15 de agosto de 2007

A lógica da Metodologia Científica

Hoje de manhã perguntaram-me qual a lógica da disciplina de Metodologia Científica, ou seja, de que maneira a disciplina pode contribuir para a busca de algo novo no dia-a-dia do cidadão comum.

Apesar de hoje minha aula ser de Ciência Política, e não de Metodologia Científica, resolvi fazer um parênteses na aula e mostrar a origem da disciplina de Metodologia. Fiz um recuo que muitos acham exagerado -- fui à Grécia antiga e expliquei como o nascimento da filosofia no século VI a.C. deu origem, hodiernamente, ao que chamamos de ciência.

Ao explicar a lógica da Metodologia Científica, lembrei-me da minha própria aula de Metodologia no doutorado, no ano passado -- eu como aluno. Lembrei-me de um livro excelente que li à época, intitulado Razão histórica: teoria da história: fundamentos da ciência histórica, do alemão Jörn Rüsen. Lembrei-me de toda a lógica metodológica utilizada pelo autor para explicar como a ciência histórica cria novo conhecimento científico na área por meio do conceito que ele chamou de matriz disciplinar. Ainda que os conceitos criados por Rüsen sejam direcionados ao estudante de História, o mesmo "círculo vicioso" da matriz disciplinar pode -- e, na minha visão, deve -- ser aplicado a qualquer área do conhecimento, já que a Metodologia Científica está presente em toda e qualquer área.

A matriz disciplinar desenvolvida por Rüsen (2001, 29) é definida como “o conjunto sistemático dos fatores ou princípios do pensamento histórico determinantes da ciência da história como disciplina especializada”. Em outras palavras, significa dizer que a ciência da história segue determinados passos para poder ser posta em prática: ela não é simplesmente um trabalho feito a esmo, sem orientação alguma, que tem como base apenas o interesse pessoal do historiador. Ao contrário, a ciência só surge quando esses interesses pessoais e subjetivos – o primeiro nível da matriz disciplinar de Rüsen, como explicado a seguir – se moldam à metodologia científica.

A matriz disciplinar é formada por cinco itens. O primeiro é o interesse pessoal do historiador, ou seja, o que o motiva a pesquisar o tema A ao invés do tema B. Esse primeiro item, obviamente, é bastante subjetivo, mas sem o mesmo não há como ser feita qualquer pesquisa: os interesses surgem das carências de orientação que os indivíduos têm no presente. Para satisfazer tais carências, ou seja, para resolver seus problemas atuais, os indivíduos se voltam para o passado, em busca de indícios que os auxiliem no presente objetivando atingir algo no futuro.

O segundo item da matriz disciplinar de Rüsen são as idéias. É por meio dessas idéias que os interesses individuais deixam de ser “meros” interesses e passam a se compor como um interesse metodologicamente definido. Como diz Rüsen (2001, 35), as idéias são as “perspectivas orientadoras da experiência do passado”, ou seja, fazem com que os interesses se concretizem e tomem forma metódica e definida, dando origem à pesquisa histórica. Como diz Martins (2002, 26), “(...) idéias são fundamentais para o que se considera um agir racional segundo os fins. A satisfação de interesses (sejam eles privados ou públicos) é um fim, para cuja consecução se estipula uma seqüência argumentativa para sustentar o agir e motivação para ele”.

“Os métodos da pesquisa empírica constituem o terceiro fator dos fundamentos da ciência da história” (Rüsen 2001, 33). O autor fala comparativamente pouco sobre os métodos da pesquisa, afirmando apenas que os mesmos correspondem às “regras da pesquisa empírica” (Rüsen 2001, 35).

O quarto item constitutivo da matriz disciplinar é a pesquisa pronta, ou seja, o relatório final da pesquisa: uma vez aplicados os métodos da pesquisa empírica às idéias norteadoras e interesses iniciais do historiador, produz-se resultados que devem ser apresentados à comunidade em geral e à comunidade científica em particular. Tais resultados fazem parte do processo científico como um todo e devem ser considerados não apenas por si próprios, como resultados, mas também – e talvez principalmente – pela forma pela qual os mesmos são apresentados.

O quinto e último item que compõe a matriz disciplinar é chamada por Rüsen de funções de orientação existencial. Segundo o autor, o resultado da pesquisa é uma resposta a uma pergunta; como tal, supre as carências de orientação que originaram os interesses (o primeiro item da matriz disciplinar) e, ao suprir tais carências, exerce

(...) funções de orientação existencial que têm de ser consideradas como um fator próprio (quinto e último) de seus fundamentos (...). Não se pode caracterizar suficientemente o que é a história, em seus fundamentos, como ciência, se não se considerar a especificidade do pensamento histórico também na função de orientação, da qual afinal se originou (Rüsen 2001, 34-5).

A matriz disciplinar é, desta forma, definida como o “círculo vicioso” que abrange esses cinco elementos: as carências de orientação no mundo presente fazem surgir os interesses subjetivos e não-científicos do pesquisador. Esses, por sua vez, dão origens a idéias, ou seja, a perspectivas de orientação do pesquisador em relação aos seus próprios interesses. Tais idéias devem ser trabalhadas por meio de métodos da pesquisa, e ao final desse processo surge o resultado da pesquisa, ou seja, o trabalho propriamente dito. Este trabalho, por sua vez, exerce funções de orientação existencial, ou seja, dão determinada orientação ao pesquisador no sentido de, por um lado, satisfazer suas carências iniciais e, por outro, dar origem a novas carências, fazendo com que todo o processo se reinicie.

Fica claro, com a matriz disciplinar, que Rüsen defende a idéia de que o conhecimento sobre determinado assunto é relativo: em primeiro lugar, ele depende dos interesses subjetivos do historiador e, em segundo lugar, depende do próprio presente histórico no qual o historiador vive. Essa também é a premissa desenvolvida por Martins (in Costa 2002), qual seja, a de que o conhecimento é relacional, ou seja, o caráter relacional surge quando o conhecimento passado é relacionado com o momento atual no qual o pesquisador vive.

Ainda sobre esse ponto – o da temporalidade do conhecimento científico – acredito ser interessante destacar as idéias de Hölscher (1997, 318-9), que seguem o mesmo princípio:

Todo evento real do passado (...) pode ser entendido como um elemento não apenas de uma, mas de várias – e até mesmo de um número infinito de – histórias. (...) Várias histórias, ou contextos, podem ser imaginadas, nas quais o evento pode aparecer como um elemento possível.

Hölscher acredita que a veracidade e a validade dos eventos como componentes da pesquisa científica só têm sentido se levarmos em consideração os interesses atuais que temos sobre o evento em questão – idéia esta que está na base da matriz disciplinar de Rüsen: tudo se origina nos interesses atuais do pesquisador, e o interesse de hoje pode ser – e provavelmente será – diferente do interesse de amanhã. Tal diferença de interesse entre o hoje e o amanhã é que dá à ciência seu caráter de constante mudança, indispensável para a busca de novos conhecimentos em qualquer área de pesquisa.

Fontes:

HÖLSCHER, Lucian. “The new annalistic: a sketch of a theory of history”. In: History and Theory. Studies in the Philosophy of History. Volume 36, number 3, October 1997. Págs. 317-335.

MARTINS, Estevão Chaves de Rezende. “O caráter relacional do conhecimento histórico”. In: COSTA, Cléria Botelho da (org.). Um passeio com Clio. Brasília: Paralelo 15, 2002.

_____. Relações internacionais: cultura e poder. Brasília: IBRI, 2002.

RÜSEN, Jörn. Razão histórica: teoria da história: fundamentos da ciência histórica. Trad. Estevão de Rezende Martins. Brasília: Ed. Universidade de Brasília, 2001.


Um comentário:

Abel Sidney disse...

Grato pela aula, Matheus!

Sou tbém professor, da Universidade Federal de Rondônia e trabalho a disciplina Metodologia da Pesquisa (ou do trabalho acadêmico, como considero mais palpável!)

Legal o formato do teu blog, de debate-aula, bem explicadinho, sem no entanto, desmerecer a inteligência alheia...

Valeu!
Abel Sidney