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