20 de agosto de 2008

Liberalização e inclusividade na Rússia

Matheus Passos Silva
Doutorando em História Política e Cultural

Em seu livro Poliarchy, Robert A. Dahl define todos os regimes políticos do mundo como não completamente democráticos. O autor acredita que mesmo aqueles países onde o sistema democrático já esteja consolidado, o que existe não é democracia – coisa que o autor acha impossível de acontecer em qualquer lugar do mundo. Partindo desse princípio, Dahl define o seu conceito de poliarquia:

Podemos conceber que a democracia está situada no canto superior direito [do gráfico criado por Dahl para exemplificar os regimes políticos definidos por ele]. Mas como a democracia pode envolver mais dimensões do que as duas da figura 1.2 [contestação pública e participação política], e como (em meu ponto de vista) nenhum dos grandes sistemas do mundo é totalmente democratizado, eu prefiro chamar os sistemas reais do mundo que estão mais próximos ao canto superior direito de poliarquias. Qualquer mudança em um regime que se move para cima e para a direita, por exemplo, pelo caminho III, pode-se dizer que representa algum grau de democratização. Poliarquias, portanto, podem ser pensadas como regimes relativamente – porém incompletamente – democratizados, ou, para colocar de outra forma, poliarquias são regimes que foram substancialmente popularizados e liberalizados, ou seja, altamente inclusivos e extensivamente abertos à contestação pública (Dahl, 8).

Assim, os dois eixos que Dahl define em seu texto são os seguintes: o da liberalização (ou contestação pública) e o da inclusividade (ou o grau de participação da sociedade no governo). Quanto maiores forem os graus de liberalização e de inclusividade, mais próximo da “poliarquia perfeita” determinado regime estará.

Tendo-se em mente tais eixos, é possível afirmar que a Rússia ampliou, após o fim da União Soviética, a sua taxa de participação política da população, por meio de eleições livres e regulares, e também ampliou o grau de contestação pública ao regime, permitindo manifestações populares e o surgimento de uma verdadeira oposição a ambos os regimes.

O principal resultado da reforma política na Rússia desde o início da Perestroika foi a participação popular. Os cidadãos saíram de um estágio de total “alienação” em relação à escolha dos seus governantes e atingiram um estágio onde a democracia foi instaurada e consolidada – pelo menos a democracia formal, onde a ênfase é dada à possibilidade de voto às pessoas. O processo eleitoral na Rússia nunca deixou de acontecer, desde o fim da União Soviética. As eleições parlamentares e presidenciais ocorreram sempre nas datas previstas, sendo que nenhuma delas foi suspensa – mesmo quando esta possibilidade existiu. A partir das eleições de 1995, podemos perceber que a contestação pública ao sistema passa a ser não apenas oficial, mas principalmente efetiva. Com a pluralidade de partidos políticos, cada qual com sua respectiva ideologia, a população pôde escolher dentre as diversas opções disponíveis, dando a maioria na Duma ao Partido Comunista da Federação da Rússia.

Outro ponto importante na reforma política russa, e que também está relacionado à questão das eleições, foi a possibilidade de abertura de novos partidos políticos e da desconcentração do poder político, que antes estava nas mãos apenas do Partido Comunista. A pluralidade partidária, refletida na Assembléia Federal, foi uma das grandes e importantes conquistas do povo russo, com o fim do monopartidarismo comunista.

Um terceiro ponto importante na reforma política russa foi a criação de um sistema político-administrativo nos moldes ocidentais, com três poderes independentes entre si. O poder Judiciário, que existia mas era inoperante na União Soviética, passou a ter grande importância – e influência – no andamento dos processos políticos da Rússia, como por exemplo na denúncia de medidas inconstitucionais executadas por parte do poder Executivo. Desta forma, o sistema ocidental de pesos e contrapesos passou a existir também na Rússia, de forma que o poder não ficasse concentrado apenas nas mãos do poder Executivo. Obviamente que, para não ser “engolido”, o poder Judiciário se aliou diversas vezes ao poder Legislativo, objetivando formar um peso de oposição ao poder Executivo e suas medidas arbitrárias impetradas por Boris Ieltsin – presidente da Rússia de 1992 a 2000. Da mesma forma, também o poder Legislativo conseguiu sua independência – ainda que relativa – em relação ao poder Executivo, podendo os parlamentares, que foram escolhidos pela população, efetivamente irem contra as políticas neoliberais do poder Executivo.

As reformas política e econômica ocorridas na Rússia durante a década de 90 criaram uma conjuntura onde foi possível a passagem de um sistema centralizado e autoritário para um sistema aonde, pelo menos, as pessoas podem votar e onde o Parlamento pode, e muitas vezes consegue, contrabalançar as medidas tomadas pelo poder Executivo. Deste ponto de vista, é possível afirmar que existe, pelo menos em termos formais, uma grande participação política e também uma grande contestação pública aos atos do governo. É importante também realçar que essa participação da população na vida política do país começou ainda no período soviético, e vem evoluindo em um crescendo contínuo, o mesmo ocorrendo com a contestação da população aos atos do governo.

A inclusão de mais e mais camadas da população no processo eleitoral caracteriza a participação política da população. No caso da Rússia, enquanto ainda no período da União Soviética, tal participação era inexistente: só veio acontecer pela primeira vez em 1989, com as primeiras eleições diretas para o Congresso dos Deputados do Povo. Já a contestação pública ao sistema começou a ser realizada um pouco antes, por volta de 1987, com o aprofundamento e com a consolidação da liberdade de imprensa e com a possibilidade de manifestações políticas contra o próprio sistema, possibilitado pelo ambiente político da Perestroika.

Após o fim da União Soviética, a tendência foi a total consolidação da participação política da sociedade. Ocorreram três eleições parlamentares na década de 90 na Rússia (em 1993, 1995 e 1999) e duas eleições presidenciais no mesmo período (em 1996 e em 2000), além das eleições parlamentares de 2003 e 2007 e das eleições presidenciais de 2004 e 2008. A participação da população aumentou gradativamente em cada uma dessas eleições, caracterizando a participação da população no governo. Ao mesmo tempo, o voto dos cidadãos russos foi dado majoritariamente para candidatos de oposição (no caso das eleições parlamentares), o que também caracteriza a contestação pública ao sistema político vigente. Também em relação à contestação pública, houve um aumento significativo na possibilidade de manifestações abertas contra o governo, incluindo passeatas que pressionaram o Parlamento a tomar atitudes contra o poder Executivo.

Desta forma, vemos que a democracia formal já está implantada e consolidada na Rússia, com eleições regulares e com a participação de grande parte da população. Também a contestação pública começa a se consolidar, não apenas com passeatas e manifestações populares nas ruas, mas também com a criação e o funcionamento de instituições que permitem caracterizar a contestação pública. A escolha de parlamentares que fazem oposição ao governo é uma conseqüência do processo de consolidação da contestação pública e da participação política da população. Vale lembrar que a contestação pública continuou em 1999, quando, mais uma vez, o Partido Comunista da Federação da Rússia obteve maioria – ainda que não absoluta – na Duma, após as eleições parlamentares.

Assim, podemos afirmar que as reformas políticas e econômicas realizadas na Rússia efetivamente contribuíram para aumentar a participação da sociedade na definição dos rumos do país, além de possibilitar que esta sociedade se manifestasse contra o governo.

Contudo, é válido que façamos uma ressalva: a participação política e a contestação pública definidas por Dahl referem-se à chamada “democracia formal”, e não à “democracia substantiva”. A democracia formal é aquela considerada como uma “democracia de procedimentos”, ou seja, o que importa são os meios e os procedimentos utilizados no processo democrático. Assim, para essa “vertente”, os países são considerados democráticos se possuírem o sufrágio universal, se houver um sistema partidário organizado, se forem realizadas eleições regulares e se os mandatos dos eleitos forem fixos. A ênfase recai sobre aspectos institucionais: se estes garantirem a expressão política das pessoas, a democracia está garantida. Já a vertente da democracia substantiva argumenta que não basta apenas a existência de mecanismos eleitorais para a manutenção da democracia: aspectos econômicos e sociais influem no resultado dos votos das pessoas. Assim, de acordo com esta vertente, o voto de um empresário valeria mais do que o voto de um mendigo, já que o empresário tem acesso a muito mais informações e oportunidades do que um mendigo. As condições sócio-econômicas, por influírem no resultado das eleições, também devem ser consideradas ao se definir as democracias. As desigualdades sociais se refletem em desigualdades políticas.

Podemos estender este argumento também para a Rússia: conforme já afirmado, a democracia formal, com eleições periódicas e justas, já está instaurada e, pode-se dizer, consolidada. Mas é necessário mais do que isso para garantirmos a verdadeira participação qualitativa da população, e não apenas quantitativa. É necessário que a reforma do Estado na Rússia amplie a noção de democracia, fortalecendo a garantia aos direitos políticos e civis, bem como garantindo a possibilidade de concretização de valores sociais e de interesses não econômicos. É necessário, também, ter a visão de que o indivíduo não é um mero “cliente” dos serviços produzidos pelo Estado e/ou pela iniciativa privada: o indivíduo deve ser visto como um cidadão, onde as noções de coletividade, de bem comum e de subjetividade de cada um são tão importantes quanto a mera concretização de interesses econômicos por parte daqueles que controlam o mercado.

Referências bibliográficas:

DAHL, Robert A. Poliarchy. New Haven e Londres: Yale University Press, s/d.

Um comentário:

Anônimo disse...

Duas perguntas: A primeira é uma questão metodológica, porque o senhor não citou a tradução do texto para o português? É mais que sabido que o Poliarquia do Dahl tem tradução pela Unesp, se não me engano, a mais de dez anos e o senhor deve saber disso, então porque esconder a informação?
A segunda: O que diferência o seu texto de uma simples análise histórica de fatos relevantes? Sei que é um doutor em ciência política então, quais são as categorias exclusivamente políticas que o senhor utiliza, e como elas são estruturadas na análise?