27 de junho de 2008

Diferenças conceituais (X)

(Continuação da postagem anterior.)

É claro que, uma vez aplicada a crítica do método especulativo à filosofia política de Hegel, Marx deduz daí a rejeição não somente do método hegeliano mas também dos resultados que Hegel julgava poder obter por este método em relação aos problemas do Estado. O que Marx critica e refuta é a mesma estruturação do sistema da filosofia do direito hegeliano, baseado na prioridade do Estado sobre a família e sobre a sociedade civil (isto é, sobre as esferas que historicamente precedem o Estado), prioridade que Hegel afirma sem observar e respeitar a realidade histórica de seu tempo nem estudar como efetivamente se foi formando o Estado moderno, mas deduzindo-a da idéia abstrata de Estado como totalidade superior e anterior às suas partes. Enquanto na realidade família e sociedade civil são os pressupostos do Estado, "na especulação sucede o contrário", isto é, "os sujeitos reais, a sociedade civil, a família [...], se tornam momentos objetivos da idéia, irreais, alegóricos", ou, por outras palavras, enquanto estas são "os agentes" (isto é, um sujeito histórico real, na filosofia especulativa são "postas em ato" pela idéia real e "devem sua existência a um espírito diferente delas", pelo que "a condição se torna o condicionado, o determinador, o determinado, o produtor, o produto de seu produto" (Obras filosóficas juvenis, pp. 18-9). Desde as primeiras proposições do comentário, Marx chama a este processo "misticismo lógico". Não é o caso de nos delongarmos sobre as críticas particulares que Marx faz a essa ou àquela tese política de Hegel; basta mencionar que as críticas mais importantes são as que dizem respeito à concepção do Estado como organismo, à exaltação da monarquia constitucional, à interpretação da burocracia como classe universal e à teoria da representação por classes, contraposta ao sistema representativo nascido da Revolução Francesa. Importa destacar particularmente que a rejeição do método especulativo de Hegel leva Marx a inverter as relações entre sociedade civil e Estado (considerando este último conseqüência do método especulativo), a firmar a sua atenção bem mais sobre a sociedade civil que sobre o Estado e, portanto, a divisar a solução do problema político não na subordinação da sociedade civil ao Estado mas, pelo contrário, na absorção do Estado por parte da sociedade civil, na qual consiste a "verdadeira" democracia, na qual, segundo os franceses, "o Estado político desaparece" (Ibid., p. 42) e cujo instituto fundamental, o sufrágio universal, tende a eliminar a diferença entre Estado político e sociedade civil, pondo "no Estado político abstrato a constância da dissolução deste, como também da dissolução da sociedade civil" (Ibid., p. 135).

III. O estado como superestrutura. A inversão das relações entre sociedade civil e Estado, realizada por Marx a respeito da filosofia política de Hegel, representa uma verdadeira ruptura com toda a tradição da filosofia política moderna. Enquanto esta tende a ver na sociedade pré-estatal (quer seja esta o estado de natureza de Hobbes, ou a sociedade natural de Locke, ou o estado primitivo de natureza de Rousseau do Contrato social, ou o estado das relações de direito privado-natural de Kant, ou a família e a sociedade civil do próprio Hegel) uma subestrutura, real mas efêmera, destinada a ser absorvida na estrutura do Estado onde somente o homem pode conduzir uma vida racional e, portanto, destinada a desaparecer total ou parcialmente uma vez constituído o Estado, Marx, ao invés, considera o Estado -- entendido como o conjunto das instituições políticas onde se concentra a máxima força impossível e disponível numa determinada sociedade -- pura e simplesmente como uma superestrutura em relação à sociedade pré-estatal, que é o lugar onde se formam e se desenvolvem as relações materiais de existência, e, sendo superestrutura, é destinado, por sua vez, a desaparecer na futura sociedade sem classes. Enquanto a filosofia da história dos escritores anteriores a Hegel (e especialmente no próprio Hegel) caminha para um aperfeiçoamento cada vez maior do Estado, a filosofia da história de Marx caminha, ao invés, para a extinção do Estado. O que para os escritores precedentes, é a sociedade pré-estatal, ou seja, o reino da força irregular e ilegítima -- seja este o bellum omnium contra omnes de Hobbes, ou o estado de guerra ou de anarquia que, segundo Locke, uma vez iniciado não pode ser abolido senão através de um salto para a sociedade civil e política, ou a société civile de Rousseau, onde vigora o pretenso direito do mais forte, direito que na realidade não é direito, mas mera coação, ou o estado de natureza de Kant, como estado "sem nenhuma garantia jurídica" e, portanto, provisório -- é para Marx, ao contrário, o Estado, que, como reino da força ou, conforme a conhecida definição que ele dá em O capital, como "violência concentrada e organizada da sociedade" (vol. 1, p. 814), é, não a abolição nem a superação, mas o prolongamento do Estado de natureza como Estado histórico (ou pré-histórico), não tanto imaginário ou fictício mas real da humanidade.

Já Marx, nos Manuscritos econômico-filosóficos de 1844, expressa esse conceito fundamental, segundo o qual o Estado não é o momento subordinante mas o momento subordinado do sistema social considerado em seu conjunto, afirmando que "a religião, a família, o Estado, o direito, a moral, a ciência, a arte, etc. são apenas modos particulares da produção e caem sob sua lei universal" (p. 112). Numa forma ainda mais clara e extensa assim escreve na grande obra imediatamente posterior, A ideologia alemã (1845--1846): "A vida material dos indivíduos, que não dependem em absoluto de sua pura 'vontade', o seu modo de produção e a forma de relações, que se condicionam reciprocamente, são a base real do Estado em todos os estádios nos quais ainda é necessária a divisão do trabalho, totalmente independente da vontade dos indivíduos. Estas relações reais não são absolutamente criadas pelo poder do Estado; são, antes, essas relações o poder que cria o Estado" (p. 324). Diferentemente da anterior que ficou inédita, na obra do mesmo período, A sagrada família, publicada em 1845, a inversão da idéia tradicional, personificada neste contexto por Bruno Bauer, segundo o qual "o ser universal do Estado deve manter unidos cada um dos átomos egoístas", não poderia ser expressada com maior clareza: "Somente a superstição política imagina ainda hoje que a vida civil precise de ser mantida unida pelo Estado, enquanto, pelo contrário, é o Estado que na realidade é mantido unido pela vida civil" (p. 131). Em assunto de relações entre estrutura e superestrutura, é celebérrimo o texto do Prefácio a Para a crítica de economia política: "O conjunto dessas relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade, isto é, a base real sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e política e à qual correspondem formas determinadas de consciência social. O modo de produção da vida material condiciona, em geral, o processo social, político e espiritual da vida" (p. 11).

Contra a "superstição política", ou seja, contra a supervalorização do Estado, o ataque de Marx é constante, apesar de alguns intérpretes recentes discordarem. Essa rejeição da superstição política o leva a dizer num escrito juvenil, A questão hebraica (1843), que a Revolução Francesa não foi uma revolução completa, porque foi somente uma revolução política, e que a emancipação política não é ainda a emancipação humana. E, num escrito da maturidade, ataca Mazzini, dizendo que este nunca entendeu nada porque "para este o Estado, que cria na sua imaginação, é tudo, enquanto que a sociedade, que existe na realidade, não é nada" (o que é um outro modo de dizer que uma revolução apenas política não é uma verdadeira revolução).

(Continua na próxima postagem.)

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