17 de novembro de 2008

A Rússia e a paz mundial (VII)

(Continuação da postagem anterior.)

Durante o período soviético, a intensa industrialização favoreceu decisões voltadas mais para a sustentação dos objetivos geoestratégicos soviéticos do que para a eficiência econômica. Desde o fim da URSS em 1991, a estrutura decisória e a cultura gerencial herdada pela Rússia dos tempos soviéticos constituíram, ao longo da década de 90, grandes obstáculos, que o país vem conseguindo remover com dificuldade.

O programa de estabilização e de reformas profundas orientadas no sentido de estabelecer uma economia de mercado foi implantado em 1992 pelo então Ministro das Finanças, Yegor Gaidar. Este plano teve o apoio do ex-presidente Boris Yeltsin. O programa incluía privatização acelerada, reestruturação do setor estatal remanescente e reformas tributária, administrativa e bancária. As reformas aconteceram de forma lenta mas constante até 1998, quando o novo primeiro-ministro Serguei Kirienko decidiu acelerar as reformas.

Persistiram, no entanto, paralelamente ao processo de reforma, graves dificuldades sociais e econômicas. Parcela considerável dos trabalhadores permaneceu oficialmente incluída em faixas de remuneração abaixo do nível de subsistência. Os atrasos nos soldos dos militares e nas pensões constituem preocupação evidente num quadro extremamente sensível e pano de fundo dissonante com a tentativa de dar continuidade ao processo de desmantelamento do sistema soviético de subsídios à população na forma de custos simbólicos de moradia, calefação, gás, energia elétrica e transporte público, entre outros. Persistia, igualmente, a desestruturação dos serviços públicos em muitas das 89 unidades federadas.

Com problemas originados pela crise asiática de 1997, a Rússia viu-se, em agosto de 1998, em meio à crise própria de conseqüências profundas para a economia mundial, atingindo inclusive o Brasil. Nem mesmo o anúncio feito pelo FMI de um empréstimo de US$ 22,6 bilhões à Rússia conseguiu deter a evasão de capitais e a forte retração na atividade econômica russa, que conduziram à adoção de medidas, em setembro de 1998, de maxidesvalorização do rublo, de inadimplência dos pagamentos da dívida interna com vencimentos em curto prazo e da proibição temporária e parcial de pagamentos em moedas fortes ao exterior por parte de devedores privados.

Atualmente, contudo, a economia russa mostra sinais de evidente recuperação. Mesmo com a eleição do novo presidente, Vladimir Putin, as políticas financeira e fiscal continuarão prudentes. Espera-se um crescimento econômico de cerca de 3,5% em 2000, acompanhando a tendência de expressivo aumento de produção industrial, que registrou 8,1% em 1999, o maior índice desde a dissolução da União Soviética. Também o ambiente macroeconômico promete ser favorável, com uma inflação de 18 a 22% em 2000.

O presente nível de participação da Rússia na economia mundial, que atinge menos de 1% do PIB total, contrasta com a relevância estratégica desse país no cenário global. Detentora de vasto arsenal nuclear, a Rússia, no plano de sua atuação externa, defronta-se com a ambivalência gerada entre essa reduzida expressão econômica, piorada pela dependência de recursos financeiros internacionais, e pela magnitude de seu poderio militar, não obstante a relativa precariedade de determinadas forças convencionais.

O país busca o equilíbrio entre seus interesses econômicos imediatos (com os conhecidos reflexos sobre seu processo de reformas e de abertura democrática), que demandam parceria inadiável com o Ocidente, e o surto de sentimentos populares antiocidentais e, especialmente, antinorte-americanos, acentuados pela crise iugoslava. A Rússia busca, outrossim, encontrar um “modus vivendi” com a OTAN, que vem cooptando seus vizinhos e contra a qual presentemente não poderia resistir no plano militar.

Por isso mesmo, o grande ponto de apoio do discurso diplomático russo tem sido a defesa do conceito de multipolaridade. Os últimos resquícios da potência que foi a Rússia, no bojo da ex-União Soviética, se afirmam no poder de veto no Conselho de Segurança das Nações Unidas e no poderio nuclear. Quanto ao primeiro, no entanto, encontra-o recentemente neutralizado pelo novo comportamento de centros decisórios como Washington e Londres, que não hesitam em mobilizar outros locais de discussão para a conquista de seus objetivos político-estratégicos, ignorando a ONU.

A questão de Kosovo potencializou a crise de identidade russa: sentindo-se obrigada a defender na Iugoslávia laços comuns étnicos, culturais e religiosos, a Rússia defrontou-se com sua incapacidade material de frear os ataques ocidentais. Reagiu explorando, rapidamente, o filão diplomático da mediação entre as partes beligerantes. Efetivamente, no plano dos desenvolvimentos ocorridos na Iugoslávia, não se pode considerar uma via política de solução sem a interveniência de Moscou.

Pode-se, assim, observar que a tendência da política externa russa será pela valorização do mecanismo de solução pacífica das controvérsias, ancorada em seu arsenal nuclear. De imediato, ela terá de aplicar essas diretrizes nas suas vizinhanças, acabando com os surtos separatistas que ameaçam a paz na Comunidade dos Estados Independentes. Moscou está consciente de que deverá tomar a dianteira do processo de integração, buscando uma forma capaz de dirimir os restos de desconfiança que as ex-repúblicas soviéticas ainda nutrem pela Rússia. Em casos de nova falência de desempenho pela ONU, o Grupo dos Oito e a OSCE serão os foros privilegiados pela diplomacia russa para encaminhamento de seus pleitos e defesa de seus interesses. A Rússia tem insistido muito na defesa de uma nova arquitetura para a segurança européia, com menos intromissão norte-americana.

Contra o pano de fundo, por um lado, da atual coesão hegemônica do Ocidente industrializado e, por outro, dos entendimentos de natureza militar entre os EUA e o Japão em matéria de defesa na região asiática, a Rússia procura desenvolver parcerias especiais com a China e com a Índia e a encaminhar o melhor possível uma solução para sua disputa territorial com o Japão. Neste momento, são fluídos o diálogo e a cooperação entre a Rússia e estes três países, embora seja prematuro especular sobre a formação de triângulos ou outras composições formais entre eles. A Rússia procura não negligenciar, tampouco, sua responsabilidade como um dos países que dão garantias ao processo de paz no Oriente Médio, desenvolvendo, de maneira muito equilibrada, bom relacionamento tanto com Israel quanto com os países árabes.

O interesse da Rússia na África e na América Latina se vê freqüentemente obrigado a ceder lugar às prioridades na sua região vizinha, tanto na Europa quanto na Ásia. Não obstante esta conjuntura, tem sido crescente a mobilização russa vis-à-vis do Mercosul, em particular do Brasil. A atração do mercado do Cone Sul, somada à importância do Brasil como agente ativo no cenário internacional e à circunstância de terem experimentado os dois países os efeitos perversos de crises financeiras de contornos assemelhados, colocam nosso país no raio de ação diplomática russa, com o lançamento de iniciativas importantes para a expansão da cooperação bilateral em todos os campos.

(Continua na próxima postagem.)

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